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Raffoul (1998:256-257) – ser-sempre-meu [Jemeinigkeit]

terça-feira 29 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

O próprio Heidegger havia afirmado que a virada em seu pensamento não representa “uma mudança de ponto de vista em relação a Ser e Tempo  ” (GA9  , 325/BW  , 208), mas, ao contrário, representa o aprofundamento meditativo e a apropriação do que foi primeiramente empreendido em Ser e Tempo   [1]. Ao tentar designar o que se apropria dos seres humanos para si mesmos, ou seja, a apropriação primordial que entrega o ser humano a si mesmo, o ser-sempre-meu de fato prenuncia o Ereignis. Como escreve Didier Frank: “O ser-sempre-meu. . . anuncia a Ereignis. Enquanto em Sein und Zeit   o ser-sempre-meu e o próprio são concebidos com base no Ser, depois de Sein und Zeit  , o Ser é pensado em termos de apropriação” (Heidegger et le problème de l’espace, 32). Não sou eu que sou o sujeito dessa apropriação: ao contrário, sou lançado nela, pelo Ser, no Ser e para o Ser como se fosse meu. Desde seu início, o pensamento do Ser na forma de uma analítica existencial foi determinado como um pensamento de uma auto-apropriação não-egológica; o que foi pensado como ipseidade (ser-um-si, Selbst) seria mais tarde caracterizado como o pertencimento do homem e do Ser. O que é meu é o próprio na medida em que só pode ser desempenhado em uma existência singular e individualizada, porque Ereignis é esse acontecimento singular, esse singulare tantum mencionado em Identidade e Diferença (GA11  :ID, 28/ID, 38). Levinas   percebeu isso: “Tudo o que mais tarde seria dito sobre esse Ereignis em Zeit und Sein [GA14  ] já estava indicado no §9 de Sein und Zeit  . O Ser é o que se torna meu, e é por isso que o Ser precisa do homem. É por meio do homem que o Ser é “propriamente” (“ownly”). Esses são os momentos mais profundos do pensamento de Heidegger.” [2] De fato, como Heidegger escreveria em Identidade e Diferença, só há Ser com (bei) o homem: “O próprio Ser, entretanto, pertence a nós; pois somente conosco [bei uns] o Ser pode estar presente como Ser, ou seja, tornar-se presente” (GA11  :ID, 24/ID, 33). Mas essa afirmação deve ser imediatamente invertida: é por meio do Ser que o homem existe propriamente. Ainda em Identität und Differenz, Heidegger enfatiza essa “reciprocidade” da pertença conjunta do homem e do Ser. Esse pertencimento “nos leva a perceber, com força surpreendente, que e como o homem é entregue à propriedade do Ser e o Ser é [tornado] apropriado [zugeeignet] à essência do homem” (ID, 28/ID, 36). A afirmação pode ser invertida, porque não há dois reinos separados, de um lado, o Ser, de outro, o homem, que então entrariam em relação. De fato, não há “relação” (Verhältnis) entre o homem e o Ser [3]. Heidegger considera que essa noção surge “do pensamento representacional” (ID, 24/ID, 32) e, em última análise, da oposição entre sujeito e objeto, na qual continuamos a tentar enquadrar a “relação” entre o homem e o Ser? Para entrar na relação (Zug, Bezug) que mantém e retém o homem no Ser, precisamos dar um salto para fora do pensamento representacional. Somente um “salto”, afirma Heidegger, pode nos levar a esse domínio, um salto por meio do qual abandonamos “a ideia habitual do homem como o animal racional que, nos tempos modernos, tornou-se um sujeito para seus objetos” (ID, 24/ID, 32). Assim, não se pode mais falar de uma “falsa simetria” do homem e do Ser, como Μ. Haar   nos pede que façamos (em Heidegger and the Essence of Man, 66) no sentido de que a “dependência” (mas será que essa palavra é apropriada aqui, dado que a atividade ou autonomia de um sujeito não é mais tomada como medida do pensamento?) do Ser em relação ao homem parece ser menor do que a do homem em relação ao Ser: em tal coapropriação, são precisamente os próprios termos “homem” e “Ser” que devem ser abandonados. Heidegger não escreveu: “Deveríamos tão decididamente abandonar a palavra singularizadora e separadora ‘Ser’ quanto abandonar o nome homem”? [4] As determinações metafísicas do homem estão subordinadas a esse pertencimento essencial e à coapropriação do Ser e do ser humano:

Pelo contrário, fica claro o seguinte: o homem e o Ser são apropriados [übereignet] um ao outro. Eles pertencem um ao outro. A partir desse pertencimento um ao outro, que não foi pensado mais de perto, o homem e o Ser receberam primeiro aquelas determinações de essência pelas quais o homem e o Ser são compreendidos metafisicamente na filosofia. [5]


Ver online : François Raffoul


RAFFOUL, François. Heidegger and the subject. Atlantic Highlands, N.J: Humanities Press, 1998


[1On this question, see the letter to Father William. J. Richardson, in Heidegger: Through Phenomenology to Thought.

[2Emmanuel Levinas: De Dieu qui vient a l’idée (Paris: Vrin, 1982), 146f.

[3Heidegger writes: "We stubbornly misunderstand this prevailing belonging together [Zusammengehoren] of man and Being as long as we represent everything only in categories and meditations, be it with or without dialectic. Then we always find only connections that are established either in terms of Being or in terms of man, and that present the belonging together of man and Being as intertwining" (ID, 23/ ID, 32). The belonging-together of man and Being should not be understood as a relationship (Beziehung) between two separate elements, but more essentially as a relation (Bezug). On this distinction, see: GA 12, 118-119/OWL, 32.

[4GA 9, 408/QB, 77. Also: "Being vanishes [verschwindet] in Appropriation." ZS, 22/ TB, 22.

[5GA11:ID, 23/113, 31-32. Also: "The event of appropriation is that realm, vibrating within itself, through which man and Being reach each other in their nature, achieve their active nature [Wesen] by losing those qualities with which metaphysics has endowed them." ID, 30/ID, 37.