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Figal (2005:80-81) – liberação [Freigabe]
sexta-feira 15 de novembro de 2024
A formulação heideggeriana relativa ao “inserir-se no ente” [Sicheinlassen auf das Seiende] não é certamente isenta de problemas e o mesmo se dá com o seu discurso acerca de uma certa “liberação” [Freigabe]. Os dois parecem contradizer a tese de que se trataria aqui de um puro deixar e poderiam conduzir, ao invés disso, à opinião de que o inserir-se seria algo assim como um “processo originário”, por conseguinte, um processo que constitui primordialmente a relação com o ente. [1] A melhor forma de decidirmos se essa opinião é justa ou não é nos aprofundarmos na significação do termo “livre” (frei) que compõe o conceito heideggeriano de liberação (Freigabe). “Livre” não está aqui em ligação com ações ou pessoas. Ao contrário, “livre” é o ente, na medida em que ele é “liberado”. Um tal emprego do termo “livre” está em sintonia plena com o uso corrente na linguagem cotidiana. Fala-se aí, por exemplo, de espaços “livres” quando esses espaços não estão ocupados com a construção de casas ou com a presença de árvores. Fala-se também de ruas “livres” uma vez que sua utilização não foi obstruída ou tomada impossível por relações de trânsito ou do tempo. Da mesma maneira, uma máquina ou uma oficina podem estar “livres” quando não há no momento nenhum usuário. Em todos esses modos de falar, “livre” significa o mesmo que “acessível” ou “aberto”. Em ligação com os exemplos dados, também não há nenhum problema em compreender o que significa “liberação”. Liberamos uma estrada, por exemplo, quando colocamos nosso carro no acostamento ou retiramos um obstáculo; liberamos uma oficina quando paramos de usá-la. Tais “liberações” são claramente ações. No entanto, enquanto continuarmos a usar exemplos, também continuaremos a nos movimentar no plano “ôntico”. Por outro lado, se pensarmos a liberação do ente de maneira ontológica, então precisaremos levar em consideração de início que também o ente com o qual se tem justamente a ver precisa ser chamado “livre”; sua liberdade se comprova na medida em que ele é usado; nós o deixamos ser em meio ao uso sob o modo específico da abertura na qual ele é. Se é essencial para as ações que haja alternativas para elas, então a liberação não é nenhuma ação. Mas também não é isso, por fim, que se tem em vista quando se fala aqui de uma ação. O que se tem em vista é muito mais que o liberar é um processo que constitui pela primeira vez a relação do ser-aí com o ente. Com essa tese, contudo, acabamos por cair em uma dificuldade que já foi comentada. É preciso que se possa dizer, em verdade, como se pretende pensar o fechamento a partir do qual o ente é trazido pela primeira vez para a sua abertura. Esse fechamento também precisaria estar, [81] em última instância, uma vez mais acessível para uma tal “ação originária”, e, com isso, repete-se o problema que precisava ser resolvido. O discurso heideggeriano acerca da liberação é metafórico e dever-se-ia buscar em meio a uma interpretação dissolver a metáfora, não se deixando enredar por ela. O que ele quer dizer é, de qualquer forma, que a abertura do ente pertence essencialmente ao ser-aí e junto a essa ideia mostra-se uma vez mais o quão pouco é para se pensar o “ser-aí” como um “processo”. O discurso heideggeriano acerca do “inserir-se no ente” permanece, assim, carente de esclarecimento. Com essa expressão, Heidegger quer apenas distinguir o “deixar-ser” da “omissão e da indiferença” (GA9 ,188). Como o contexto da própria lida com ele, o ente não pode ser indiferente. Visto assim, o “inserir-se” não significa que nos ligaríamos a algo com o qual não nos encontrávamos anteriormente em nenhuma relação, mas tem de ser interpretado uma vez mais no sentido do “apriorístico perfeito”.
[FIGAL , Günter. Fenomenologia da Liberdade. Tr. Marco Antonio Casanova . São Paulo: Forense, 2005]
Ver online : Günter Figal