Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Romano (1999:23-25) – Kehre

terça-feira 17 de setembro de 2024

O que chamamos de "Kehre" consiste, então, em grande parte, no aprofundamento desse pensamento do ser como um evento. O Dasein se torna o en-jeu (Heidegger joga aqui com a palavra Beispiel, que primeiro designou o ser "exemplar") do jogo de velamento e desvelamento que pertence ao próprio ser. Certamente não é em vão que, na palestra "A constituição ontoteológica da metafísica", central em mais de um sentido, onde Heidegger se propõe a pensar o próprio ser a partir da diferença (ser-ente), o ser é designado como "sobrevir descobridor" (die entbergende Überkommnis) que, como tal, se recobre no "chegar encobrindo-se" (sich bergender Ankunft) do ser. Aqui, a eventualidade do ser, ou sua "mobilidade", como diria Levinas  , torna-se visível pela afirmação eminentemente paradoxal de que "o ser do ente significa: o ser que é ente" [1]. Mas a diferença ontológica não significa, precisamente, que o ser não "é" e que somente o ente "’é"? Como, então, uma afirmação como "o ser é o ente" pode se sustentar? Na verdade, essa formulação da diferença ontológica contradiz a afirmação mais comum dessa diferença apenas sob a condição de que o "é" tenha o sentido de uma identidade — o ser certamente não é idêntico ao ente, certamente não é ele próprio um ente. Mas outrossim se o "é" for entendido aqui no sentido daquela mobilidade inerente ao próprio ser, de acordo com a qual ele advém e, nesse sobrevir, se retira, dando origem ao ente — se o "é" for entendido, como Heidegger especifica, no sentido de uma "transição", uma "passagem" (Übergang): "aqui, o verbo "ser" tem um significado transitivo, ele indica uma passagem. Aqui o ser se desdobra no modo de uma passagem para o ente" [2]. Não que o ser fosse, por assim dizer, deixar seu lugar para se juntar ao ente do qual está separado. Ao contrário, esse movimento é o próprio evento por meio do qual o ser sobrevém ao ente que ele descobre: "O ser sobre-passa o que ele descobre, ele sobre-vém para o que ele descobre que, por meio desse sobrevir (Überkommnis) sozinho, surge (ankommt) como aquilo que, por si mesmo, descobre a si mesmo" [3]. Assim, o ser se mostra como sobrevir descobridor, de acordo com a qual o próprio ente aparece no modo de chegada, cobrindo a si mesmo no ser-a-descoberto (Unverborgenheit). Assim, tanto o ser quanto o ente se desdobram a partir da dimensão (Unterschied) de sua diferenciação, na qual o sobrevir e o chegar são "mantidos em relação, separados um do outro e voltados um para o outro": essa dimensão que atribui um ao outro o sobrevir descobridor (ser) e o chegar encobridor (ente), na qual o ser, em descobrindo o ente, encobre-se no ser-a-descoberto do ente, é o ente e se obnubila nele; essa dimensão é "a regulação descobridor-encobridor (der entbergend-bergende Austrag)" que regula o entre (das Zwischen) dos dois: ser e ente [4].

[ROMANO  , Claude. L’événement et le monde. Paris: PUF, 1999]


Ver online : CLAUDE ROMANO


[1Identität und Differenz, Pfullingen, Neske, 1957, p. 62; traduzido para o francês por A. Préau, "Identité et Differenz", Pfullingen, Neske, 1957, p. 62. Préau, "Identité et Différence", em Questions I, p. 298

[2Ibid

[3Ibid., p. 62; trad. cit. (modificado), pp. 298-299

[4Ibid., p. 63; tradução francesa (modificada), p. 299