Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Zarader (1990:54-55) – o Aberto (das Offene)

domingo 10 de dezembro de 2023

João Duarte

Mas como pode este ente ser, quer dizer vir à presença e perdurar nessa presença, se não for a partir de um espaço de jogo prévio, que é o único a conceder-lhe o eclodir como presente? É esse espaço de jogo que Heidegger chama o Aberto (das Offene). E é precisamente porque tudo o que está presente, e que por isso chamamos «ente», só pode ser a partir desse espaço de jogo e dentro dele, que Heidegger chama a esse ente-presente ein Offenbares [1]: algo que somente pode tornar-se «manifesto», e consequentemente ser «descoberto» , porque procede do Aberto.

O Aberto, que é a condição primeira para que o ente apareça como tal, não é pois, muito evidentemente, constituído pelo ente (uma vez que, pelo contrário, permite o seu surgimento). Mas também não é constituído pela representação, uma vez que é só no interior desse Aberto que é possível instaurar uma relação com o ente, referir-se a ele. Heidegger chama comportamento (Verhalten) a esta relação muito geral com o ente, de que a representação cognitiva é apenas um modo entre outros. Ora, mesmo se alargarmos a intencionalidade a todos os comportamentos, na acepção [68] heideggeriana   deste termo, mostra-se claramente que ela supõe esta abertura prévia, que é a única a partir da qual o ente se dá como ente, a única em cujo interior posso instaurar uma relação com ele.

O Aberto é pois, com todo o rigor, duplamente prévio: se o ente só pode surgir e ser a partir dele, eu próprio só posso ser e relacionar-me com o ente estando também nele. Aqui é preciso estar particularmente atento à linguagem heideggeriana  : do mesmo modo que o ente surgido do Aberto é chamado ein Offenbares, também ο comportamento que se refere ao ente assim manifestado é chamado offen. O estar-aberto ou a apritude do comportamento, como o estar-descoberto do ente, só recebem o seu nome e o seu ser da abertura prévia de um domínio onde cada um dos dois, coisa e representação, pode ser, e estar em relação.

Vemos assim mais claramente em que é que a verdade da enunciação é necessariamente segunda em relação à da aparição. O ente só pode ser enunciado tal como é (verdade predicativa) se já surgiu como tal, quer dizer como aberto-revelado, para um comportamento ele próprio aberto. Só o ente assim descoberto pode tornar-se modelo ou medida de uma representação adequada. Portanto, é efectivamente a ordem do ente que, mais originalmente que a ordem do juízo, deve ser tida por «lugar» da verdade: esta é o que Heidegger chama a verdade ôntica (ou antepredicativa), verdade que é de facto a da «coisa», mas que já nada tem de uma conformidade: é o estar-descoberto (Entdeckheit) do ente como tal. Compreende-se assim a formulação decisiva de Vom Wesen der Wahrheit·. «A verdade não tem a sua residência original na proposição».

[ZARADER  , Marlène. Heidegger e as palavras da origem. Tr. João Duarte. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 68-69]

Original

Mais comment cet étant pourrait-il être, c’est-à-dire venir à la présence et perdurer en cette présence, si ce n’était à partir d’un espace de jeu préalable, qui seul lui accorde d’éclore comme présent ? C’est cet espace de jeu que Heidegger nomme l’Ouvert (das Offene). Et c’est précisément parce que tout ce qui est présent, et que pour cette raison nous appelons « étant », ne peut être qu’à partir de cet espace de jeu et en lui, que Heidegger nomme cet étant-présent ein Offenbares [2] : quelque chose qui ne peut devenir « manifeste », et donc être « découvert », que parce qu’il procède de l’Ouvert.

L’Ouvert, qui est la condition première pour que l’étant apparaisse comme tel, n’est donc bien évidemment pas constitué par l’étant (puisqu’il en permet au contraire le surgissement). Mais il n’est pas non plus constitué par la représentation, puisque ce n’est qu’à l’intérieur de cet Ouvert qu’il est possible d’instaurer une relation à l’étant, de se rapporter à lui. Heidegger nomme comportement (Verhalten) ce rapport très général à l’étant, dont la représentation cognitive n’est qu’un mode parmi d’autres. Or, même si nous élargissons l’intentionnalité à tout comportement, dans l’acception heideggerienne de ce terme, il apparaît clairement qu’elle suppose cette ouverture préalable, à partir de laquelle seule l’étant se donne comme étant, et à l’intérieur de laquelle seulement je puis instaurer une relation à lui.

L’Ouvert est donc, en toute rigueur, doublement préalable : si l’étant ne peut surgir et être qu’à partir de lui, je ne puis moi-même être et me rapporter à l’étant qu’en me tenant également en lui. Il faut ici être tout particulièrement attentif au langage heideggerien : de même que l’étant surgi de l’Ouvert est nommé ein Offenbares, de même, le comportement qui se rapporte à l’étant ainsi manifeste est dit offen. L’être-ouvert ou l’apérité du comportement, comme l’être-découvert de l’étant, ne tiennent leur nom et leur être que de l’ouverture préalable d’un domaine où chacun des deux, chose et représentation, peut être, et être en relation.

On voit ainsi plus clairement en quoi la vérité de l’énonciation est nécessairement seconde par rapport à celle de l’apparition. L’étant ne pourra être énoncé tel qu’il est (vérité prédicative) que s’il a déjà surgi comme tel, c’est-à-dire comme ouvert-révélé, pour un comportement lui-même ouvert. Seul l’étant ainsi découvert peut devenir modèle ou mesure d’une représentation adéquate. C’est donc bien l’ordre de l’étant qui, plus originellement que l’ordre du jugement, doit être tenu pour le « lieu » de la vérité : telle est ce que Heidegger nomme la vérité ontique (ou antéprédicative), vérité qui est bien celle de la « chose », mais qui n’a plus rien d’une conformité : elle est l’être-découvert (Entdecktheit) de l’étant comme tel. On comprend ainsi la formule décisive de Vom Wesen der Wahrheit : « La vérité n’a pas sa résidence originelle dans la proposition » [3].

ZARADER, M. Heidegger et les paroles de l’origine. Paris: Vrin, 1990.


Ver online : Marlène Zarader


[1GA9:80: «Aquilo que é assim, no sentido estrito da palavra, manifesto (das Offenbare), experimentou-o precocemente o pensamento ocidental como “o presente” (das Anwesende) e desde então chamou-o “o ente” (das Seiende).»

[2GA9:80 (Qu. I, 170) : « Cela seul qui est ainsi, au sens strict du mot, manifeste (das Offenbare), la pensée occidentale l’a précocement éprouvé comme “ le présent ” (das Anwesende) et la depuis longtemps nommé “ l’étant ” (das Seiende) ».

[3Ibid., p. 81 (172) : Wahrheit ist nicht ursprünglich im Satz beheimatet.