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Signos

Merleau-Ponty (1960:111-115) – a sedimentação

3. Relação entre o significante e o significado. A sedimentação

sábado 17 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

A significação anima a palavra como o mundo anima meu corpo: por uma surda presença que desperta minhas intenções sem se mostrar abertamente diante delas.

Gomes Pereira

Se a palavra é comparável a um gesto, o que ela está encarregada de expressar terá com ela a mesma relação que o alvo tem com o gesto que o visa, e nossas observações sobre o funcionamento do aparelho significante já envolverão uma certa teoria da significação que a palavra expressa. Meu enfoque corporal dos objetos que me rodeiam é implícito, e não supõe tematização alguma, “representação” alguma de meu corpo nem do meio. A significação anima a palavra como o mundo anima meu corpo: por uma surda presença que desperta minhas intenções sem se mostrar abertamente diante delas. A intenção significativa em mim (assim como no ouvinte que a reencontra ao ouvir-me) não é, no momento em que ocorre — mesmo que depois venha a frutificar em “pensamentos” —, senão um vazio determinado a ser preenchido por palavras; o excesso daquilo que quero dizer sobre o que é ou o que já foi dito. Isto significa: a) que as significações da palavra são sempre ideias no sentido kantiano, os polos de certo número de atos de expressão convergentes que magnetizam o discurso sem serem propriamente dados isoladamente; b) que, por conseguinte, a expressão nunca é total. Como observa Saussure, temos a impressão de que nossa língua expressa totalmente. Mas não é por expressar totalmente que é nossa, é por — ser nossa que acreditamos que expressa totalmente. “The man I love” é, para um inglês, uma expressão tão completa como, para um francês, “l’homme que j’aime” (o homem que amo). E “j’aime cet homme” (amo este homem) [96] é, para um alemão que pode mediante a declinação marcar expressamente a função do objeto direto, uma maneira extremamente alusiva de expressar-se. Logo, há sempre algum subentendido na expressão — ou melhor, a noção de subentendido deve ser rejeitada: só tem sentido se tomarmos por modelo e por absoluto da expressão uma língua (geralmente a nossa) que, na verdade, como todas as outras, nunca pode conduzir-nos “como pela mão” até a significação, até as próprias coisas. Não digamos, pois, que toda expressão é imperfeita porque subentende, digamos que toda expressão é perfeita na medida em que é compreendida sem equívoco, e admitamos como fato fundamental da expressão uma superação do significante pelo significado que é tomada possível pela virtude própria do significante; c) que esse ato de expressão, essa junção entre a palavra e a significação mediante a transcendência do sentido linguístico que ela visa não é para nós, sujeitos falantes, uma operação secundária, à qual recorreríamos apenas para comunicar ao outro os nossos pensamentos, e sim a tomada de posse por nós, a aquisição de significações que, de outro modo, só se fazem presentes surdamente. Se a tematização do significado não precede a palavra, é porque ela é seu resultado. Insistamos nesta terceira consequência.

Expressar, para o sujeito falante, é tomar consciência; ele não expressa somente para os outros, expressa para saber ele mesmo o que visa. Se a palavra quer encarnar uma intenção significativa que não passa de um certo vazio, não é só para recriar no outro a mesma carência, a mesma privação, mas também para saber de que há carência e privação. Como o consegue? A intenção significativa cria um corpo para si e conhece a si mesma ao procurar um equivalente seu no sistema de significações disponíveis, representado pela língua que falo e pelo conjunto dos escritos e da cultura de que sou o herdeiro. Trata-se, para esse desejo mudo que é a intenção significativa, de realizar um certo arranjo dos instrumentos já significantes ou das significações já falantes (instrumentos morfológicos, sintáticos, lexicais, gêneros literários, tipos de narrativa, modos de apresentação do acontecimento etc.) que suscite no ouvinte o pressentimento de uma significação diferente e nova, e inversamente realize naquele que fala ou escreve a fixação da significação inédita nas significações já disponíveis. Mas por que, como, em que sentido, estão estas disponíveis? Tornaram-se disponíveis [97] quando, a seu tempo, foram instituídas como significações às quais posso recorrer, significações que possuo — por uma operação expressiva da mesma espécie. É esta portanto que devo descrever se quero compreender a virtude da palavra. Compreendo ou julgo compreender as palavras e as formas do francês; tenho certa experiência dos modos de expressão literários e filosóficos que a cultura dada me oferece. Eu expresso quando, utilizando todos esses instrumentos já falantes, faço-os dizer algo que nunca disseram. Começamos a ler o filósofo dando às palavras que emprega o seu sentido “comum”, e pouco a pouco, por uma inversão de início insensível, a sua palavra vai dominando a sua linguagem, e é o emprego que lhe dá que acaba por revesti-la de uma significação nova e característica dele. Nesse momento, ele se fez compreender e sua significação instalou-se em mim. Diz-se que um pensamento é expresso quando as palavras convergentes que o visam são bastante numerosas e bastante eloquentes para designá-lo sem equívoco a mim, autor, ou aos outros, e para que tenhamos todos a experiência de sua presença carnal na palavra. Embora apenas umas Abschattungen (silhuetas) da significação sejam tematicamente dadas, a verdade é que, passado um certo ponto do discurso, as Abschattungen, consideradas em seu movimento, fora do qual nada são, contraem-se repentinamente numa única significação, sentimos que algo foi dito, assim como, acima de um mínimo de mensagens sensoriais, percebemos uma coisa, conquanto a explicitação da coisa vá por princípio ao infinito — ou assim como, espectadores de um certo número de condutas, acabamos por perceber alguém, conquanto, perante a reflexão, nenhum outro além de mim mesmo possa ser verdadeiramente, e no mesmo sentido, ego… As consequências da palavra, como as da percepção (e da percepção do outro em particular), ultrapassam sempre as suas premissas. Nós mesmos, que falamos, não sabemos necessariamente melhor o que expressamos do que quem nos escuta. Digo que sei uma ideia quando se instituiu em mim o poder de organizar em torno dela discursos que fazem sentido coerente, e mesmo esse poder não se deve ao fato de eu a possuir dentro de mim e de contemplá-la face a face, mas ao fato de eu ter adquirido certo estilo de pensamento. Digo que uma significação está adquirida e daí em diante disponível quando consegui fazê-la habitar num aparelho de palavra que inicialmente não lhe era destinado. Claro, os elementos desse aparelho expressivo [98] não a continham realmente: a língua francesa, logo que foi instituída, não continha a literatura francesa — foi preciso que eu os descentralizasse e os centralizasse novamente para fazê-los significar aquilo que eu visava. É precisamente essa “deformação coerente” (A. Malraux) das significações disponíveis que as ordena num sentido novo e faz com que os ouvintes, mas também o sujeito falante, deem um passo decisivo. Pois doravante as operações preparatórias da expressão — as primeiras páginas do livro — são retomadas no sentido final do conjunto e se apresentam imediatamente como derivadas desse sentido, agora instalado na cultura.

