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Caron (2005:1668-1670) – Ereignis, advento de homem e ser

sábado 2 de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

O Ereignis é o advento do homem e do ser sob a iniciativa do ser; desdobra o jogo especular do ser e do si, de modo que cada um alcança o outro, e esse jogo, em última análise, aparece como o próprio jogo do ser que o governa. O ser compreendido como a Mesmidade desse jogo, como a Selbigkeit da qual o si é a presença superlativa, conforme indicado pela carne da palavra Selbst, é o Ereignis. O si pertence ao ser, e ainda assim o ser e o si pertencem um ao outro dentro do Mesmo. É assim que o Mesmo é o Ereignis, desdobrando-se como Geviert, onde o céu e a terra, o divino e o mortal, alcançam um ao outro de maneira dissimétrica. A terra é o eco do céu, sua ressonância, o mortal é também o eco do divino, um eco que, ressoando em toda parte no coração do ser, testemunha a presença do dom e seu trabalho de distribuição: “Em toda parte”, escreve Hölderlin  , “o eco ressoa, e a imensa forja / Trabalha dia e noite, distribuindo seus dons” [1]. O si pertence ao ser, é a dádiva do ser e o atestado do ser como dádiva. O ser e o si respondem um ao outro dentro da Palavra implantada por Ereignis que é o ser, e respondem um ao outro nessa dissimetria que manifesta a prepotência do ser e prova que este último é o que implanta um si dentro de si mesmo para realizar essa implantação. O si e o ser pertencem ao coração do ser como Ereignis e sob sua iniciativa, o que Heidegger expressa ao afirmar, algumas linhas depois: “o homem e o ser são transpropriados um do outro, pertencem um ao outro”, e : “no homem reina um pertencimento ao ser, um pertencimento que está atento ao ser”. Essa simultaneidade encontra seu fundamento em Ereignis: neste, o si e o ser se alcançam mutuamente sob o expoente do ser, revelando assim a atividade do mesmo dom. O si fornece a espacialidade que permite que todo o ser se expanda, brote. É a terra tornada possível pelo λόγος próprio da realidade humana, que responde e pertence ao Λόγος implantado pelo ser como Ereignis. Para o si, ser-em-si, ser em seu Eigen, significa assumir a pertença ao Eignen do Ereignis. Eigentlichkeit em Sein und Zeit   tem um significado profundo: para o si, ser eigentlich significa reagir adequadamente à apropriação geral que é a do Acordo (Ereignis) dentro do qual o si é originalmente orientado para o ser. O Eigen do si consiste em assumir o destino da apropriação, ou seja, do Eignen. O homem retorna ao seu próprio — ao seu Eigen — quando o próprio ser consegue aparecer como aquilo que se apropria e se concede ao homem — como Eignen. Assim: “Quando e como o homem é ele mesmo? Ele é ele mesmo se for apropriado à sua essência. Essa apropriação [em relação a si mesmo] é concedida no Ereignis do ser, que é abrigado e fundado no Eigentlichkeit do Da-sein” [GA66  :155]. Como temporalidade ou liberdade original, o si é atestado como aquilo que é assumido e constituído na rede de relação tecida pela retirada própria à consistência do Seinlassen do ser. O si é aquilo em que o ser é o que é. O si é aquilo em que o ser é fenomenalizado no como-tal de seu conteúdo abissal; o si é aquilo em que o ser que é retirada é esclarecido como tal. Estrutural e originalmente sintonizado com esse abismo de dação, com essa dação que se retira para dar, o si deve sintonizar-se pensativamente com ele a fim de co-nascimento em sua origem; esse deixar-ser do deixar-ser próprio da dação é o ato no qual o si existe em seu próprio direito dentro da apropriação que o convoca para a custódia do sentido de dação e desvelamento próprio da retirada. Uma vez que a origem do si está no acordo entre o si e o ser, o si está em seu próprio direito quando é apropriado ao ser que, como Eignis, o apropria a si mesmo. “O ser-próprio [Eigentlichkeit: ser-apropriado], apesar das aparências morais superficiais e de acordo com a questão única de Sein und Zeit   sobre a verdade do ser, é apenas e sempre o primeiro a ser concebido, de acordo com essa origem, como o “modo” em que se é Aí, como o modo em que a apropriação de si do homem se torna sua própria em pertencer ao ser e à sua clareira (“tempo”)” [GA66  :145].


Ver online : Maxence Caron


CARON, M. H. Pensée de l’être et origine de la subjectivité. Paris: CERF, 2005.


[1Hölderlin, Retour, I. Cf. Œuvres, p. 815.