João Duarte
Começo, origem: duas palavras cruciais, dizíamos. Mas duas palavras francesas. Heidegger escreve: Beginn, Anfang. De modo nenhum nos escapa que a palavra logicamente esperada no fim dos nossos desenvolvimentos precedentes, a palavra Ursprung, não pertence ao vocabulário heideggeriano. É por isso que muitos tradutores, e mesmo intérpretes de Heidegger, propõem traduzir a diferença Beginn-Anfang pela de «começo» e «início». Esta tradução dá conta do que está em jogo na distinção heideggeriana ? O único meio de o saber é pôr, de maneira finalmente metódica, duas questões — cuja resolução não apresenta dificuldade de maior, porque [29] dispomos, para cada uma delas, de textos precisos. Por um lado, em que consiste, em francês, a diferença entre «início» e «começo»? Por outro lado, e sobretudo, em que consiste, na língua heideggeriana (e não apenas simplesmente alemã) a diferença entre Beginn e Anfang? É só depois de ter respondido a estas duas questões que será possível decidir se a equivalência, tantas vezes proposta, destes dois pares de termos tem alguma pertinência [1].
Consideremos em primeiro lugar a nossa língua, com o fim de relembrar algumas evidências etimológicas. Se há, certamente, diferença entre «começo» e «início», os dois termos reencontram-se todavia num mesmo registo temporal: é impossível notar entre eles uma hierarquia de «profundidade» (como a que separa a fonte subterrânea da sua irrupção em pleno dia, por exemplo), ou mesmo uma deslocação ou uma anterioridade qualquer no seio de uma mesma profundidade (como se um precedesse o outro). A única diferença perceptível, desde já sujeita a debate, respeita à sua duração recíproca. O começo diz o primeiro momento de um processo, uma primeira parte no tempo, aponta portanto para uma extensão temporal, ainda que mínima; pode durar o tempo de uma aprendizagem ou de uma iniciação, por exemplo. O início, pela sua etimologia, indicaria antes uma partida pontual: como «primeira jogada» [2], evoca o primeiro lançamento, ou ainda, como muito bem se lembra Beaufret ao traduzir do alemão, o «pontapé de saída». Mas, nos dois casos, estamos em presença de um mesmo registo temporal: o de uma primeira aparição ou manifestação. Nem de um lado nem do outro discernimos o indício de uma reserva, de uma latência ou de um prévio.
Consideremos, em compensação, as duas palavras alemãs. Tomadas na sua acepção corrente, recobrem aproximadamente as suas equivalentes francesas: Beginn pode, sem grande prejuízo, ser traduzido [30] por «começo», enquanto Anfang, a «primeira captura de» (Befangen, captar, capturar), lembra o «primeiro lance do jogo» e evoca essa mesma ideia de pôr em marcha ou de pontapé de saída, característica do «início». Todavia, o problema consiste menos em conhecer o uso vulgar destes termos na língua alemã do que em reconhecer a acepção que lhes é fixada na e pela língua heideggeriana . Ora, dispomos acerca deste ponto de numerosos textos muito precisos do próprio Heidegger: não se reduzindo a afirmar a existência de uma diferença entre Beginn e Anfang, explicitam o seu sentido e propõem, a partir dessa diferença, uma definição estrita de cada um dos termos do par. São alguns destes textos que convém aqui reler com atenção [3].
Em primeiro lugar, a afirmação da distinção: «O começo (Beginn) do pensamento ocidental não é idêntico ao Anfang» [4]. Em segundo lugar, uma abordagem do Anfang, clarificando dois dos seus traços fundamentais. Um é a sua radical anterioridade: «O Anfang é o que já e sempre nos ultrapassou (was uns schon uberholt hat), não como um passado revoluto que ainda se conservasse atrás de nós, mas como aquilo que puxa e atrai previamente a si tudo o que se manifesta, e que, deste modo, só vem a nós precedendo-nos (uns worauswesend erst auf uns zukommt)» [5]. O outro é o seu carácter irredutivelmente ocultado: «O começo […] é o invólucro que vela o Anfang, e que o vela até de uma maneira inevitável […]. O Anfang esconde-se (verbirgt sich) no começo» [6]. Em terceiro lugar, e acima de tudo, um pôr em paralelo metódico dos dois termos, pelo qual cada um deles é definido, ilustrado, e finalmente circunscrito na sua diferença essencial. Ora esta diferença é explicitada graças à intervenção de um terceiro termo: Ursprung. Tudo isto se encontra estabelecido num texto decisivo, que merece ser citado na íntegra. (Traduzimos Beginn por começo, Ursprung por origem, e deixamos, como no que precede, Anfang sem tradução).
