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Ricoeur (1985:107-109) – Erstreckung - Geschehen - Geschichte
domingo 27 de outubro de 2024
A questão da historialidade é introduzida pela expressão de um escrúpulo (Bedenken), que nos é agora familiar: “Submetemos, na realidade, o caráter de totalidade do ser-aí, relativamente a seu autêntico ser-um-todo, ao alcance prévio (Vorhabe) da análise existencial?” [SZ :372]. Falta à temporalidade um traço para que ela possa ser tida como integral: esse traço é o da Erstreckung, da ex-tensão [tr. STMS ] entre nascimento e morte. Como se teria podido falar, numa análise que até agora ignorou o nascimento e, com ele, o entre-nascer-e-morrer? Ora, esse “entre-dois” é a ex-tensão mesmo do ser-aí. Se nada foi dito sobre isso antes, é porque se temeu recair nas malhas do pensamento comum, ajustado às realidades dadas e manejáveis. O que há de mais tentador do que identificar essa ex-tensão com um intervalo mensurável entre o “agora” do começo e o do fim? Mas não desdenhamos, ao mesmo tempo, caracterizar a existência humana [121] por um conceito, familiar a muitos pensadores do início do século, entre outros Dilthey , o da “coesão da vida” (Zusammenhang des Lebens), concebida como o desenrolar ordenado das vivências (Erlebnisse) “no tempo”? Não pode ser negado que algo de importante é dito aqui, mas que é pervertido pela categorização defeituosa que a representação vulgar do tempo impõe; com efeito, é no quadro da simples sucessão que colocamos não só coesão e desenrolamento, mas também mudança e permanência (todos eles conceitos — note-se — do mais alto interesse para a narração). O nascimento torna-se, então, um acontecimento do passado que não existe mais, assim como a morte se torna um acontecimento do futuro que ainda não ocorreu, e a coesão da vida, um lapso de tempo enquadrado pelo resto do tempo. Só ao vincular à problemática do Cuidado [Sorge] essas legítimas investigações que gravitam ao redor do conceito de “coesão da vida” é que se poderá restituir sua dignidade ontológica às noções de ex-tensão, de mutabilidade (Bewegheit) e de constância a si mesmo [Selbständigkeit] que a representação comum do tempo alinha com a coerência, a mudança e a permanência das coisas dadas e manejáveis. Vinculado ao Cuidado, o entre-vida-e-morte cessa de aparecer como um intervalo que separa dois extremos inexistentes. Pelo contrário, o ser-aí não preenche um intervalo de tempo, mas constitui, ex-tendendo-se, seu ser verdadeiro como essa ex-tensão mesma, que envolve sua vida como entre-dois. Não se poderia, por essa observação, ser reconduzido para mais perto de Agostinho .
É para assinalar essa derivação da ex-tensão do ser-aí a partir da temporalização originária que Heidegger tenta renovar o sentido da velha palavra Geschehen e igualá-la à problemática ontológica do entre-vida-e-morte. A escolha da palavra é feliz, na medida em que Geschehen é um verbo homólogo a Zeitigen, que marca a operação temporalizante.
Além disso, graças a seu parentesco semântico com o substantivo Geschichte — “história” —, o verbo geschehen conduz ao limiar da questão epistemológica, tão importante para nós, de saber se é à ciência historiográflca que devemos o fato de pensarmos historicamente ou, antes, se não é porque o ser-aí se historializa que a pesquisa histórica assume um sentido; mais adiante, concederemos a esse debate entre a ontologia da historialidade e a epistemologia da historiografia toda a atenção que ele merece. Nosso problema, por enquanto, é mais radical: é o da natureza da “derivação” pela qual se passa da temporalidade à historialidade no plano ontológico.
A derivação é menos de sentido único do que Heidegger parece anunciá-lo.
[RICOEUR , P. Temps et récit III. Le temps raconté. Paris: Éd. du Seuil, 1985]
Ver online : Paul Ricoeur