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Heidegger et l’essence de l’homme

Haar (1990:143-148) – rememoração (Andenken)

terça-feira 5 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

Alves

O salto, porque volta ao mesmo lugar, porque só deixa o ponto de partida para melhor se reapropriar dele, é ao mesmo tempo rememoração (Andenken). «O salto só se mantém salto se rememorar» (als andenkender) [1]. O segundo acto que define a essência do pensamento é a memória (Gedächtnis), a rememoração da História do Ser, o ser como história. Porque deve o «passo atrás», o movimento que volta da metafísica à sua essência impensada, a diferença ontológica [2], também revestir a instantaneidade e a imediatez do «salto»? Como pode uma rememoração fixar-se no instante? Sem dúvida, para marcar que a história do Ser se distingue do processo lógico-dialéctico da totalização, sobretudo no que esta oferece de olhar único do ser no seu ser-presente. A dedução cuidadosa das épocas do ser, segundo o fio condutor do obscurecimento sempre cada vez maior da aletheia, importa menos que a concreção actual do esquecimento no Gestell. O Gewesenes («o ter-sido-essencial) encontra-se presentemente reunido e pode ser tomado num só olhar. O salto faz ver a totalidade do passado como uma só e mesma destinação do ser:

«A história do pensamento ocidental só se manifesta como destinação do ser (Geschick des Seins) no momento em que, a partir do salto (sublinhado de Heidegger), nós revemos (zuruckblicken) a totalidade do pensamento ocidental e daí, ao rememorá-la, a preservamos como a destinação do ser, reunida no seu ter-sido essencial (Gewesenes). Ao mesmo tempo, nós só podemos preparar-nos para o salto falando a própria linguagem que nos fornece a História do Ser, já experimentada como destinação. O salto deixa o domínio da partida e, tendo-o deixado, recupera-o de novo pelo pensamento rememorante (andenkend), de maneira que o ter-sido essencial não possa daí em diante ser perdido. Quanto ao lugar alcançado pelo salto quando o pensamento antecipa (vordenkend), não é um distrito do ente dado aí-adiante, onde possamos directamente ter pé, mas o domínio do que não nos chega de imediato como que uma questão digna de ser pensada» [3].

É surpreendente que o poder de visão retrospectiva, sinóptica e panorâmica, tanto como a conservação indelével (unverlierbar) do passado (o que parece hiper-hegeliano!) e enfim a visão prospectiva — que esses «poderes» sejam atribuídos conjuntamente ao pensamento como Sprung e ao pensamento como Andenken. Pois que o que está unificado, adquirido de uma vez por todas, e que abre para o futuro, deveria situar-se mais no ser do que no pensamento. Mas a intervenção do pensamento limita-se a uma constatação. Não é ela que reúne o Gewesenes. Ela age, à sua maneira, guardando a memória desta reunião. Por que é esta reunião daqui para a frente inesquecível? A fidelidade de Andenken não será ela ainda uma forma de adequação que deverá ser ultrapassada? É talvez a tradução de Andenken por «pensamento fiel» que cria esta impressão. Em todo o caso, Andenken não deve ser tomado por equivalente ou mesmo análogo ao conceito hegeliano de Erinnerung. Ele não reenvia nem para uma lógica acumulativa, nem exclusivamente para uma memória. An-denken é tomado no [139] sentido modificado de Denken am Sein selbst, pensamento que se mantém o mais próximo do próprio ser. A palavra é identificada com An-dacht, termo emprestado à linguagem da devoção e que designa o recolhimento de alma na prece ou na devoção (assim chama-se Andacht à adoração do Santo Sacramento). Andacht significa, diz Heidegger, o «recolhimento de alma» (Gemut) ao pé do ser. A palavra kantiana Gemut aparece (é o único lugar na obra) na elucidação de Andenken que dá o Curso Was heisst Denken?, a partir das palavras formadas da mesma raiz: Gedanke, Dank, Gedächtnis. O conjunto desta elucidação tem um acento de piedade. A alma que rememora faz-se obediente, sem ser simplesmente submissa: ela escuta no recolhimento o que diz a língua (hörenden Andacht). O pensamento rememorante é, sobretudo, ato de reconhecimento: ação de graças. Denken é Danken. Pensar é compreender o ser como um dom e estar contente com ele. «Ao que devemos agradecimentos, isso não o tiramos de nós. Isso é-nos dado» [4]. Mas se podemos agradecer a alguém, como podemos agradecer, experimentar reconhecimento por uma dimensão anônima, mesmo a mais original?! Não existirá aí uma tentativa de «repatriar» no plano ontológico um fenômeno pertencente a este nível à fé religiosa?

