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Zarader (2000:131-134) – Erörterung

quarta-feira 30 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

O Erörterung apresenta várias características paralelas às do Ort. Já notámos na anterioridade do local, em relação a tudo aquilo que concede: o local e a origem, o aquilo a partir de onde. De facto, o primeiro traço da situação, será que ela se orienta para a condição de possibilidade. Essa linguagem — marcada pelo léxico do transcendental — é o do Princípio da Razão. Apresentando «o princípio», Heidegger escreve: «Devemos considerá-lo a bem dizer, no sentido oposto: não no sentido das suas áreas, e dos distritos de aplicação, mas sim no sentido da sua própria origem (Herkunft), em direcção àquilo a partir de onde (von woher) fala (…). Aquilo a partir de onde fala o apelo do princípio, chamamos-lhe local (Ort) do princípio da razão. O caminho que lá deve conduzir e permitir uma primeira exploração, chama-se a situação (Erörterung) do princípio da razão [1].

O mesmo texto oferece-nos também uma segunda indicação que tem a ver com a natureza do local e através disso, a da situação: o seu carácter de reunião. «Aquilo que chamamos o local é onde se junta o desenvolvimento essencial (das Wesende) de uma coisa [2].» Desta forma, será a situação uma atenção para com a origem — se esta for recolhida por modo de unidade.

Segundo esta primeira formulação — que define o Erörterung relativamente a um princípio metafísico e não, tal como será o caso noutro lugar, ao canto do poeta —, acontece então que a situação prende-se em «localizar» e «recolher» a origem impensável do pensável. Por isso, aquilo que recolhe pertence ao pensável — tal como aquilo que lhe escapa ou que lá está reservado. É claro de facto que o impensável só faz sentido se for chamado pelo próprio pensável, se lá estiver de qualquer forma pré-planeado; se lá estiver abrigado, enfim, se é aquilo para onde conduz (ou reconduz) o pensamento [131] quando é interrogado no sentido daquilo que reservando-se no seu desdobramento, o permite [3].

No texto, de há alguns anos, sobre Trakl, a formulação de Heidegger é diferente (diferença que nem ele, nem os seus intérpretes sublinham [4], mas que me parece bastante significativa). O movimento do Erörterung não é ele apresentado como passagem do pensável ao impensável, mas sim do dito ao não-dito. Mudança certamente chamada de natureza do texto que se trata de «situar» um princípio metafísico expõe um pensamento que Heidegger reenvia ao impensável que nela está reservado; um poema canta ou diz, e é aquilo que ele diz, que Heidegger reenvia ao não-dito que nele se abriga — para enquanto pensador, pensá-lo, ou seja torná-lo «digno de questão». A passagem do par pensável/impensável ao par dito/não-dito parece desta forma corresponder à passagem de um texto filosófico a um texto poético. Os dois pares diriam «a mesma coisa» (no que diz respeito à interpretação) e só o diriam em termos diferentes porque o texto suporte teria entretanto mudado. Mas temos de ver isso de mais perto.

A primeira formulação define o Erörterung como passagem do pensável ao impensável. O impensável através da sua própria definição é aquilo que não foi tido em conta pelo pensamento. Se no entanto, pode ser considerado como ser impensável, é porque o pensamento faz duplamente sinal na sua direcção: por um lado (devido ao seu carácter derivado), «falha» na sua condição de possibilidade e reclama-a nesse sentido; por outro (devido ao seu carácter da linguagem), «abriga» essa condição na medida em que o testemunha. De facto, o impensável é aquilo que não foi meditado, pelo pensamento, tendo ficado depositado na língua [5]. Diremos, por exemplo, que no Logos pensado como lógica, reserva-se de modo impensável, a sua essência de recolha (como já dizia legein); ou que na Aletheia pensada como concordância ou rectidão reserva-se de modo impensável, a sua essência «reveladora» (já dizia a a-letheia). Por outras palavras, o «salto» em direcção ao impensável abandona de facto o terreno daquilo que foi pensado, mas não aquele do que foi dito: pelo contrário, atinge-o finalmente. Se saltar será em direcção da palavra, para a ouvir ressoar na sua força inicial de nominação, e pensar por fim naquilo que o pensamento não tinha recolhido, mas que permanecia em espera no «abrigo» do vocábulo. [132]

É claro que, não é por a palavra ter a marca da essência inicial que o pensamento é levado até ela (a etimologia aqui é directriz); no entanto, resta que quando o pensamento se dirige para essa essência, não pode deixar de encontrar o seu eco na palavra. Se quebrarmos esse paralelismo, falhamos o traço mais característico da problemática heideggeriana  , traço que consiste em conceder ao pensamento (ou seja ao seu próprio pensamento também) a dupla garantia da história (a «manhã») e a da linguagem (as «palavras»). O que aqui me interessa é esta última garantia [6].