«O começo é aquilo com o que alguma coisa se ergue (womit etwas anhebt), o Anfang é aquilo de onde alguma coisa jorra (woraus etwas entspringt). A guerra mundial "fing an" há séculos na história espiritual e política do Ocidente. Começou com combates de postos avançados. O começo é imediatamente abandonado, desaparece na sequência dos acontecimentos. O Anfang, a origem (Ursprung), pelo contrário, só se torna claro no decurso do processo, e só no fim deste é plenamente. Quem começa muito, frequentemente não chega nunca ao Anfang. Para falar verdade, nós os homens nunca podemos mit dem Anfang anfangen — isso, só um deus o pode —, mas devemos começar, quer dizer fazer de alguma coisa a alavanca que é a única que conduz à origem (Ursprung) ou que aponta para ela» [7].
O que diz este texto? Diferencia o Anfang do simples começo, e fá-lo assimilando-o explicitamente à origem (Ursprung). Não só pela justaposição, com o valor de equivalência, dos dois termos, mas pela própria definição que é dada do primeiro: o Anfang é apresentado como o que, precedendo irredutivelmente qualquer começo, se mantém para além deste e no próprio curso da história, ao mesmo tempo que permanece escondido nela. É descrito como a fonte inaparente de onde «brota» (entspringt) o processo, e em direcção à qual o começo não pode fazer mais do que «apontar». O que é então isto senão a própria origem — como, de resto, Heidegger confirma usando por duas vezes o termo Ursprung? Além disso, não é o exemplo proposto prova suficiente? O que, da guerra mundial, «remonta a séculos da história espiritual e política do Ocidente», não é, com toda a evidência, nem o seu «início» nem o seu «começo»: mas é, sem dúvida, a sua origem. Tanto pela definição que é proposta como pelos exemplos que o ilustram, o Anfang tem certamente, na terminologia heideggeriana , um estatuto de origem.
Porque é que é essencial ocultar tal estatuto? Por duas razões, pelo menos. Dizer que a meditação heideggeriana do começo tem como finalidade uma aproximação da origem nele reservada, significa, em primeiro lugar, que ela visa uma «coisa» (Sache) até aqui impensada, nunca tendo pertencido ao passado, sempre à espera de um futuro. Por aqui se mostra que o gesto heideggeriano não tem nada de um retorno aos Gregos, no sentido de uma qualquer ressurreição do pensamento grego ou do gênio pré-socrático. Mas significa, em segundo lugar, que esta meditação visa uma «coisa» [32] temporal, ligada a uma língua, e que inaugurou uma história. Por aqui se mostra que o gesto heideggeriano também não é o puro desvelamento de uma estrutura atemporal, sem início nem fim, livre de qualquer espessura histórica.
Noutros termos: é bem certo que o desígnio de Heidegger nada tem de comum com este «retorno aos Gregos» que lhe foi tão frequentemente imputado. Mas não é menos certo que há de facto em Heidegger um «retorno ao grego» — marcando aqui o singular toda a distância que separa o pensamento (com o qual começa a nossa história) da língua (que abriga a origem impensada dessa mesma história). Porque a nossa história é grega. Somos descendentes. Herdeiros ingratos talvez, cegos à sua mais secreta proveniência, mas herdeiros, contudo. Não tanto herdeiros de um pensamento como de uma língua, até de algumas «palavras», palavras nunca meditadas propriamente na sua carga de impensado, e que permanecem, contudo, o único território susceptível de encerrar o mistério do nosso destino. Numa palavra: «para lá dos próprios Gregos»13, muito para aquém do começo, esconde-se talvez o enigma da origem; para lá do grego já não se esconde nenhum enigma, se esta palavra designa realmente um segredo que seria nosso ao mesmo tempo que se nos furta. Não resta mais do que uma alteridade radical, e radicalmente alheia à nossa história: o vudu, talvez, ou o zen…
Se mantemos o termo origem — não deixando de estar consciente dos numerosos problemas que levanta —, é, pois, para que a «coisa» (Sache) perseguida por Heidegger seja, num mesmo movimento, claramente dissociada do começo do pensamento, e apesar disso mantida como inauguração da história.
Mas, uma vez globalmente circunscrito o sentido de Anfang, levanta-se uma outra questão, ainda mais decisiva: porquê esta demanda da origem? O que é que a origem ilumina, quando é finalmente atingida? Noutros termos, com vista a quê é que Heidegger procurou tão pacientemente encontrar, nas palavras fundamentais do começo, o traço do impensado original?