Todo Andenken é memória (Gedächtnis) — mas não lembrança — no sentido em que o pensamento re-tém, persiste, não deixa a sua guarda. A tradução de Andenken por «pensamento fiel», além de lembrar as alegorias da Carta do Terno (coração fiel/coração ingrato?) deixa escapar o sentido primeiro da palavra memória e, principalmente, diz o contrário do esquecimento do ser. Traduzir por «comemoração» (Préau) dá à palavra um sentido demasiado solene, demasiado enfático. É preciso distinguir o equivalente que propomos: rememoração, da memória psicológica e do relembrar (Wiedergedächtnis), mas Andenken e Gedächtnis são uma só e mesma atividade do pensamento. Rememoração ou memória é originalmente para Heidegger o «todo da alma» que tem a capacidade de habitar ao pé de… em relação com… totalidade que foi restringida pela metafísica da subjectidade à faculdade da recordação. Falar da recordação como duma faculdade à parte [140] seria então reduzir o todo à parte. «Inicialmente memória» não significa de todo «faculdade de recordar». A palavra designa o todo de alma no sentido de uma união íntima constante ao pé do que se dirige essencialmente a todo o pensamento Rinnen). Memória (Gedächtnis) significa originalmente An-dacht, recolhimento ao pé de…, infatigável manter-se junto, ao pé de… e aqui não apenas ao pé do passado, mas, da mesma maneira, ao pé do presente e do que pode vir [5]. É estranho que Heidegger conceda à memória, em sentido alargado, uma tal capacidade de constância, de presença constante. Se o pensamento é também essencialmente e continuamente recolecção, como poderá ele alguma vez esquecer o ser? Todavia a memória humana não possui por si própria nenhum poder original de juntar e de conservar. «A reunião da rememoração não se funda numa faculdade do homem, tal como a de recordar e a de reter. Toda a rememoração do que é memorável habita já esta reunião, graças à qual é protegido por antecipação e escondido tudo o que falta pensar (…) A memória (Gedächtnis) como rememoração humana (Andenken) do que há a pensar repousa na salvaguarda (Verwahrnis) do que dá mais a pensar. É o fundamento do ser da memória… O homem não cria esta salvaguarda [6].

O homem só pode «guardar na memória», «guardar» em geral sobre o fundo desta «salvaguarda» sempre já realizada no ser. A nossa guarda repousa sobre um já guardado. Só podemos «guardar no espírito» o que o ser conserva para nós. «Só a salvaguarda liberta e dá o que deve ser guardado no pensamento…» [7] Assim se esvaem as faculdades humanas, ou, pelo menos, a sua condição de possibilidade no homem. Pois o homem encontra-se despojado, se não do «uso» das suas faculdades, pelo menos de todo o poder sobre elas. Mas o que são «faculdades» sobre as quais não temos nenhum poder?

O pensamento como «vir à memória», enquanto «possui» a unidade dos três êxtases da temporalidade e não só o passado, não se limita a uma relação retrospectiva. Ele é também antecipação, [141] olhar sobre o futuro. Denken ist andenkendes Vordenken [8]. «Pensar é prever rememorando». Esta previsão distingue-se duma representação; também não tem nada em comum com uma profecia sociológica, econômica ou política. Em que consiste este olhar não representacional do por-vir? Este não é de modo nenhum figurado, pois que se trata dum impensado, que está para vir porque lhe falta ainda ser pensado (zu-denkende). O futuro é desconhecido como conteúdo, mas ele é prefigurado nas suas estruturas essenciais que conhecemos pela História do Ser. Sabemos, assim, que a época da vontade de vontade não vai desaparecer amanhã, nem depois de amanhã, mas reforçar-se segundo uma uniformização planetária acelerada para a qual contribuem principalmente a informatização e a cibernetização. O futuro chega até nós do mais longínquo passado. A exigência, sobretudo de racionalidade, inscrita no começo grego requer-nos sempre ainda de novo. E só a Andenken pode «prever» um futuro tão antigo.

