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Luzie (1999:24-29) – A Dobradura [eón - Zwiefalt]

quinta-feira 10 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Com um pouco de exagero, nós podemos afirmar: o destino do Ocidente depende da tradução da palavra eón. [GA9  :345]

Este sentido peculiar de μοίρα como o envio do ἐόν, isto é, como o envio do movimento e, portanto, o destino do Ser, foi muito pouco pensado pela tradição filosófica, uma vez que é o sentido originário e primevo da palavra Ser.

É importante ressaltar que quando Heidegger inicia a interpretação da frase de Parmênides, ele se dá conta de que Parmênides não está falando de modo algum do ente, antes sim, do ἐόν, que, no grego, descreve o participio do infinitivo είναι. Como todo participio, ele participa de duas formas, uma verbal e uma nominal, ou seja, toma parte em duas significações: “…o essencial é que as duas significações reenviam uma à outra” [GA8  :133], portanto, um único termo tem uma dupla significação, ele quer dizer duas coisas ao mesmo tempo. É como se houvesse uma única coisa dita duas vezes.

Todo e qualquer participio possui uma duplicidade de sentido. No caso do ἐόν, por ser o participio do verbo ser, ele possui um tipo de duplicidade que é incomparável, uma vez que ele é o enraizamento desde onde provêm os outros particípios. E por quê? Porque a duplicidade que este termo retrata diz respeito a toda e qualquer possibilidade de algo ser, daí ele ser o partícipe por excelência e o nome natural da dobradura, isto é, do lugar que acolhe a diferença entre ser e ente, uma vez que ele não é sinônimo de ente, tampouco de ser. Para Heidegger, ο ἐόν designa aquilo que fala em toda a possibilidade do dizer, já que na dualidade da significação participial, o que aparentemente possui o ar de argúcia gramatical é, na verdade, o enigma do Ser.

Não mais utilizaremos a palavra ser, no texto, com o sentido de dimensão reunidora da diferença. Quando estivermos tratando desta dimensão, utilizaremos a palavra natural para traduzi-la, ou seja: ἐόν, ou mesmo Ser em maiúsculo. A palavra ser já está demais carregada das noções de substancialidade (qüididade) e de estaticidade, que de uma certa forma contribuem enormemente para dificultar a liberação para a compreensão daquela dimensão supracitada como movimento e, portanto, como eixo que gira. Guardemos a palavra ser para a forma verbal de participação no ἐόν, isto é, como possibilidade ainda velada.

Este termo, para a língua alemã, Heidegger traduziu como Zwiefalt. O verbo falten quer dizer dobrar, fazer pregas. Zwie quer dizer dois. Traduções possíveis para esta palavra são: dobradura, dobra, prega ou, até mesmo, dobradiça. Escolhemos dobradura por ser o próprio resultado do ato de dobrar, isto é, um substantivo concreto. Ficamos assim, com uma tradução mais literal, já que o sentido nominal do participio ἐόν é concreto e não abstrato.

ἐόν nomeia o singular por excelência, que em sua singularidade é unicamente o um único que une ante toda numeração. No entanto é importante ressaltar que esta palavra guarda um movimento. Nela jaz, inerente, a possibilidade de ir e vir de um lado para o outro, isto é, de uma possibilidade para a outra, tal como a dobradiça é um eixo comum sobre o qual se gira. No entanto esta dobradura recôndita ficou esquecida, desaparecida, uma vez que deu lugar às expressões ser do ente e ente no ser. Por este motivo Heidegger nos convida a pensar a respeito do desdobramento desta dobradura que permanece na obscuridade, da duplicidade que advêm do Envio e que abriga a simplicidade do apelo.

Desta forma, o pensamento convidado pelo eón tem seu lugar na reunião entre ser e ente, porque ele é, cumpre e executa a reunião à qual é chamado (Geheiß), como a um pertencimento que é posto em obra a partir dele.

A dobradura que é ο ἐόν, quer dizer, o jogo permanente que perpassa o parecer e o aparecer, o velar-se e o desvelar-se, faz aparecer a presença do que se faz presente, ou seja, o desdobrar-se da dobradura que reside num aparecer iluminante, que se mostra, que se desvela e, ao fazê-lo, torna possível o dizer como aquilo que conclama.

Nesta perspectiva, ο ἐόν, a dobradura, impõe o predomínio de tudo aquilo que é. Não há nada para fora do pre-sente, uma vez que o Ser (ente e ser ao mesmo tempo) se concretiza como e no ente, e o ente só se faz presente como indício, sinal e fragmento no ser. Nada há para fora disso, há sim, para além, na vigência da possibilidade de, em se perscrutando o ente, escutar o Ser, e desta feita, preservar o espaço, o lugar, o sítio da reunião da diferença que é ο ἐόν, a dobradura, o Ser. A antiga noção de ser, como sendo um abstrato que se encontra plainando em alguma dimensão perdida, não possui lugar no pensamento de Heidegger.

Por isso nós devemos, ao menos, pensar se este desdobrar-se da dobradura, no sentido de des-velamento das coisas presentes, não é o mesmo, a saber: como isso que desvelando, desdobra a dobradura sobre seu caminho através da percepção reunidora da presença das coisas presentes. Percepção vem do latim per-capere, per-cipere que resultou em perceptum, perceptio. Capere quer dizer: tomar, apanhar, agarrar, obter, captar, compreender, ser capaz de. Per é uma preposição que traduz a circunstância de um lugar e, por isto, traduz o circular de um movimento. Comumente é traduzida como através de. Assim sendo, percepção concentra a experiência do aprender perpassando um caminho, isto é, caminhando.

Heidegger vai nos dizer que o pensamento pertence ao Ser, na medida em que ele é um movimento permanente, no sentido de aproximar-se da presença dos presentes, do ἐόν, que, por sua vez, é o movimento que gira em torno de si-mesmo, isto é, em torno do eixo que reúne as diferentes possibilidades. Neste sentido, voltamos a repetir, nada há para fora disto, pois ο ἐόν, como tal, repousa na dobradura de parecer e aparecer, de ser e ente, no desdobrar-se deste iluminoso acontecer. Ambos são, portanto, movimento, o que nos remete assim à temporalidade do Ser. Assim sendo, ο ἐόν só é na medida em que a mobilidade é o que mantém o seu ser próprio.

Nós, do nosso Tempo, quando falamos do tempo, sempre lançamos mão de categorias tais como: presente, passado e futuro, isto é, como algo que está, que foi e que será. Dificilmente somos tomados a compreender, por exemplo, o presente a partir do ἐόν, e não o inverso, uma vez que ο ἐόν é também passado e futuro. Ο ἐόν, enquanto presença do presente, enquanto ser presente do ente presente, está já ele-mesmo imerso na verdade. Além disso, cabe ressaltar que a palavra pre-sente pode ser compreendida não só como algo que vige na atualidade, como também algo que vige porque foi presenteado, porque foi doado, porque é um dote e será, por isso, um destino.

É por isto que Heidegger vai dizer em Vom Wesen der Wahrheit [GA9  :92] que o desvelar, ο velar e ο erro fazem parte da essência da verdade. O homem tem de estar sempre percorrendo o caminho que vai entre o sim e o não. E não adianta querer romper abruptamente com este caminho, a fim de sentir-se confortavelmente instalado no seu lar encapsulado. Mesmo que isto ocorra, o caminho continuará sangrando, latejando dentro de nós, através da disposição de humor denominada angústia, para nos relembrar qual é a tarefa do homem, isto é, seguir pensando.


Ver online : Marta Luzie


LUZIE, M. A Dobra do Destino. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999