Original
Commencement, origine : deux mots cruciaux, disions-nous. Mais deux mots français. Heidegger écrit : Beginn, Anfang. Il ne nous échappe nullement que le mot logiquement attendu à la suite de nos développements précédents, celui d’Ursprung, n’appartient pas au vocabulaire heideggerien. C’est pourquoi bien des traducteurs, voire des interprètes de Heidegger, proposent de traduire la différence Beginn-Anfang par celle du « commencement » et du « début ». Une telle traduction rend-elle compte de ce qui est en jeu dans la distinction heideggerienne ? Pour le savoir, il n’est d’autre moyen que de poser, de manière enfin méthodique, deux questions — dont la résolution ne présente nulle difficulté majeure, puisque nous disposons, pour chacune d’entre elles, de textes précis. D’une part, en quoi consiste, en français, la différence entre le « début » et le « commencement » ? D’autre part et surtout, en quoi consiste, dans la langue heideggerienne (et non point seulement allemande) la différence entre Beginn et Anfang ? Ce n’est qu’après avoir répondu à ces deux questions qu’il sera possible de décider si [24] l’équivalence, si souvent proposée, des deux couples de termes a quelque pertinence [8].
Considérons d’abord notre langue, afin de rappeler quelques évidences étymologiques. S’il y a certes bien de la différence entre « commencement » et « début », les deux termes se rejoignent pourtant en un même registre temporel : il est impossible de remarquer entre eux une hiérarchie de « profondeur » (comme celle qui sépare la source souterraine de sa percée au grand jour, par exemple), ni même un décalage ou une antériorité quelconque au cœur d’une seule profondeur (comme si l’un précédait l’autre). La seule différence perceptible, au demeurant sujette à débat, concerne leur durée réciproque. Le commencement dit le premier moment d’un processus, une première partie dans le temps, donc fait signe vers une étendue temporelle, fût-elle minime ; il peut durer, le temps d’un apprentissage ou d’une initiation, par exemple. Le début, par son étymologie, indiquerait plutôt un point de départ ponctuel : comme « premier coup au jeu » [9], il évoque la première lancée, ou encore, ainsi que s’en souvient fort bien Beaufret en traduisant l’allemand, le « coup d’envoi »i Mais, dans les deux cas, nous nous trouvons en présence d’un même registre temporel : celui d’une première apparition ou manifestation. Ni d’un côté ni de l’autre, nous ne décelons l’indice d’une réserve, d’une latence ou d’un préalable.
Considérons, en revanche, les deux mots allemands. Pris dans leur acception courante, ils recouvrent approximativement leurs équivalents français : Beginn peut, sans grand dommage, être traduit par « commencement », tandis que Anfang, la « première prise sur » (de fangen, capter, capturer), rappelle le « premier coup au jeu » et évoque cette même idée de mise en branle ou de coup d’envoi, caractéristique du « début ». Toutefois, le problème consiste moins à connaître l’usage ordinaire de ces termes dans la langue allemande qu’à reconnaître l’acception qui leur est fixée dans et par la langue heideggerienne. Or, nous disposons sur ce point de plusieurs textes très précis de Heidegger lui-même : ne se réduisant pas à affirmer l’existence d’une différence entre Beginn et Anfang, ils en explicitent le sens et proposent, à partir de cette différence, une définition stricte de chacun des termes du couple. Ce sont quelques-uns de ces textes qu’il convient de relire ici avec attention [10].
En premier lieu, l’affirmation de la distinction : « Le commencement (Beginn) de la pensée occidentale n’est pas identique à l’Anfang » [11]. En second [25] lieu, une approche de l’Anfang, mettant en lumière deux de ses traits fondamentaux. L’un est sa radicale antériorité : « l’Anfang est ce qui nous a toujours déjà devancés (was uns schon überholt hat)9 non pas comme un passé révolu qui se tiendrait derrière nous, mais comme ce qui tire et attire préalablement à soi tout ce qui se déploie, et qui ainsi ne vient à nous qu’en nous précédant (uns worauswesend erst auf uns zukommt) » [12]. L’autre est son caractère irréductiblement occulté : « Le commencement (…) est l’enveloppe qui voile l’Anfang, et le voile même de manière inévitable (…). l’Anfang se cache (verbirgt sich) dans le commencement » [13]. En troisième lieu et surtout, une mise en parallèle méthodique des deux termes, par laquelle chacun d’entre eux est défini, illustré, et finalement circonscrit en sa différence essentielle. Or cette différence est dégagée grâce à l’intervention d’un troisième : Ursprung. Tout ceci se trouve établi en un texte décisif, qui mérite d’être cité en son entier. (Nous traduisons Beginn par commencement,, Ursprung par origine, et nous laissons, comme précédemment, Anfang sans traduction).