Titre 2

Le saut, parce qu’il revient sur place, parce qu’il ne quitte le lieu de son départ que pour mieux se le réapproprier, est en même temps remémoration (Andenken). «Le saut ne demeure un saut que s’il remémore» (als andenkender). Le second acte qui définit l’essence de la pensée est la Mémoire (Gedächtnis), la remémoration de l’Histoire de l’Etre, de l’être comme Histoire. Pourquoi le «pas en arrière», le mouvement qui retourne de la métaphysique à son essence impensée, la différence ontologique, doit-il aussi revêtir l’instantanéité et l’immédiateté du «saut» ? Comment une remémoration peut-elle venir se fixer dans l’instant ? Sans doute pour marquer que l’Histoire de l’Etre se distingue du processus logico-dialectique de totalisation surtout en ce qu’elle offre une vue unique de l’être dans son être-présent. La déduction soigneuse des époques de l’être selon le fil conducteur de l’obscurcissement toujours plus grand de l’aletheia, importe moins que la concrétion actuelle de l’oubli dans le Gestell. Le Ge-wesenes («l’avoir-été-essentiel») se trouve présentement rassemblé et peut être tenu sous un seul regard. Le saut fait voir la totalité du passé comme une seule et même dispensation de l’être :

«L’histoire de la pensée occidentale ne se manifeste comme dispensation de l’être (Geschick des Seins) qu’au moment où, à partir du saut (souligné par Heidegger), nous revoyons (zuruckblicken) la totalité de la pensée occidentale et où, en la remémorant, nous la préservons comme la dispensation de l’être, rassemblée en son avoir-été essentiel (Gewesenes). En même temps, nous ne pouvons nous préparer au saut qu’en parlant le langage même que nous fournit l’Histoire de l’Être déjà expérimentée comme dispensation. Le saut quitte le domaine de départ et, l’ayant quitté, le regagne à nouveau par la pensée remémorante (andenkend), de sorte que l’avoir-été essentiel ne puisse plus désormais être perdu. Quant au lieu où aboutit le saut lorsque la pensée anticipe (vordenkend), ce n’est pas un district de l’étant donné là-devant, où l’on puisse directement prendre pied, mais le domaine de ce qui ne vient d’abord à nous que comme question digne d’être pensée».

Que le pouvoir de vision rétrospective, synoptique et panoramique, aussi bien que de conservation indélébile (unverlierbar) du passé (ce qui semble hyper-hégélien !) et enfin de vision prospective — que ces «pouvoirs» soient attribués conjointement à la pensée comme Sprung et à la pensée comme Andenken, voilà qui est surprenant. Car ce qui est unifié, acquis une fois pour toutes, et qui ouvre sur l’avenir, devrait se situer dans l’être plutôt que dans la pensée. Mais l’intervention de la pensée se borne à un constat. Ce n’est pas elle qui rassemble le Gewesenes. Elle agit, à sa manière, en gardant mémoire de ce rassemblement. Pourquoi est-il désormais inoubliable ? L’Histoire pourra-t-elle jamais passer à un «autre commencement» si tout le passé de l’Etre n’est pas à son tour oublié ? La fidélité de l’Andenken n’est-elle pas encore une forme d’adéquation qui devra être dépassée ? C’est peut-être la traduction de Andenken par «pensée fidèle» qui crée cette impression. En tout cas, Andenken ne doit pas être pris pour l’équivalent ou même l’analogue du concept hégélien d’Erinnerung. Il ne renvoie ni à une logique accumulative, ni exclusivement à une Mémoire. An-denken est pris dans le sens modifié de Denken am Sein selbst, pensée qui se tient au plus près de l’être même. Le mot est identifié à An-dacht, terme emprunté au langage de la dévotion et qui désigne le recueillement de l’âme dans la prière ou la dévotion (ainsi on appelle Andacht l’adoration du Saint Sacrement). An-dacht signifie, dit Heidegger, le «recueillement de l’âme» (Gemüt) auprès de l’être. Le mot kantien Gemüt apparaît (c’est l’unique endroit dans l’ouvre) dans l’élucidation de l’Andenken que donne le Cours Was heisst Denken ?, à partir de mots formés sur la même racine : Gedanke, Dank, Gedächtnis. L’ensemble de cette élucidation a un accent de piété. L’âme qui remémore se fait obéissante, sans être simplement soumise : elle écoute, dans le recueillement, ce que dit la langue (hörenden Andacht). Surtout la pensée remémorante est acte de reconnaissance : action de grâce. Denken est Danken. Penser c’est comprendre l’être comme un don, et lui savoir gré ! «Ce dont nous devons remerciement, cela nous ne le tenons pas de nous. Cela nous est donné». Mais si nous pouvons remercier quelqu’un, comment pouvons-nous remercier, éprouver de la reconnaissance pour une dimension anonyme, même la plus originelle ? ! N’y a-t-il pas là une tentative pour «rapatrier» sur le plan ontologique un phénomène appartenant à ce degré à la foi religieuse ?