Original

Si la parole est comparable à un geste, ce qu’elle est chargée d’exprimer sera avec elle dans le même rapport que le but avec le geste qui le vise, et nos remarques sur le fonctionnement de l’appareil signifiant engageront déjà une certaine théorie de la signification que la parole exprime. Ma visée corporelle des objets de mon entourage est implicite, et ne suppose aucune thématisation, aucune « représentation » de mon corps ni du milieu. La signification anime la parole comme le monde anime mon corps : par une sourde présence qui éveille mes intentions sans se déployer devant elles. L’intention significative en moi (comme aussi chez l’auditeur qui la retrouve en m’entendant) n’est sur le moment, et même si elle doit ensuite fructifier en « pensées » – qu’un vide déterminé, à combler par des mots, – l’excès de ce que je veux dire sur ce qui est ou ce qui a été déjà dit. Ceci signifie : a) que les significations de la parole sont toujours des idées au sens kantien, les pôles d’un certain nombre d’actes d’expression convergents qui aimantent le discours sans être proprement donnés pour leur compte ; b) que, par suite, l’expression n’est jamais totale. Comme le remarque Saussure, nous avons le sentiment que notre langue exprime totalement. Mais ce n’est pas parce qu’elle exprime totalement qu’elle est nôtre, c’est parce qu’elle est nôtre que nous croyons qu’elle exprime totalement. « The man I love » est, pour un Anglais, une expression aussi complète que, pour un Français, « l’homme que j’aime ». Et « j’aime cet homme » est, pour un Allemand qui peut par la déclinaison marquer expressément la fonction du complément direct, une manière tout allusive de s’exprimer. Il y a donc toujours du sous-entendu dans l’expression, – ou plutôt la notion de sous-entendu est à rejeter : elle n’a un sens que si nous prenons pour modèle et pour absolu de l’expression une langue (d’ordinaire la nôtre) qui, en fait, comme toutes les autres, ne peut jamais nous conduire « comme par la main » jusqu’à la signification, jusqu’aux choses mêmes. Ne disons donc pas que toute expression est imparfaite parce qu’elle sous-entend, disons que toute expression est parfaite dans la mesure où elle est comprise sans équivoque et admettons comme fait fondamental de l’expression un dépassement du signifiant par le signifié que c’est la vertu même du signifiant de rendre possible, c) que cet acte d’expression, cette jonction par la transcendance du sens linguistique de la parole et de la signification qu’elle vise n’est pas pour nous, sujets parlants, une opération seconde, à laquelle nous n’aurions recours que pour communiquer à autrui nos pensées, mais la prise de possession par nous, l’acquisition de significations qui, autrement, ne nous sont présentes que sourdement. Si la thématisation du signifié ne précède pas la parole, c’est qu’elle en est le résultat. Insistons sur cette troisième conséquence.

