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Luzie (1999:29-36) – Moíra

quinta-feira 10 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

O autêntico princípio enquanto salto é sempre um salto antecipativo em que o que ainda há de vir já está ultrapassado, se bem que veladamente. [GA9  :64]

É a partir da conferência Moíra que Heidegger vai dizer que, no fragmento de Parmênides, a expressão aparece numa proposição subordinada, acrescentada sem barulho, mas que, ainda assim, está lá. Assim é. Moíra é o envio, o desdobrar-se que tem início desde este envio, e o retorno ao mesmo. Envio é o que os gregos denominavam de ormh, ou seja, o primeiro élan, o primeiro assalto, ataque, impulso que é antecipador, porque já se mostra adiantadamente.

Moíra compreendida como Schickung é o envio do vigor — que é a força e a profundidade de existência — o qual Heidegger denominou espírito em sua obra intitulada Introdução à metafísica [GA40  ].

Espírito é a potenciação das potências do ente, como tal na totalidade. Onde domina o espírito, o ente se torna, como tal, sempre e cada vez mais ente. [GA40  , tr. Carneiro Leão  ]

A moira desata a dobradura, ela presenteia com a dobradura. Ao fazê-lo liga-se ao todo e ao repouso, o que possibilita à dobradura realizar-se como a presença dos presentes. Ela é o envio da presença como presença dos presentes. Ela compreende este sentido no que desata, no que libera a dobradura. Heidegger pergunta o que é isso que a Moíra dispensa e reparte, e, em fazendo isso, ata no todo e no repouso. Seria a presença? E o que acontece quando o ser-humano, o Dasein, não se dá conta da presença? O da de Dasein, o aí, o lugar, torna-se vácuo, já que não só obscurece a oportunidade de se apreender a permanência da presença das coisas presentes, como também o homem vagueia por entre os escombros de múltiplos entes.

3.2.1 — Moíra envia a presença, que só é presença, desde presente e no presente. Segundo Heidegger, o envio é a vigência do lançamento, da instauração e da fundação do suceder e do ser-presente. É o envio da dobradura (do ἐόν). Este enviar é o mesmo que comandar no sentido de reenviar, de recomendar, de confiar e de remeter um presente que é, ao mesmo tempo, um apelo e uma recomendação, de maneira a tornar-se uma promessa.

No livro Was heißt denken? [GA8  ], encontra-se, na íntegra, o curso de verão ministrado por Heidegger, no ano de 1952. Ao dar início à pergunta o que quer dizer pensar, Heidegger se detém na quarta possibilidade de perguntá-la, através da seguinte questão: O que nos conclama ao pensamento? [GA8  :80] A partir daí, Heidegger começa toda uma trajetória a fim de aprofundar o sentido originário da palavra heißen.

Heißen habitualmente quer dizer: chamar, nomear, interpelar, convidar, o que não quer dizer mandar ou sequer ordenar. É mais um convite do que uma exigência. Neste curso de verão, Heidegger cita uma passagem do Novo Testamento — Evangelho de São Mateus VIII, 18, onde aparece a palavra heißen. A passagem citada é aquela em que Cristo convida aqueles que o seguem a passarem para a outra margem do rio. Assim sendo, Heidegger torna explícito o sentido antigo da palavra heißen, que significa pôr-se a caminho e sobre o caminho, a partir de um convite que é feito com doçura e solicitude. Não é um comando, antes sim, uma recomendação que se traduz numa promessa (Verheißung). Promessa porque aquele que é convidado, isto é, o homem, é presenteado com um dote, um dote que é um dom e necessita ser cuidado e guardado, a fim de que possa se realizar, se desdobrar.

Promessa em alemão quer dizer Verheißung. O sufixo -ung marca o substantivo; já o prefixo ver- ratifica, fortalece o sentido do substantivo, ou seja, dá mais força ao convite, ao apelo, daí a palavra promessa. O envio (Schickung) põe em obra, a caminho e no caminho, isso que se faz sem que apareça, porque se faz com doçura e silenciosamente, porque pertence à dimensão do jogo do velamento e do desvelamento. Aquilo que nos convida a pensar, nos encaminha, nos direciona de uma tal maneira, que a partir deste remetimento nós podemos pensar. E ao aceitarmos este remetimento, nós participamos desta entrega e, desta feita, realizamos o pensamento.

Este apelo, este chamado vai nos procurar, nos buscar no âmago do que quer dizer ser Homem, uma vez que estamos implicados neste apelo, pelo simples fato de a ele pertencermos, por realizarmos o pensamento. Além disso, ele possui o caráter próprio de medida. Ele dá a medida ao ser o envio, o recomendar de toda e qualquer realização. Este apelo ao vir-à-tona que dá a medida, só é possível porque o envio da dobradura permanece sem cessar vigindo no passado, no presente e no futuro; por esta razão, ele dá a unidade da presença, uma vez que une o todo no âmbito e na simplicidade daquilo que está de pé.

Na língua alemã, Entstehung significa nascimento — tradução do grego γένεσις — e provém do verbo stehen que quer dizer estar de pé. O prefixo ent- encerra a experiência de liberação do movimento, de pôr em movimento.

Estar de pé quer dizer suster, erigir, por isso vigir na posição ereta. O estar posto de pé caracteriza a morada, a habitação desde onde se faz moradia enquanto estada. Estada, por expressar a fonte a partir da qual brotam os sulcos, as vias, as viagens de toda e qualquer senda. Neste sentido, é o envio que se faz ponta, lança e que fornece medida e orientação como recomenda.

