Ora é precisamente Heidegger que Lévinas coloca o mais longe possível do seu próprio pensamento e dos ensinamentos bíblicos. [175] A leitura que propõe é singular. Bem longe de distinguir entre a tradição ontológica e a crítica radical que Heidegger apresenta, ele considera pelo contrário a sua obra como o local onde se junta e agrava toda esta tradição. Heidegger «não destrói, ele resume toda uma corrente da filosofia ocidental» [1], mas mesmo assim é insuficiente, e lemos algumas páginas mais adiante: «Heidegger não resume apenas toda uma evolução da filosofia ocidental — Exalta-a [2].» Apagando o «salto» cumprido por Heidegger — ou sem o ter minimamente em conta —, Lévinas o faz assim participar no «vaguear» ao qual ele se dedicou a denunciar continuamente.
A coisa é particularmente marcante no que diz respeito ao vocábulo central da obra heideggeriana : ser. Bem longe de reconhecer esse ser como aquilo que foi esquecido em toda a tradição ontológica (aquilo que se retirou de lá, não foi tido em consideração, pensado, nem sequer visto — enfim, o seu radical impensável), Lévinas vê nele a recapitulação de tudo aquilo que a filosofia pensou com o nome de ser, e é então a razão porque insiste em falar na «ontologia» heideggeriana .
Ora não se trata de forma alguma de uma pequena querela de vocábulos. São todos os traços daquilo a que Heidegger chama ser, que têm de ser riscados, ou resolutamente negligenciados, para que possa passar para o ser da ontologia. E como é que poderá ser desta forma, visto que o ser de que fala Heidegger esforça-se para nos fazer recuperar a memória, não será precisamente só pela diferença face aquilo que a ontologia chamou «ser», e que na verdade era apenas a identidade do sendo? Sendo a mais pequenas das suas características reveladora desta diferença, só poderíamos recusá-la se apagássemos tudo aquilo que caracteriza o «próprio ser» na obra heideggeriana . E é de facto aquilo que acontece na leitura proposta por Lévinas. A condição de irredutível do ser, à única «presença constante»? Tida como desprezada face à «perseverança» que a definiría [3]. A sua retirada da história. Negada a favor do seu domínio exclusivo e manifesta no seio dessa mesma história [4]. A sua resistência radical a qualquer fenomenalidade? Negada em benefício «daquilo que consta», que seria a «própria existência do ser» [5]. A sua diferença com o sendo finalmente, e o vinco que o separa dele? Interpretados como «anfibiologia», ou seja como reversibilidade perfeita «onde o ser e o sendo se podem entender e identificar-se» [6]. [176]
Essa constante redução do pensamento heideggeriano à tradição da qual se afasta, enquanto assimilação do ser que é o vocábulo central na única identidade que visa a ontologia, encontra a sua principal incarnação na palavra através da qual Lévinas «traduz» o ser heideggeriano, mas que também lhe servirá para se confundir com o seu outro: a palavra essência. Desde o prefácio de Autrement qu’être, Lévinas insiste no facto daquilo que esse livro chama essência (e que escreverá mais tarde essance) [7] é de facto o ser no sentido heideggeriano: «A nota dominante necessária para consentir este discurso e o seu próprio título, tem de ser sublinhada no limiar deste livro (…): o termo essência exprime no mesmo o ser diferente do sendo, o Sein alemão distinto do Seiendes [8].» Não poderíamos ser mais claros. Mas ao mesmo tempo, a palavra essência compreende toda a tradição ontológica (onde o ser não é precisamente diferente do sendo), ou seja toda a temática da constante presença de que Heidegger mostrou precisamente o sentido e os limites.
Tendo desta forma retirado ao ser heideggeriano, os principais traços através dos quais era o Outro (de todo sendo, então de Outro-Absoluto também), Lévinas pode fazer surgir face a este ser reduzido ao Mesmo, um Outro que lhe seria radicalmente oposto. O «assim ser» é então apresentado, não apenas como outro além do ser que a ontologia pretende atingir (o que seria a definição correcta do ser heideggeriano; que só pela sua diferença é aquilo que sempre foi designado por esse nome), mas diferente do próprio ser heideggeriano, tendo este previamente sido amputado pela sua diferença, ou seja, reduzido finalmente àquilo que se define como não sendo: o ser da ontologia.