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Dastur: Fenomenologia do Ser-mortal
quarta-feira 31 de maio de 2017
Se não é próprio da morte como tal nenhuma experiência e nenhum pensamento possível, se o "nada" que ela "é" não pode senão impor o silêncio ao discurso conceituai, e se ela constitui o não-fenômeno por excelência, o que não me aparece jamais "em pessoa", dela pouco subsiste como o demonstram tanto as mitologias quanto as filosofias, o se-saber e o se-sentir mortal constituem o fundamento da experiência que o ser humano tem de si mesmo. É então esse estranho conhecimento de seu próprio fim, que cada um tem com certeza, e que não é semelhante a nenhum outro saber, pelo próprio fato de sua irredutível dimensão "afetiva", que torna possível um discurso não sobre "a" morte, mas, ao contrário, sobre a relação que o ser pensante mantém com sua própria mortalidade. E esse discurso, contudo, é propriamente "fenomenológico", já que é um discurso sobre o apresentar-se a si mesmo do caráter finito de sua própria existência.
O discurso "fenomenológico" sobre a mortalidade, ao contrário do discurso metafísico e de todas as outras espécies de discursos sobre a morte que se sucedem no decorrer da longa história do homem, não promove nenhuma "ultrapassagem" ou "superação" da morte e não oferece nenhuma transcendência suscetível de neutralizá-la - quer se trate de uma transcendência puramente "biológica" da vida universal, da "mitológica", de um mundo dos mortos, da "teológica", de uma eternidade divina. Ou da "metafísica", de uma intemporalidade da verdade ou ainda - e esta é, sem dúvida, a mais invocada em nossa época "relativista" - a transcendência puramente antropológica do "tribunal" da história.
Todavia, isso não significa que a fenomenologia saiba mais sobre a morte que a mitologia, a teologia, a metafísica, a antropologia e a biologia, mas simplesmente porque ela propõe a questão da essência daquilo que aparece é que ela se vê obrigada a "pôr entre parênteses" todas as avaliações que são levadas em consideração - o que Platão chamava de doxa, "opinião" ou "crença", vocabulário retomado por Husserl quando ele apresenta a redução fenomenológica como a neutralização dos "atos dóxicos", que constituem o fundamento da atitude natural de crença no ser-aí do mundo. A fenomenologia, que repete assim o gesto filosófico no que ele tem de próprio, se abstém de toda e qualquer pressuposição que tenha origem nos diferentes domínios da cultura humana e se propõe unicamente a descrever a maneira pela qual o ser humano se relaciona com sua própria morte. Entretanto, não podemos objetar que não há fenomenologia possível da morte, pois ela é, por excelência, um não-fenômeno e que é inútil pôr-se à procura de sua essência, já que ela é o não-ser absoluto? A morte, com efeito, não se "apresenta, em pessoa", no mundo, e nenhum olhar jamais chegará a distinguir nela seu eidos, sua forma ou seu rosto. Parece, por conseguinte, evidente que a morte não pode jamais constituir a "própria coisa" à qual a fenomenologia husserliana nos obriga a retornar.
Entretanto, não seria necessário ver na fenomenologia a descrição de um dado que importaria simplesmente ter-se em vista, mas, ao contrário, reconhecer, como Heidegger, que "é precisamente porque os fenômenos não são de início e no mais das vezes não dados que é necessária uma fenomenologia",66 o que implica que o fenômeno-da-fenomenologia não se confunde, de modo algum, com o que se entende habitualmente por esse termo e que não está "presente" no sentido em que o estão as coisas chamadas "existentes". E assim que há uma fenomenologia do outro que, contudo, não aparece jamais como tal, que não pode se deixar entrever, a não ser de maneira indireta, e a respeito da qual Husserl nos ensina que ela é, no entanto, percebida. Pois a percepção não é jamais percepção do só visível, mas, também e ao mesmo tempo, do invisível, da qual ela é a antecipação necessária, embora este, quer não se constitua ainda um dado para ela, como é o caso de tudo o que não está visível atualmente, mas pode assim tornar-se ulteriormente ou jamais chegar a sê-lo, como é o caso na experiência dos outros, cujas vivências não serão jamais acessíveis às vistas. Nos dois casos, o invisível não é o oposto absoluto do visível, mas, na realidade, sua contrapartida secreta, sem o que não haveria, de forma alguma, visibilidade.
Porém, a morte não é exatamente essa invisibilidade absoluta, o que não somente não será jamais um dado, mas o que, evitando radicalmente qualquer presença, é o outro absoluto do ser? E, no entanto, ela é, em sua "irrealidade", mais "presente" do que o serão jamais as coisas da vida real, de uma presença tão insidiosa e obsessiva que se trata exatamente de, quando não nos propomos a domá-la nesta "repetição" da morte que é a filosofia, de tentar fugir dela pelo divertimento. É esta estranha presença da morte, que pode sobrevir a cada instante, que faz dela o hospede sombrio de todas as festas da vida. Constantemente presente no modo da iminência, deve-se então reconhecer nessa ausência absoluta que é a morte um modo paradoxal de se apresentar que não está na origem de nenhuma fenomenalização particular, mas que confere ao conjunto dos fenômenos seu "conteúdo" ímpar de finitude, deixando-os se destacarem do fundo de sua luz negra.
Eis o que torna possível um discurso fenomenológico sobre a morte. Isso se atém à pura experiência da iminência sempre possível do absurdo que é a supressão do existir e não tenta conferir à morte um sentido, integrando-a a uma transcendência que a relativizaria. A morte permanece para ela a via impraticável do não-ser-absoluto de que fala o Poema de Parmênides , esse impasse da não-verdade, com o qual, contudo, o ser pensante tem relação. E, talvez seja mesmo o inverso: é porque tem relação com o nada que é a morte, que o ser humano pensa, e também fala e ri. E dessa relação com a morte, dessa mortalidade, que é possível uma fenomenologia.
Ver online : Françoise Dastur