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Ferreira da Silva (2010:609-612) – Diálogo do Rio

segunda-feira 8 de julho de 2024, por Cardoso de Castro

O espírito fluvial do rio através do leito das coisas. Entretanto, parece que não é o rio que flui nas coisas, mas as coisas que fluem no rio, heracliteanamente. Na urdidura líquida das águas aparecem estranhas figuras e desenhos bizarros que não detêm o seu fluir, mas que deslizam no tempo desse Tempo. Esse rio corre porque só pode correr. O poder-correr de seu correr é uma lei secreta que “ama ocultar-se”. Quem deflagrou esse rio em seu correr? Quem pôs as coisas a correr ou pôs o correr como coisas? – Quem pergunta, busca uma resposta e o espírito fluvial põe-se em diálogo. O diálogo pede os dialogantes conclamados pelo espírito do diálogo e pelo espírito do rio. E duas vozes se defrontam na imensidão dos tempos.

Voz I – Esse rio é cheio de formas e de vida como o estanque de que falava Leibniz  . E não existe se não nas formas fugidias que o habitam.

Voz II – Entretanto, não se identifica com qualquer dessas formas ou vidas!

Voz I – Ou melhor, é mais do que elas justamente por ser o advir simultâneo ou sucessivo de todas!

Voz II – Mas então é um rio que corre ao contrário de todos os rios?

Voz I – Não percebo o significado de tua pergunta.

Voz II – Todos os rios correm das fontes para o mar. E as fontes são o passado do rio. Os rios provêm e não advêm das fontes. Mas o rio que somos advêm de uma fonte de ser por vir. Essa fonte, pois, é o futuro do rio.

Voz I – Que coisas estranhas dizes, falas como as antigas Sibilas! Admito que as águas deste rio assemelham-se a um diagrama que fosse magicamente se presentificando a partir do nada.

Voz II – É certo que há algo de mágico, de Magia cosmogônica, na geração espontânea desse monstro. É um ser que provêm ex nihilo.

Voz I – Consideras que o futuro, que o possível é o Nada?

Voz II – Não; acredito que o futuro, essa franja de potencialidades futuras que rodeiam uma coisa é justamente o que permite sua “constituição” contínua.

Voz I – As essências de que falava Platão corresponderiam pois às possibilidades que se entificam perenemente no ser-presente das presenças?

Voz II – Creio que o mundo flui do futuro para o presente e daí para o passado.

Voz I – Então o poder-ser é mais forte e decisivo que o estar-aí do real?

Voz II – O real se realiza e o realizar-se do real é a sua essência. Um dos maiores filósofos de nossa época afirmou que o mundo se mundifica (die Welt weitet).

Voz I – O ocorrer do mundo seria, então, o seu porvir, a partir do horizonte virtual consignante. Esse mundo futuro consignante deteria portanto o título de Fons et Origo.

Voz II – Se falamos de uma primazia do futuro na estrutura do Mundo, isso não significa que devemos esquecer que o tempo é constituído por três dimensões, todas elas essenciais à compreensão do existente.

Voz I – O momento prospectivo, o ser-antecipadamente-si-mesmo é um traço preponderante nesta ontologia do Mundo e que nos permite compreender o Ser como projeto (Entwurf), isto é, como domínio projetante.

Voz II – A forma das coisas é desenhada originalmente num transcender imaginante, através de uma imaginação produtiva que configura seu espaço de manifestação. É certo que essa imaginação não é um poder humano, pois o homem consiste num algo imaginado ou consignado por essa imaginação que é uma Imaginatio Divina.

Voz I – Queres então dizer que ao des-fechar as coisas, prospeccionando-as imaginativamente, os Deuses des-fecham o tempo e o fazem fluir?

Voz II – O rio do tempo ou dos tempos seria, segundo creio, algo de construído ou de desobstruído, da mesma maneira pela qual se abrem comportas para que fluam os nossos rios intramundanos.

Voz I – Compreendo. Todo o movimento do movível está ancorado na Imobilidade desse Abrir ou Des-obstruir ek-stático. Na cena imóvel de uma prospecção mitológica transcorre o movimento voraz das o-corrências.

Voz II – A lei que “ama ocultar-se” seria essa proto-ocorrência do Ser, como abrir do aberto. O manifestado ocorrente e corrente estaria fundado numa secreta e oculta des-ocultação que marcaria a irrupção de um tempo.

Voz I – Todo o tempo seria o tempo de uma Fascinação, a vigência de uma morfologia das coisas. Sem algo que possa ser gerado ou corrompido, não poderíamos viver a usura ou passagem das coisas.

Voz II – Entretanto, a temporalidade da cena des-fechante não está, por sua vez, imersa num processo ou temporalidade transcendente? Heidegger não falou numa História do Ser? Existiria talvez uma sucessão além das sucessões intramundanas.

Voz I – Estamos então diante de uma lei mais secreta que a lei que “ama ocultar-se”. A experiência do fundamento arrasta-nos. Segundo me parece, de segredo em segredo. E deparamos assim com cadeias cada vez mais secretas de princípios.

Voz II – Nesse ponto creio que o pensamento é vítima de uma ilusão, quando tenta aplicar no fundante a lei do fundado. O império des-fechante do Ser é um poder deflagrador, um puro abrir que é em si mesmo isento de qualquer multiplicidade. A transcendência de seu reino torna-o indene a qualquer de suas epocalidades.

Voz I – Todo ente ou corte de possibilidades de desempenhos sugeridos por esse Poder são sugestões induzidas pelo Ser-Su-gestor, mas esse último se esquiva à multiplicidade do Sugerido.

Voz II – Então o Ser-Sugestor, não tendo qualquer convivência com o sugerido entitativo, é meta-temporal, sendo o tempo algo de interno ao seu poder. A pluralidade inerente às manifestações do Ser, as épocas mundiais ou as diversas teofanias não pluralizam ou temporalizam a sua própria Origem transcendental-transcendente. A luz está sempre além do iluminado.

Voz l – O que Heidegger denomina a História do Ser seria, no fundo, a sucessão de suas parusias e a sua dialética interna. Não podemos falar da história do que é, por essência, meta-histórico, do que é regaço deflagrador de toda sucessão.

Voz II – Mas o Ser está presente em todas as suas parusias ou desvelamentos, desde que sua ação única (e assim podemos expressar-nos) é justamente a de des-velar. Mas essa ação não se serializa como o agido. As fulgurações do Ser nascem de seu poder fulgurante e não comprometem a Unidade de sua fulguração originante.

Voz I – Existe, entretanto, nessas fulgurações a que te referes, e que em última instância são as Matrizes míticas da História, uma fidelidade maior ou menor ao Ser-Sugestor. Ou por outra, existe uma proximidade maior ou menor da Vida em relação à verdade originante.


Ver online : Vicente Ferreira da Silva


FERREIRA DA SILVA, Vicente. Transcendência do Mundo. São Paulo: É Realizações, 2010