« Le commencement est ce avec quoi quelque chose se lève (womit etwas anhebt), l’Anfang est ce d’où quelque chose jaillit (woraus etwas entspringt). La guerre mondiale fing an voici des siècles dans l’histoire spirituelle et politique de l’Occident. Elle commença avec des combats d’avant-postes. Le commencement est aussitôt abandonné, il disparaît dans la suite des événements. l’Anfang, l’origine (Ursprung), ne se fait jour au contraire qu’au cours du processus, et n’est pleinement là qu’à sa fin. Qui commence beaucoup, souvent n’arrive jamais à l’Anfang. A vrai dire, nous autres hommes ne pouvons jamais mit dem Anfang anfangen — cela, un dieu seul le peut — , mais nous devons commencer, c’est-à-dire faire de quelque, chose le levier qui seul conduit à l’origine (Ursprung) ou fait signe vers, elle » [14].
Que dit un tel texte ? Il différencie l’Anfang du simple commencement, et ce, en l’assimilant explicitement à l’origine (Ursprung). Non seulement par la juxtaposition, à valeur d’équivalence, des deux termes, mais par la définition même qui est donnée du premier : l’Anfang est présenté comme ce qui, précédant irréductiblement tout commencement, se maintient par delà celui-ci et dans le cours même de l’histoire, tout en y demeurant caché. Il est décrit comme la source i.n apparente d’où « sourd » (entspringt) le processus, et vers laquelle le commencement ne peut que « faire signe ». Qu’est-ce donc que cela, sinon l’origine elle-même — comme le confirme par ailleurs Heidegger en usant à deux reprises du terme d’Ursprung ? Au demeurant, l’exemple proposé n’était-il pas suffisamment probant ? Ce qui, de la guerre mondiale, « remonte à des siècles dans l’histoire spirituelle et politique de l’Occident », ce n’est de toute évidence ni son « début » ni son « commencement » : mais bel et bien son « origine ». Autant par la définition qui en est proposée que par les [26] exemples qui l’illustrent, Anfang occupe donc bien, dans la terminologie, heideggerienne, un statut d’origine.
Pourquoi est-il essentiel de ne pas occulter un tel statut ? Pour deux raisons au moins. Dire que la méditation heideggerienne du commencement a pour finalité une approche de l’origine en lui réservée, cela signifie, en premier lieu, qu’elle vise une « chose » (Sache) jusqu’ici impensée, n’ayant jamais appartenu au passé, toujours en attente d’avenir. Par où il apparaît que le geste heideggerien n’a rien d’un retour aux Grecs, au sens d’une quelconque résurrection de la pensée grecque ou du génie présocratique. Mais cela signifie, en second lieu, que cette méditation vise une « chose » temporelle, liée à une langue, et ayant inauguré une histoire. Par où il apparaît que le geste heideggerien n’est pas non plus le pur dévoilement d’une structure atemporelle, sans début ni fin, libre de toute épaisseur historique.
En d’autres termes : il est bien sûr que le dessein de Heidegger n’a rien de commun avec ce « retour aux Grecs » qui lui fut si souvent imputé. Mais il est non moins sûr qu’il y a bien chez Heidegger un « retour au grec » — le singulier marquant ici toute la distance qui sépare la pensée (avec laquelle commence notre histoire) de la langue (qui abrite l’origine impensée de cette même histoire). Car notre histoire est grecque. Nous sommes des descendants. Des héritiers ingrats peut-être, aveugles quant à leur plus secrète provenance, mais des héritiers cependant. Héritiers non point tant d’une pensée que d’une langue, voire de quelques « paroles », paroles jamais méditées en propre dans leur charge d’impensé, et qui demeurent pourtant le seul territoire susceptible de recéler le mystère de notre destin. En un mot : « au-delà des Grecs eux-mêmes » [15], bien en deçà du commencement, se cache peut-être l’énigme de l’origine ; au-delà du grec ne se cache plus aucune énigme, si ce mot désigne bien un secret qui serait nôtre tout en se dérobant à nous. Ne demeure plus qu’une altérité radicale, et radicalement étrangère à notre histoire : le vaudou peut-être, ou le zen…
Si nous maintenons le terme d’origine — tout en étant consciente des nombreux problèmes qu’il soulève — , c’est donc pour que la « chose » (Sache) poursuivie par Heidegger soit, en un même mouvement, clairement dissociée du commencement de la pensée, et néanmoins maintenue comme inauguration de l’histoire.
Mais, une fois le sens de Anfang globalement circonscrit, une autre question s’élève, plus décisive encore : pourquoi cette quête de l’origine ? Qu’éclaire donc l’origine, lorsqu’elle se trouve enfin atteinte ? En d’autres termes, en vue de quoi Heidegger a-t-il si patiemment cherché à retrouver, dans les paroles fondamentales du commencement, la trace de l’impensé originel ?