Consideremos agora a segunda formulação do Erörterung: é apresentado como passagem do dito ao não-dito, do formulado ao que não está formulado. Neste caso, a «situação» afasta-se não só daquilo que foi pensado ao longo da nossa história, mas também daquilo que a língua diz. Afasta-se, claro, mas a favor de uma dimensão de silêncio que conteria a própria língua. Mas esse não-dito abrigado na língua não é aquilo que «falta» num determinado dito, nem sequer aquilo que este «testemunharia»; é pura e simplesmente aquilo que está reservado em todo o dizer. Nesse sentido, Vattimo   não deixa de ter razão quando compara a presença do não-dito no dito, a da terra na obra [7]. De facto, tal como a terra, o não-dito é a reserva inesgotável e permanente de onde surge qualquer abertura, a saber, tudo o que é explícito. Mas se aceitarmos esta definição do não-dito, convém ver as consequências. De facto, significa que no próprio acto em que a linguagem fala, reserva algo de si próprio; e é extraindo sempre e novamente, de forma diferente nesta reserva que podemos fazer ressoar, cada vez de uma forma diferente, o dito.

Existe então duas ordens de diferenças entre as formulações heideggerianas. Por um lado, o salto do pensável ao impensável encontrava uma marca depositada na língua. Cumprindo-o, o pensador pisava então um rego até então desapercebido, mas que já estava cavado. O salto do dito para o não-dito conduz aquém desta mesma marca, e adquire assim uma nova liberdade. Por outro — e sobretudo — a passagem do pensável ao impensável atinge o impensável do pensável, ou seja, aquilo que é chamado de próprio pensável e, que por isso lhe pertence; a passagem do dito para o não-dito atinge uma reserva inesgotável (como a terra), reserva onde é de facto possível extrair, para fazer sair novas formas, mas que não está [133] em ligação directa com esse tal dito fixado e, por isso, não pode parecer como «aquilo que lhe falta».


Ver online : MARLÈNE ZARADER


ZARADER, Marlène. A Dívida Impensada. Heidegger e a Herança Hebraica. Lisboa: Instituto Piaget, 2000

ZSfr: Zur Seinsfrage


[1GA10:SvG, p. 105-106 (PR, 145).

[2Ibid. Sobre esta questão, cf., também, GA7:VuA, pp. 149 e segs. (EC, 183 e segs), tal como ZSfr; GA9:Wgm, p. 240 (Q I, 234).

[3Pöggeler insiste fortemente neste aspecto. Apresenta o pensamento como «Sinal ou indício» do impensável, «referência» àquele (op. cit., p. 388). Há de facto um «salto» entre um e outro, mas esse «salto já não é simples gratuidade, quando aquilo que é para pensar, para aquilo onde salta o pensamento, é de facto o impensável do já pensado, e assim o concedido» (ibid., sublinho), o «proposto» (ibid., p. 405). O Erörterung, que pretende «explicitar os pressupostos desapercebidos» (ibid., p. 394), terá então como tarefa exclusiva a de «receber a reivindicação, e dar-lhe a palavra» (ibid., p. 397).

[4Nem Pöggeler nem Vattimo provêm dela. Pöggeler não deixa pelo contrário de justapor os dois tipos de formulações heideggerianas (as que têm a ver com o não-pensável, e as que têm a ver com o não-dito) como se fossem estritamente equivalentes. Cf., por exemplo, ibid., p. 388: «explicitar aquilo que já é pensado na direcção daquilo que não é pensado, dar a palavra àquilo que restou por formular no formulado», ou ibid., p. 397: «levar à palavra o inescutado e o silencioso…».

[5Nesta definição do impensável, cf. Heidegger et les Paroles de I’origine, op. cit., p. 22.

[6Aliás mostrei que se a garantia da linguagem fosse conservada (ver amplificada) até o fim da obra, a da história atenuava-se, talvez até desaparecer nos escritos tardios. Cf. «Le miroir aux trois reflets», art. citado, p. 19 (especialmente n.° 14) e p. 25.

[7G. Vattimo, Introduction à Heidegger, op. cit., p. 146.