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Raffoul (2020:186-187) – O ser “não é”, mas acontece

segunda-feira 28 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Como visto nos capítulos anteriores, a fenomenologia deve ser considerada como uma fenomenologia do acontecimento e, como observado, de acordo com Heidegger, o fenômeno original da fenomenologia é o próprio ser. Essa premissa dupla leva ao engajamento na tarefa de compreender o próprio ser como acontecimento. Isso se tornou possível nos primeiros trabalhos de Heidegger por meio da desconstrução da ontologia inadequada de Vorhandenheit e da substancialidade e da revelação do movimento e da eventualidade da vida histórica. De fato, Heidegger desenvolve um pensamento poderoso sobre o acontecimento, apreendendo o próprio ser como acontecimento e acontecimento temporal, como o próprio acontecimento da presença. Como Levinas   sempre enfatizou, a contribuição fundamental do pensamento de Heidegger é ter compreendido o ser não mais como um substantivo, como um conteúdo, mas em sua verbalidade e em sua eventualidade. Em uma de suas últimas aulas ministradas na Sorbonne, em 17 de novembro de 1975, Levinas   explicou: “Lembrarei aqui alguns motivos fundamentais do pensamento de Heidegger: I. A coisa mais extraordinária que Heidegger nos traz é uma nova sonoridade do verbo “ser”: precisamente sua sonoridade verbal. Ser: não o que é, mas o verbo, o “ato” de ser. (Em alemão, a diferença é facilmente estabelecida entre Sein [ser] e Seiendes [entes], e a última palavra não tem em alemão a sonoridade estrangeira que o francês étant [um ente] carrega, de modo que os primeiros tradutores franceses de Heidegger tiveram que colocá-la entre aspas). Essa contribuição é o que é inesquecível na obra de Heidegger.” [1] O ser não é uma substância, mas um acontecimento, um ‘fazer’, um ‘acontecer’. Poderíamos dizer, em um inglês impossível: being is not, but being be-ings.

O ser “não é”, mas acontece. Ao abordar o ser em distinção dos entes (já em Ser e Tempo  : “O ser dos entes ‘não é’ ele mesmo um ser”), [2] e, em particular, ao separar a compreensão do ser de qualquer referência a um ser supremo, substrato ou substância (sentidos que, na tradição ontoteológica, determinaram o significado do ser), Heidegger é capaz de considerar o ser em sua eventualidade. Essa é, de fato, a importância da diferença ontológica, como Levinas   viu com muita clareza: “A distinção radical entre ser e entes, a famosa diferença ontológica. Há uma diferença radical entre a ressonância verbal da palavra ‘ser’ e sua ressonância como substantivo. É a diferença por excelência. É a diferença” (God, Death, and Time, p. 122). O ser em si não é uma substância, mas um acontecimento de presença, um acontecimento do qual nós, entes humanos, participamos, ao qual correspondemos e pertencemos. De fato, nós acontecemos por meio do acontecimento do ser. O pensamento de Heidegger se determinou como um pensamento do acontecimento do ser. De fato, não seria um pensamento de presença. De fato, não seria exagero afirmar que a preocupação constante de Heidegger era pensar no acontecimento do ser, ou seja, compreender o próprio ser como um acontecimento. Na expressão “acontecimento do ser”, o genitivo é claramente subjetivo. Falar de um “acontecimento do ser” indica que o ser, como tal, acontece. É por isso que é difícil seguir Claude Romano   quando ele afirma que a expressão “o acontecimento do ser” implica em alguma anterioridade do acontecimento em relação ao ser: ele escreve, “‘Anterior’ ao Ser é o acontecimento pelo qual ele ocorre” e conclui falando da “prioridade por direito [do acontecimento] sobre o Ser”. [3] Em vez disso, eu argumentaria que falar do acontecimento do ser (no genitivo subjetivo) equivale a apreender o próprio ser como um acontecimento. Por outro lado, também não posso seguir Jean Grondin  , que, por sua vez, afirma que na expressão “acontecimento do ser”, a ênfase está no “ser” e não no “acontecimento”. Ele escreve que “no seu caso [de Heidegger], era óbvio … que o acontecimento que ele estava almejando era o acontecimento do Ser (seja como for que se queira soletrá-lo, como Seyn ou Sein)” e conclui que “a noção primordial aqui era, finalmente, menos a do acontecimento do que a do Ser”. [4] De fato, ambos os termos são identificados na obra de Heidegger: o acontecimento é o acontecimento do ser, e o ser é, como tal, um acontecimento. A noção primordial aqui é a de “ser-acontecimento”. Nesse sentido, fica claro que não é necessário ir além do ser, além da ontologia, para apreender o acontecimento, pois o próprio ser acontece como um acontecimento.


Ver online : François Raffoul


RAFFOUL, François. Thinking the event. Bloomington: Indiana university press, 2020


[11. Emmanuel Levinas, God, Death, and Time, trans. Bettina Bergo (Stanford, CA: Stanford University Press, 2000), 122.

[2Martin Heidegger, Sein und Zeit (Tübingen, Germany: Max Niemeyer Verlag, 1953), 6. I draw from both extant English translations: Being and Time, trans. John Macquarrie and Edward Robinson (New York: Harper, 1962), and Being and Time, trans. Joan Stambaugh, rev. Dennis J. Schmidt (Albany: State University of New York Press, 2010). Hereafter cited as SZ, followed by the German pagination.

[3Claude Romano, Event and World, trans. Shane Mackinlay (New York: Fordham University Press, 2009), 20. Hereafter cited as EW.

[4Jean Grondin, “Critical Remarks on the Recent Fascination with the Notion of Event,” in Being Shaken: Ontology and the Event, ed. Michael Marder and Santiago Zabala (London: Palgrave MacMillan, 2004), 67.