Tomemos, então, como faz Heidegger, o ponto de partida mais regular e imediato que temos: nossas relações com as coisas. Obviamente, falar sobre coisas já apresenta um problema inicial: de que tipo de coisas estamos falando, o que é uma coisa, queremos dizer a mesa, o chão, a ideia ou a justiça? Se pretendemos realizar uma “definição” desde o início, a própria intenção já aponta em uma direção, talvez despercebida, que estabelece um certo quê como guia. E isso constituiria uma maneira peculiar de ver as coisas. No entanto, se não partirmos de um certo “o quê”, ou se não soubermos o que queremos dizer com o termo “coisa”, podemos sequer falar de coisas? Apoiando-nos em Heidegger, responderemos afirmativamente porque partimos de uma interpretação do ser humano cuja descrição inicial consiste em ser uma cadeia de comportamentos: andar no chão, escrever uma palestra, pensar em uma paisagem, ver uma montanha, etc. Parece que falar sobre as coisas dessa maneira é o menos filosófico e fenomenológico. Entretanto, se falamos dessa maneira, é precisamente porque estamos olhando para um domínio que passou despercebido por grande parte da tradição. Se foi notado, foi para destacar sua inutilidade no campo da tematização filosófica: como se poderia fazer filosofia com base em algo tão trivial como o comportamento cotidiano, que se caracteriza precisamente por sua indeterminação e indiferença? É justamente Husserl que enfatiza a pressuposição desnecessária de um eu ou de algum núcleo metafísico semelhante, caracterizando a consciência meramente como o fluxo de experiências em seu caráter intencional. Seu aluno Heidegger aprendeu bem a lição, embora tenha visto nesse fluxo de atos ou experiências não apenas o caráter intencional em relação a um objeto. A visão aguda de Heidegger detectou que o fato de estar sempre direcionado a algo mostra características ontológicas determinantes do ente no qual esse fluxo de experiências está reunido: por um lado, este ente já está sempre no meio de entes e, ao mesmo tempo, absorvido em uma cadeia de comportamentos.
Mas a tradição filosófica não mostrou que tudo, na medida em que é acessível, já é determinado? Somente aquilo que não é acessível por meio dos limites da finitude poderia ser considerado indeterminado, mas essa possibilidade é negada ao ser humano. Quando falamos aqui, com Heidegger, do reino indeterminado e indiferente das coisas, estamos nos referindo ao caráter de regularidade e imediatismo da vida cotidiana. Aí, as coisas com as quais estamos lidando não são, como para a tradição moderna, objetos de experiência primariamente cognoscíveis, mas aquilo que, com base em uma interpretação original do ser do ser humano como Dasein, ou seja, como uma entidade existente, se abre em seu caráter correspondente de imediatismo. Assim, na vida cotidiana, o que primeiro chamamos de “coisas” não são objetos cognitivamente determinados, mas coisas de ocupação prática: aquilo com que estamos ocupados. Este fato fenomenológico do ponto de partida daquilo com que geralmente nos ocupamos é etimologicamente confirmado em espanhol com o termo “cosa”, que inicialmente nomeia uma suposição, um assunto, uma questão: uma causa, no sentido jurídico [Gómez de Silva, 1991: 192].
No entanto, pode-se objetar aqui que essa indeterminação se aplica apenas em uma tematização fora do comportamento específico, mas que a coisa é algo determinado para o ato correspondente. Por exemplo, que uma cadeira é algo determinado para o ato de sentar-se nela. No entanto, a ideia de determinação não se encontra ipso facto em qualquer comportamento precisamente porque não é algo isolado, mas todo comportamento ateórico ocorre em respectivas cadeias nas quais algo está sempre em referência a outros “algo”. Assim, o caráter de indeterminação a que nos referimos com relação à cadeira, por exemplo, indica que, quando me sento na cadeira, ela não é determinada a partir de si mesma, isoladamente, mas a partir do horizonte no qual está localizada e no qual eu a utilizo. A cadeira se tornaria determinada ao ser arrancada de seu complexo referencial e estabelecida como algo em uma determinada direção interpretativa-epistemológica: como uma peça de mobília, como um pedaço de madeira, como um objeto de inovação, como uma peça de museu e assim por diante.
Assim, o fato de que sempre temos a ver com as coisas não significa que sempre realizamos uma determinação epistemológica ou ontológica da coisa como um objeto ou como algo material ou corpóreo, mas mostra o fato de estarmos sempre ocupados. Falar já de uma coisa determinada é nos distanciarmos da ocupação original na qual nos encontramos indeterminadamente. Na determinação, a coisa da ocupação é especificada em um certo sentido epistemológico ou ontológico. Assim, os limites do conhecimento investigados pela modernidade têm como ponto de partida uma interpretação da coisa como determinada e diferenciada, e não uma coisa de cotidiano indeterminado e indiferente. Esta última nem sequer é considerada um possível problema filosófico, precisamente porque o ponto de partida é a entidade isolada e conhecível. Nessa perspectiva, o que talvez pudesse ser entendido como “cotidiano” seria a relação frequente entre o ser humano e a soma de entes isolados.
Como sabemos, este tratamento do sentido das coisas e a tematização do cotidiano como um problema filosófico é algo que Heidegger consegue ver desde suas primeiras lições e que ele confronta com constantes referências à tradição. Assim, a experiência do ambiente em sua primeira aula como Privatdozent, em 1919, leva à análise da mundanidade do mundo, que acaba sendo uma verdadeira introdução à sua obra Ser e Tempo , de 1927. Ao introduzir, já em sua magnum opus, a análise da mundanidade em geral no § 15, Heidegger lembra que os gregos tinham um termo apropriado para as coisas da ocupação cotidiana: ta prágmata [STJR :90]. Assim como os prágmata gregos eram compreendidos com base na práxis como conhecimento, para Heidegger o que as coisas são será mostrado em uma análise ontológica radical daquele ente que está no meio das coisas: o ente que existe ou Dasein. Mas se os gregos já haviam discernido a imediaticidade prática das coisas, por que isso não foi mantido na tradição e, em vez disso, o ser humano foi pensado teoricamente como uma ente-aí frente a outros entes-aí, ou como um ente cuja determinação essencial consistia precisamente em determinar entes em várias regiões e diferenciá-las do reino originalmente indiferenciado, até mesmo omitindo esse reino por completo?