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Romano (1999:25-28) – Ereignis

terça-feira 17 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

Mas esse duplo desdobramento do ser e do ente como sobrevir descobridor e surgir encobridor, esse movimento da diferença que é a própria diferença em movimento, a diferenciação dos dois, tem, a partir de então, a consequência de que não é apenas o ser que, como uma passagem "em direção" ao ente, é pensado como um evento; é o ente que é compreendido e determinado segundo o gesto do diferenciar-se do ser. Não é apenas o ser, então, mas o próprio ente que, pensado a partir da "mobilidade" mais profunda da verdade como Unverborgenheit, é determinado como o evento de seu próprio surgir a descoberto enquanto o ser aí se recobre e ofusca. Como resultado, quaisquer que sejam as múltiplas ressonâncias que possam ser ouvidas nele, parece impossível arrancar inteiramente aquilo a partir do qual o próprio ser se dá, o Es de "Es gibt (Sein)", o Ereignis, do registro do evento, mesmo que seu significado não seja reduzido a ele nem exaurido por ele. Ou melhor, se a tradução dessa palavra-guia do pensamento último de Heidegger por "evento" parece, reconhecidamente, completamente inadequada, a mais frequentemente preferida, "apropriação", que enfatiza a raiz eigen, próprio, é igualmente insatisfatória. Como Wolfgang Brokmeier aponta em seu estudo "Heidegger und wir" [1], Ereignis só aparentemente deriva de eigen, no sentido de próprio; a verdadeira construção da palavra é Er-äug-nis, que deriva do verbo äugen, olhar, anteriormente escrito eugen ou eigen. Portanto, como François Fédier corretamente aponta, "entender Ereignis fielmente à sua etimologia é, acima de tudo, não deixar escapar o aspecto ostensivo que se manifesta nela. Ereignis deve ser entendido como o movimento que leva à visibilidade, que torna possível ver, que faz aparecer e, portanto, se destacar" [2]. Além das considerações sobre tradução, o valor dessas observações reside no fato de que elas mostram algo daquilo que Heidegger tem diante de seus olhos. Se esse significado originalmente ostensivo de Ereignis é primário, o significado de "evento" deriva dele: é porque, com ele, ocorre uma manifestação que Ereignis então assume o significado daquilo que, pelo fato de emergir, faz evento. E Fédier pode então concluir: "Mas se olharmos de perto, Ereignis nomeia não o evento, mas o que faz que haja evento: o aparecimento que primeiro ocorre […] para que um evento possa aparecer" [3]. O Ereignis é, portanto, aquilo que torna possível algo como o ser e, mais precisamente, aquilo a partir do qual o próprio ser pode se mostrar e aparecer (ficar sob o olhar, de acordo com a raiz Er-äugen) como um evento, a dimensão oculta e, ainda assim, essencial, graças à qual a própria eventualidade do ser pode ser mostrada e, assim, a copertencimento deste e do tempo. Nessa medida, o Ereignis é de fato aquilo a partir do qual a posição da questão do ser se torna inteligível, mas que, fora dos caminhos traçados por esse pensamento do ser, é reduzido a uma palavra vazia. Em outras palavras, não se pode opor a tentativa de elaboração de uma fenomenologia do evento autônomo ao Ereignis heideggeriano, como se ele pudesse ser dissociado da própria posição da questão do ser, cuja originalidade tentamos identificar. O Ereignis é a "condição" da manifestação do ser como evento. Portanto, é ao ser, mais uma vez, que devemos retornar, para formular, uma última vez, nossa pergunta: um pensamento do ser é proporcional ao que os eventos manifestam de si mesmos a partir de si mesmos, a partir de sua fenomenalidade? Eles podem ser pensados pelo critério de uma "ontologia", mesmo que profundamente reformulada, como a ontologia fundamental do Dasein?

Basicamente, a alternativa decisiva é a seguinte: Heidegger pensa o próprio ser como um evento, caso em que uma hermenêutica do evento parece metodologicamente preordenada a qualquer ontologia, mesmo "fundamental"; ou é todo evento que só é pensável dentro do horizonte do Evento do ser? Mas essa alternativa é certamente muito rígida para receber uma resposta simples, a fortiori dentro da estrutura restrita de uma introdução. Para esperar até mesmo o início de uma resposta aqui, teríamos que dar um passo a mais. Teríamos que indagar — uma questão que certamente transcende qualquer história da filosofia no sentido tradicional e qualquer investigação factual sobre o que Heidegger pensou ou não; uma questão que pressupõe, portanto, uma verdadeira orientação para os fenômenos que Heidegger tem em mente e se esforça por tornar visíveis — sobre o seguinte ponto: que lugar a "ontologia" heideggeriana   dá aos eventos em sua pluralidade irredutível e como ela explica, à luz de seus existenciais, a fenomenalidade que lhes é própria?

Aqui é revelado um paradoxo que é constitutivo desse pensamento, um paradoxo que não é de modo algum arbitrário, mas que está enraizado em sua "própria coisa". Na medida em que o Dasein é determinado como seu próprio evento, o evento de ser ou existir (no sentido verbal) que é, ao mesmo tempo, o evento do ser, o desvelamento do ser na compreensão (Verstehen), nenhum outro evento além daquele que ele mesmo "é" pode ocorrer a tal existência. A análise existencial pode, portanto, apenas declinar em suas várias modalidades o evento único que o próprio Dasein é, o evento de seu ser. Os existenciais são essas várias modalidades de um único evento de ser. Não apenas a constituição ontológica do ser não inclui qualquer relação com eventos (Ereignisse), mas, por sua própria constituição, o Dasein recusa todos os eventos. É por isso que, sempre que há uma questão de eventos na ontologia fundamental — isso dito, por enquanto, sujeito a demonstração posterior [4] esses eventos pertencem a uma compreensão imprópria (uneigentliche) que o Dasein tem de si mesmo: em particular naqueles momentos cruciais que são, para a analítica existencial, a interpretação do ser-para-a-morte ou o chamado da consciência.


Ver online : Claude Romano


ROMANO, Claude. L’événement et le monde. Paris: PUF, 1999


[1W. Brokmeier, "Heidegger und wir", Genos, Lausanne, 1992, p. 61-95; citado por F. Fédier, Regarder voir, Paris, 1995, p. 116

[2Regarder voir, op. cit., p. 116

[3Ibid., p. 117 (grifo nosso)

[4Cf. infra, § 18.