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Caron (2005:1725-1727) – si mesmo, Ereignis, Amor

sexta-feira 1º de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

O si mesmo é, de fato, o local de uma luta, o distrito da manifestação de uma vacuidade; mas essa vacuidade, ele o é, e sua própria viabilidade nos descobre sua vocação. Para o pensamento, a luta se torna o próprio ser-aí da paz. Seu ser é guardar o mistério da dádiva. Por meio do surgimento dessa lacuna, o ser se manifesta como ser e se entrega ao pensamento. Dessa forma, o abismo é a manifestação do ser, e o si é um elemento necessário em qualquer aparição como tal. O que o si experimenta primeiro como aflição é o partilhamento inerente à Palavra. A aflição suportada com atenção transforma o buraco aberto da diferença ontológica que constitui o si em um pensamento da Dobra e, depois, do Ereignis, no qual o rasgo é dado como a figura de um partilhamento ontológico, a obscuridade de uma luz pensativa envolta em sua noite para não destruir, desvanecendo-se para não apagar. O ser humano se apresenta sozinho diante do mistério e, em uma postura de expectativa, pode afirmar: “Fiz um voto de expectativa ao deserto oxidado do tormento / ao advento robusto de sua chama” [1].

O si entende sua estrutura como a aparência inicialmente dolorosa de uma dádiva imensurável. Assim, ele se encontra, quer saiba disso ou não, em Ereignis, e presta, quer queira ou não, isto é, por sua própria presença, o presente a si mesmo. Ele procede de Ereignung, desse ato de apropriação do ser em si mesmo. Mas quando Ereignis vem à mente e quando o homem decide guardar a dádiva, o ser-homem compreende seu dilaceramento como o elo dessa Mesmidade que une a dádiva e o si, com vistas a que o si guarde a dádiva. O ser humano, então, compreende sua própria vacuidade como aquilo que o constitui em seu próprio direito e como aquilo que vem, em sua essência, do Acordo (Ereignis) de um único dom. Quando o Ereignis chega ao pensamento, o homem conquista sua origem, e o que parecia ser um rasgo sem sentido aparece em sua verdade como o Jogo amoroso do Imenso. A ipseidade então se manifesta como o correlato de toda dádiva como dádiva, como o amado da dádiva. Amor é o único nome possível para essa gratuidade ontológica que dá sem razão e não tem fundamento, um amor que, em 1919, Heidegger deu como uma tarefa para o pensamento ou “como o motivo fundamental de toda compreensão fenomenológica” [GA58  :185]. Tendo penetrado no fundo dessa gratuidade autodoadora, o pensamento descobre ali esse amor que se expressa como Ereignis que concede e apropria o homem de sua origem: o ser humano “é apropriado e concedido àquilo que, por si mesmo e em seu próprio direito, ama o homem e, por essa razão, exige [braucht] seu ser” [GA7  :207]. A filo-sofia, escreve J.-F. Marquet  , é certamente “o amor ao conhecimento, mas acima de tudo (Heidegger) o conhecimento que ama, isto é, que se volta para sua origem” [2], e para a ipseidade voltar-se para sua origem em seu próprio direito é encontrar Ereignis, o próprio amor, que desdobra a ipseidade precisamente para que ela ame esse amor que se desdobra. Tomada pelo desdobramento da dádiva e pensando em si mesma como o local dessa dádiva que é Ereignis, Äugnis, Eignis, a ipseidade prova a si mesma. O abismo do ser humano é o lugar onde o abismo da dádiva acontece; dentro do mesmo conjunto de olhos, no coração do mesmo Acordo, cada um se voltando para o outro, o ser e o ser humano se separam, se encontram, se visualizam e então respondem um ao outro. “A ipseidade é a vibração — originada de dentro do Acordo e que o perdura — daquela fluidez de troca [Widenvendigkeit] própria de uma trama de abismo em abismo” [3]. Dentro dessa Widerendigkeit, esse en-visagement recíproco próprio do desdobramento de Ereignis, o ser-homem, certo do futuro significado por seu acordo de retirada, pode, assim, dirigir-se pensativamente ao ser, reconhecendo nele sua própria origem constitutiva: “O abismo chama o abismo para o coração da Palavra de sua onda silenciosa; seu abismo e toda a sua inundação me penetram” [4].


Ver online : Maxence Caron


CARON, M. H. Pensée de l’être et origine de la subjectivité. Paris: CERF, 2005.


[1Tzara, l’Homme approximatif, p. 159.

[2J.-F. Marquet, Singularité et événement, p. 63.

[3GA65, p. 321 : « Die Selbstheit ist die aus der Ereignung aufgefangene und sie ausstehende Erbitterung der Widerwendigkeit des Streites in der Erklüftung ». Rappelons ici cette phrase de Heidegger dans GA5, p. 322 (Ch., p. 388) : « [une traduction] n’est fidèle que lorsque ses mots sont des paroles qui parlent à partir du langage de la chose en question [Sache] ».

[4Psaume, XLI : « Abyssus abyssum vocat in voce cataractarum tuarum ; omnes gurgites tui et fluctus tui super me transierunt ». Nous traduisons cataracta, c’est-à-dire que nous ne le rendons pas par « cataractes », ce qui occulterait sa richesse de sens. Ce mot est directement issu du grec et peut en cette langue signifier principalement soit une chute d’eau, soit une herse, autrement dit ce qui est hautement manifeste ou ce qui se ferme. Plus fondamentalement, ce mot est une traduction de l’hébreu tsinorékha qui possède le double sens simultané et paradoxal de ce qui déferle dans le silence. Et la voix de l’abîme est bien celle d’un tonitruant, silencieux et secret torrent — en qui se loge le flot de l’Amour sans mesure, la bouleversante générosité de l’être qui est Amour.