Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

Página inicial > Léxico Alemão > Agamben (2015:272-274) – paixões

Agamben (2015:272-274) – paixões

sábado 12 de outubro de 2024

Quase dez anos depois do fim de sua relação com Hannah Arendt  , no curso de 1936 sobre Nietzsche   (Der Wille zur Macht als Kunst), Heidegger trata tematicamente do amor em algumas páginas extremamente densas, em que esboça uma verdadeira teoria das paixões. Ele começa por subtrair os afetos e as paixões da esfera da psicologia, definindo-os como “as maneiras fundamentais [Grundweisen] […], das quais o homem faz a experiência em seu Da, da abertura e do esconder-se do ente no qual ele é” (GA6T1  :Nietzsche  , 1, 55). Imediatamente a seguir, distingue com nitidez o amor e o ódio dos outros sentimentos, pondo-os como paixões (Leidenschaften) em face dos simples afetos (Affekte).

Enquanto os afetos, como a cólera e a alegria, nascem e morrem em nós circunstancialmente, o amor e o ódio, como paixões, estão sempre presentes em nós e atravessam nosso ser desde a origem. Por isso podemos dizer: nutrir um ódio, mas não podemos dizer: nutrir uma cólera (ein Zorn wird genährt) (GA6T1  :Nietzsche  , 1, 58). É preciso ler, pelo menos, o trecho decisivo sobre a paixão:

Pelo fato de que o ódio atravessa [durchzieht] todo o nosso ser da maneira mais original, parece-nos também que traz ao nosso ser, do mesmo modo que o amor, um fechamento original [eine ursprungliche Geschlossenheit] e um estado durável. Mas esse fechamento persistente que cabe ao Dasein humano através do ódio não o separa, não o torna cego, mas clarividente: só a cólera é cega. O amor nunca é cego, mas clarividente; só o ser enamorado [Verliebtheit] é cego, fugitivo e frágil: um afeto, não uma paixão [ein Affekt, keine Leidenschaft]. Pertence a esta última uma abertura de ampla dimensão [das weit Ausgreifende, sich Öffnende]; também no ódio isso acontece, pelo fato de que ele segue constantemente e por toda parte o objeto odiado. Essa situação em que somos apanhados [Ausgriff] pela paixão não faz mais do que nos transportar para além de nós próprios, reúne nosso ser em seu próprio fundamento [auf seinem eigentlichen Grund], não o abre senão nessa reunião, de tal modo que a paixão é aquilo pelo qual e no qual nos radicamos em nós próprios e adquirimos lucidamente o domínio do ente à nossa volta e em nós [hellsichtig des Seiendes um uns und in uns mächtig werden] (GA6T1  :Nietzsche  , I, 58-59).

O ódio e o amor são assim as duas Grundweisen, as duas “guisas” ou maneiras fundamentais nas quais o Dasein passa pela prova do Da, isto é, da abertura e do fechamento do ente que é e tem de ser. Contrariamente aos afetos, que são cegos às próprias coisas que nos revelam e que, como as Stimmungen, só desvelam em um desvio, no amor e no ódio o homem se radica mais profundamente naquilo em que é lançado e se apropria e experimenta sua própria facticidade. Não é, pois, por acaso que o ódio, com seu fechamento original, ocupa aqui um lugar primordial ao lado do amor (do mesmo modo que o mal no curso sobre Schelling   e o furor [das Grimmige] na Carta sobre o humanismo): a dimensão que está aqui em questão é a abertura original do Dasein, na qual “do próprio ser pode vir a atribuição [Zuweisung] das directivas [Weisungen] que se tornarão normas e leis para o homem” (GA9  :Weg  , 191).

[AGAMBEN  , Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015]


Ver online : Giorgio Agamben