Essa fonte é instauradora, principiadora, fundadora de mundo e de seu desdobramento histórico, isto é, ela instaura o espaço do aberto no qual os acontecimentos passam a se desenrolar, sobressaindo: o obscuro e o claro, o nascimento e a morte, a vitória e a derrota, de uma tal maneira que, para o ser-humano, vai tomando a forma de destino, cada vez que ele se relaciona com os fatos, os acontecimentos, as coisas, enfim… com ο ἐόν, na vigência de compreendê-los.

Ainda que o Dasein não escute o apelo da recomendação, ela permanece de pé, na simplicidade da aurora do dia. Quando nos fechamos à abertura do escutar, possibilitada pela presença demasiada do ente, o homem vagueia perdido dentre os escombros do presente. O império do presente no esquecimento da presença desnorteia a inocência que procura o retorno à fonte muda, maculando-a e antepondo obstáculos montanhosos ao vigir na proximidade do que é essencial. A entrega ao apelo primitivo e arcaico é o salto no obscuro que remove as montanhas e traz consigo a alegria do cantarolar e a re-abertura para a vigência do jogo.

Esse escutar constantemente renovado, uma vez que sempre esquecido, torna-se a grande tarefa do caminhar e, portanto, do viver. Renovação — essa metamorfose constante — que consiste na aceitação do apelo e de tudo que ele consigo traz.

3.2.2 — O lidar habitual com esta dimensão se direcionou para interpretá-la como sendo o substrato, a substância, ainda que numa noção estática, porque o próprio fluir, o próprio movimento no qual esta dimensão está imersa foi esquecido. Se a própria palavra Ser foi perdendo a sua experiência originária no sentido de acolher a temporalidade, muito mais o foi a μοίρα compreendida como Schickung, como começo do movimento.

Parmênides, ao dizer que a moíra liga-se ao todo e ao repouso, está descrevendo a experiência de retração, mas não retração no sentido negativo da palavra. Não há nenhuma negatividade que mova esta experiência. Retração provém do latim retrahere, que quer dizer trazer para si o próprio, puxar para trás o próprio; há, antes sim, o recolhimento, o retirar-se a fim de que o ente apareça, se faça presente. É o fenômeno da doação. Para que haja doação, faz-se necessário liberar o dote, o dom, mas também o recolher-se daquele que doa, caso contrário a doação deixa de ser doação e torna-se apresentação e representação.

Toda verdadeira doação se funda no repouso, no esconder-se daquele que doa, em certa quietude fechada do repousar em si. É um excesso, uma oferta. O verdadeiro doador não tem nome. Este, por sua vez, só doa porque é capaz, porque se encontra na possibilidade de fazê-lo. Ele está de posse de uma riqueza concentrada, plena, da qual ele pode fazer uso. O mesmo se pode dizer da moira enquanto envio. Ela é o todo em repouso. Aparentemente estática, ela é concentradora de vigências.

Estático é diferente de sem movimento: a experiência do não movimento faz parte da compreensão originária de moira, isto é, algo de atado e em repouso, mas que, por isso mesmo, concentra todas as possibilidades de movimento, da mesma forma que a cor preta concentra todas as possibilidades de cores. Já o estático é aquele do qual não mais se originará o movimento.

Na história do pensamento, Aristóteles fez o esforço de pensar esta experiência através do conceito de Motor Imóvel, ainda que tenha sido mal compreendido. Motor imóvel quer dizer: aquele que mantém atadas e concentradas todas as possibilidades de movimento. É o circular que propicia o círculo, que parece redondo e em repouso.

É a moíra que mantém o Ser [eón] atado ao todo e sem movimento, isto é, em repouso. Moíra enquanto Schickung, o sem movimento, é o poder originário sobre a mobilidade. Na verdade, trata-se da intensificação do movimento. O movimento encontra-se de tal maneira concentrado que nos traz a ideia de repouso.

Para Heidegger, o repouso é um gênero de movimento, é μεταβολή em grego, e em alemão Umschlag “…o movimento que não cessa de guardar poder tanto sobre a origem, quanto sobre a meta”… [GA9  :319] É o poder originário sobre o sucessivo, sobre a mobilidade do ente a partir de si mesmo e em direção a si mesmo.

Moíra é a entrega outorgante da dobradura e do seu desdobrar-se. Ela é o destino do Ser no sentido de ἐόν. [GA7  :244] Ela tem este sentido por desatar, por liberar o desdobrar da dobradura. Por isso, para Heidegger, história (Geschichte) é o destino da dobradura — a entrega abrigante, que abriga o desdobrar-se da presença que se aclara no presente. Este presente possui dois sentidos: o de algo que está presente e o presente enquanto uma doação. É o autêntico todo, o que não deixa nada de fora. E porque é tudo, e não está dado, é o perenemente buscado. A moíra é o todo unido. Ela dá a inteireza, a solidez do fundamento. Só que fundamento não é substrato, e sim, fundo. Fundo quer dizer profundidade, dimensão, intensidade, dinâmica, diretriz, medida, norte. Moíra como Schickung é o norteador. Norteador de quê? Do inteiro. Se não houvesse moira, nada seria inteiro e sim fragmento de um horrendo acaso. Moíra une o acaso, une o despedaçado. Moíra envia a dobradura, ou seja, a multiplicidade una, a diversidade que toma um norteador comum e, assim, torna-se um ente presente.

Moíra como envio é o sereno Assim é. Assim os acontecimentos, os fatos, enfim, a vida se dá. Tudo vige desde movimento, e, neste movimento, a percepção comum se atém apenas ao frenesi das mudanças. Não dá ouvidos ao aparentemente imperceptível que há na mudança. Lá, lateja permanentemente o desdobrar-se da dobradura. Há uma dobradura, um lugar de encontro que fala, que também nos remete ao outro do ente, à sua outra possibilidade, não experienciada, mas que lá está, silenciosa.


Ver online : Marta Luzie


LUZIE, M. A Dobra do Destino. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999