Exprimer, pour le sujet parlant, c’est prendre conscience ; il n’exprime pas seulement pour les autres, il exprime pour savoir lui-même ce qu’il vise. Si la parole veut incarner une intention significative qui n’est qu’un certain vide, ce n’est pas seulement pour recréer en autrui le même manque, la même privation, mais encore pour savoir de quoi il y a manque et privation. Comment y parvient-elle ? L’intention significative se donne un corps et se connaît elle-même en se cherchant un équivalent dans le système des significations disponibles que représentent la langue que je parle et l’ensemble des écrits et de la culture dont je suis l’héritier. Il s’agit, pour ce vœu muet qu’est l’intention significative, de réaliser un certain arrangement des instruments déjà signifiants ou des significations déjà parlantes (instruments morphologiques, syntaxiques, lexicaux, genres littéraires, types de récit, modes de présentation de l’événement, etc.) qui suscite chez l’auditeur le pressentiment d’une signification autre et neuve et inversement accomplisse chez celui qui parle ou qui écrit l’ancrage de la signification inédite dans les significations déjà disponibles. Mais pourquoi, comment, en quel sens, celles-ci sont-elles disponibles ? Elles le sont devenues quand elles ont, en leur temps, été instituées comme significations auxquelles je puis avoir recours, que j’ai, – par une opération expressive de même sorte. C’est donc celle-ci qu’il faut décrire si je veux comprendre la vertu de la parole. Je comprends ou crois comprendre les mots et les formes du français ; j’ai une certaine expérience des modes d’expression littéraires et philosophiques que m’offre la culture donnée. J’exprime lorsque, utilisant tous ces instruments déjà parlants, je leur fais dire quelque chose qu’ils n’ont jamais dit. Nous commençons à lire le philosophe en donnant aux mots qu’il emploie leur sens « commun », et, peu à peu, par un renversement d’abord insensible, sa parole maîtrise son langage, et c’est l’emploi qu’il en fait qui finit par les affecter d’une signification nouvelle et propre à lui. À ce moment, il s’est fait comprendre et sa signification s’est installée en moi. On dit qu’une pensée est exprimée lorsque les paroles convergentes qui la visent sont assez nombreuses et assez éloquentes pour la désigner sans équivoque à moi, auteur, ou aux autres, et pour que nous ayons tous l’expérience de sa présence charnelle dans la parole. Bien que seules des Abschattungen de la signification soient thématiquement données, le fait est que, passé un certain point de discours, les Abschattungen, prises dans son mouvement, hors duquel elles ne sont rien, se contractent soudain en une seule signification, nous éprouvons que quelque chose a été dit, comme, au-dessus d’un minimum de messages sensoriels, nous percevons une chose, quoique l’explicitation de la chose aille par principe à l’infini, – ou comme, spectateurs d’un certain nombre de conduites, nous en venons à percevoir quelqu’un quoique, devant la réflexion, aucun autre que moi-même ne puisse être vraiment, et dans le même sens, ego… Les conséquences de la parole, comme celles de la perception (et de la perception d’autrui en particulier), passent toujours ses prémisses. Nous-mêmes qui parlons ne savons pas nécessairement ce que nous exprimons mieux que ceux qui nous écoutent. Je dis que je sais une idée lorsque s’est institué en moi le pouvoir d’organiser autour d’elle des discours qui font sens cohérent, et ce pouvoir même ne tient pas à ce que je la posséderais par-devers moi et la contemplerais face à face, mais à ce que j’ai acquis un certain style de pensée. Je dis qu’une signification est acquise et désormais disponible lorsque j’ai réussi à la faire habiter dans un appareil de parole qui ne lui était pas d’abord destiné. Bien entendu, les éléments de cet appareil expressif ne la contenaient pas réellement : la langue française, aussitôt instituée, ne contenait pas la littérature française, – il a fallu que je les décentre et les recentre pour leur faire signifier cela que je visais. C’est précisément cette « déformation cohérente » (A. Malraux) des significations disponibles qui les ordonne à un sens nouveau et fait franchir aux auditeurs, mais aussi au sujet parlant, un pas décisif. Car désormais, les démarches préparatoires de l’expression, – les premières pages du livre, – sont reprises dans le sens final de l’ensemble et se donnent d’emblée comme dérivées de ce sens, maintenant installé dans la culture. Il sera loisible au sujet parlant (et aux autres) d’aller droit au tout, il n’aura pas besoin de réactiver tout le processus, il le possédera éminemment dans son résultat, une tradition personnelle et interpersonnelle aura été fondée. Le Nachvollzug, délivré des tâtonnements du Vollzug, en contracte les démarches dans une vue unique, il y a sédimentation, et je pourrai penser au-delà. La parole, en tant que distincte de la langue, est ce moment où l’intention significative encore muette et tout en acte s’avère capable de s’incorporer à la culture, la mienne et celle d’autrui, de me former et de le former en transformant le sens des instruments culturels. Elle devient « disponible » à son tour parce qu’elle nous donne après coup l’illusion qu’elle était contenue dans les significations déjà disponibles, alors que, par une sorte de ruse, elle ne les a épousées que pour leur infuser une nouvelle vie.


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