Página inicial > Léxico Grego > Aubenque (2022:158-161) – verdade em Aristóteles

Aubenque (2022:158-161) – verdade em Aristóteles

sexta-feira 1º de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

[…] os intérpretes notaram desde muito tempo uma dualidade de pontos de vista na concepção aristotélica da verdade: segundo certos textos (cujo mais importante é aquele já citado, do Metafísica E, 4), o ser como verdadeiro residiria em uma ligação do pensamento (symploke tes dianoias), seria uma afecção do pensamento (patbos en tei dianoiai); o verdadeiro e o falso seriam, portanto, considerados, como funções lógicas do julgamento. Outro texto, ao contrário, proporia uma concepção ontológica da verdade: a ligação no pensamento, para ser verdadeira, deveria exprimir uma ligação nas coisas. Assim, haveria uma verdade no nível das coisas (epi ton pragmaton) que residiria em seu ser-ligado ou seu ser-separado (toi synkeisthai e dieiresthai). Ser na verdade (aletheuein) consistiria, assim, para o julgamento humano, desvelar uma verdade mais fundamental, que poderíamos dizer antepredicativa. Mas há mais: não se pode falar de ligação senão para os seres compostos (ou seja, aqueles em que reside a ligação objetiva de uma essência e de um acidente seja propriamente dito, seja por si): assim, essa árvore-que-é-branca, a-diagonal-que-é-comensurável. Mas, no caso dos seres simples (asyntheta, hapla, adiaireta), sua verdade ou sua falsidade só pode residir em sua apreensão (thigei) ou sua não-apreensão por um saber: a verdade pode ser aqui apenas antepredicativa, pois tais seres podem bem ser objetos de enunciação (phasis), mas não de julgamento (kataphasis), e Aristóteles toma cuidado em lembrar aqui que a phasis não é uma kataphasis, uma vez que ela não implica atribuição: ela seria simplesmente a palavra humana através do que se desvela a verdade do ser.

M. Heidegger, que nota muitas vezes essa dualidade de pontos de vista nos textos aristotélicos, privilegia essa última passagem e, mais geralmente, todo o capítulo Θ, 10, em que vê o lugar “em que o pensamento de Aristóteles sobre o ser do sendo atinge seu cume” [1]. Inversamente, Brentano  , que já notava a mesma dualidade, privilegia os textos nos quais Aristóteles vê na proposição o lugar da verdade e da falsidade. Não é senão secundariamente que as coisas poderiam ser ditas verdadeiras, no sentido em que é sobre elas que diz a verdade do julgamento: uma coisa ou um estado de coisas são ditas verdadeiras ou falsas quando são ou não são o que o julgamento verdadeiro diz que sejam.

Na realidade, a contradição entre esses textos, contradição que W. Jaeger acredita dever resolver pelo recurso a uma evolução do pensamento de Aristóteles sobre esse ponto, é talvez mais aparente que real. A chave disso nos é fornecida, parece, pela passagem de E, 4,1028 a 1, onde lemos que o ser enquanto verdadeiro reenvia a “outro gênero do ser”. O ser enquanto verdadeiro, observa Brentano   com pertinência, não pode ser classificado entre as significações do ser propriamente dito, pela mesma razão que faz com que a lógica não possa encontrar lugar nas classificações do saber. Nos dois casos, a relação entre os dois termos não é aquela da parte ao todo: se a lógica não é uma ciência entre outras, é porque, sendo teoria da ciência, ela tem em um sentido a mesma extensão que a totalidade do saber; do mesmo modo, o ser enquanto verdadeiro não faz “parte” do ser propriamente dito, porque, redobrando aquele, tem em um sentido a mesma extensão que ele.

Mas em que consiste, portanto, esse “desdobramento”? Talvez seja necessário ultrapassar aqui a alternativa da adequação e do desvelamento com os quais os intérpretes — e principalmente M. Heidegger — queriam nos constranger. Na realidade, a verdade é sempre desvelamento, não apenas quando é simples enunciação (phasis), mas também quando é julgamento (kataphasis). Uma vez que o julgamento não consiste em atribuir um predicado a um sujeito conforme ao que seria na realidade o ser mesmo do sujeito: não somos nós que criamos a ligação do sujeito e do predicado (o que nos obrigaria a sair em seguida do julgamento — mas como poderíamos? — para nos assegurar que essa ligação é bastante adequada ao sujeito real da atribuição). No julgamento, não dizemos somente alguma coisa de alguma coisa, mas deixamos dizer em nós certa relação de coisas, que existe fora de nós. É essa prioridade da relação de coisas sobre o julgamento em que ele se desvela que Aristóteles expressa em termos não equívocos: “Não é porque pensamos com verdade que tu és branco, que tu és branco, mas é porque tu és branco que dizendo que tu o és, estamos na verdade”. Portanto, a ligação não é o fato do julgamento: há coisas cujo ser é do ser em conjunto ou de não ser conjunto, e é esse ser-conjunto ou esse não-ser-conjunto que se desvela na verdade do julgamento, da mesma maneira que o ser das coisas não compostas se desvela na verdade da apreensão (thigei) enunciativa. Falar de uma verdade das coisas é simplesmente significar que a verdade do discurso humano está sempre prefigurada, ou melhor, pré-dada nas coisas, mesmo se ela se desvela apenas na ocasião do discurso que instituímos sobre elas. Há um tipo de precedência da verdade a ela mesma, que faz com que no momento em que nós a fazemos ser por nosso discurso, nós a fazemos ser como já sendo aí. É essa tensão, inerente à própria verdade, .que exprime a dualidade de pontos de vista, ou melhor, de vocabulários, entre os quais parece hesitar Aristóteles. A verdade “lógica” é o discurso humano enquanto retém sua função própria, que é falar do ser. A verdade ontológica é o próprio ser, o ser “propriamente dito”, ou seja, enquanto falamos dele ou ao menos enquanto podemos falar dele. Consequentemente, não é falso ver com M. Heidegger na verdade “lógica” um pálido reflexo da verdade ontológica, ou ainda um “esquecimento” de seu enraizamento naquela. Mas também não é falso ver com Brentano   na verdade ontológica um tipo de projeção retrospectiva no ser da verdade do discurso.


Ver online : Pierre Aubenque


AUBENQUE, Pierre. O problema do ser em Aristóteles: Ensaio sobre a problemática aristotélica. São Paulo: Paulus Editora, 2022


[1Platons Lehre von der Wahrheit, p. 44 ; cf. Brief über den Humanismus, éd. allem., p. 77.