Tout Andenken est mémoire (Gedächtnis) — mais non pas souvenir — au sens où la pensée re-tient, persiste, ne lâche pas sa garde. La traduction de Andenken par «pensée fidèle», outre qu’elle rappelle les allégories de la Carte du Tendre (cour fidèle/cour ingrat ?) laisse échapper le sens premier du mot mémoire, et notamment qu’il dit le contraire de l’oubli de l’être. Traduire par «commémoration» (Préau) donne au mot un sens trop solennel, trop emphatique. Il faut distinguer l’équivalent que nous proposons : remémoration, de la mémoire psychologique et du ressouvenir (Wieder-gedächtnis), mais Andenken et Gedächtnis sont une seule et même activité de pensée. Remémoration, ou mémoire, c’est originellement, pour Heidegger, «le tout de l’âme», qui est la capacité de séjourner auprès de… en tenant à…, totalité qui a été restreinte par la métaphysique de la subjectivité à la faculté du souvenir. Parler du souvenir comme d’une faculté à part serait donc réduire le tout à la partie. «Initialement "mémoire" ne signifie pas du tout "faculté du souvenir". Le mot désigne le tout de l’âme au sens d’un rassemblement intime constant auprès de ce qui s’adresse essentiellement à toute la pensée (Sinnen). Mémoire (Gedächtnis) signifie originellement An-dacht, recueillement auprès de…, l’infatigable demeurer ramassé auprès de…, et cela non seulement auprès du passé, mais de la même façon du présent et auprès de ce qui peut venir». Il est étrange que Heidegger accorde à la «mémoire» au sens large une telle capacité de constance, de présence constante. Si la pensée est aussi essentiellement et continûment récollection, comment peut-elle jamais oublier l’être ? Pourtant la mémoire humaine ne possède par elle-même aucun pouvoir originel de rassembler et de conserver. «Le rassemblement de la remémoration ne se fonde pas sur une faculté de l’homme telle que la faculté de se souvenir et de retenir. Toute remémoration de ce qui est mémorable habite déjà elle-même ce rassemblement, grâce auquel est protégée d’avance et cachée toute chose qui reste à penser […] La mémoire (Gedächtnis) comme humaine remémoration (Andenken) de ce qui est à penser repose dans la sauvegarde (Verwahrnis) de ce qui donne le plus à penser. C’est le fondement de l’être de la mémoire… L’homme ne crée pas cette sauvegarde».

L’homme ne peut «garder en mémoire», «garder» en général que sur le fond de cette «sauvegarde» toujours déjà accomplie dans l’être. Notre garde repose sur un déjà gardé. Nous ne pouvons «garder à l’esprit» que ce que l’être conserve pour nous. «Seule la sauve-garde libère et donne ce qui doit être gardé dans la pensée…». Ainsi s’évanouissent les facultés humaines ou du moins leur condition de possibilité en l’homme. Car l’homme se trouve dépouillé, sinon de l’«usage» de ses facultés, du moins de tout pouvoir sur elles. Mais que sont des «facultés» sur lesquelles nous ne pouvons rien ?

La pensée comme «mise en mémoire», pour autant qu’elle «tient» à l’unité des trois ekstases de la temporalité et non au seul passé, ne se limite pas à une relation rétrospective. Elle est aussi anticipation, vue sur l’avenir. Denken ist andenkendes Vordenken. «Penser c’est prévoir en remémorant». Cette prévision se distingue d’une représentation ; aussi n’a-t-elle rien de commun avec une prophétie ou une construction de science-fiction ou une prospective sociologique, économique ou politique. En quoi consiste cette vue non représentationnelle de l’à-venir ? Celui-ci n’est nullement figuré, car il s’agit d’un impensé, qui est à venir parce qu’il reste encore à penser (zu-denkende). L’avenir est inconnaissable comme contenu, mais il est préfiguré dans ses structures essentielles que nous connaissons par l’Histoire de l’Être. Nous savons ainsi que l’époque de la volonté de volonté ne va pas disparaître demain, ni après-demain, mais se renforcer selon une uniformisation planétaire accélérée à laquelle contribuent notamment l’informatisation et la cybernétisation. L’avenir vient vers nous du plus lointain passé. L’exigence, surtout de rationalité, inscrite dans le commencement grec nous requiert toujours encore à nouveau. Et seul l’Andenken peut «prévoir» un avenir aussi ancien.


Ver online : Michel Haar


HAAR, Michel. Heidegger et l’essence de l’homme. Grenoble, Jérôme Millon, 1990


[1P.R. p. 207.

[2Cf Q.I p. 285.

[3P.R. p. 197 (S.v.G. p. 150).

[4Q.P. p. 149.

[5Q.P. p. 146 (W.h.D. p. 92).

[6Q.P. p. 153 (W.h.D. p. 97).

[7Ibid.

[8Q.P. p. 207 (S.v.G.p.159).