Embora não tenhamos visto até agora nenhuma possibilidade de um ponto de partida mais radical para a analítica existencial, levanta-se uma dúvida sobre o sentido ontológico da cotidianidade na discussão precedente: Será que, no que diz respeito ao seu ser-todo em sentido próprio, toda a presença [Dasein] foi de fato levada à posição prévia da analítica existencial? O questionamento referente à totalidade da presença [Dasein] pode até possuir uma precisão ontológica genuína. A própria questão pode, inclusive, ter encontrado a sua resposta no ser-para-o-fim. A morte é, no entanto, apenas o “fim” da presença [Dasein] e, em sentido formal, apenas um dos fins que abrangem a totalidade da presença [Dasein]. O outro “fim” é o “começo”, o “nascimento”. Só o ente “entre” nascimento e morte torna presente o todo que se procura. Desta forma, ficou “unilateral” a orientação dada até aqui à analítica, apesar de tender para o ser-todo existente e de explicar, genuinamente, o ser-para-a-morte próprio e impróprio. A presença [Dasein] só se fez tema existindo, por assim dizer, “para frente”, deixando, com isso, “para trás” de si todo o ter sido. Não apenas se desconsiderou o ser para o começo mas, sobretudo, a EX-TENSÃO da presença [Dasein] entre nascimento e morte. Na análise do ser-todo, passou-se por cima do “nexo da vida” em que a presença [Dasein], constantemente e de algum modo, se mantém. STMSC: §72
No que respeita à elaboração da temporalidade como sentido ontológico da cura, evidencia-se que, seguindo a interpretação vulgar da presença [Dasein] legítima e suficiente em seus limites, não se pode desenvolver, nem mesmo colocar o problema de uma genuína análise ontológica da EX-TENSÃO da presença [Dasein] entre nascimento e morte. STMSC: §72
Através das fases de suas realidades momentâneas, a presença [Dasein] não preenche um trajeto e nem um trecho “da vida” já simplesmente dado. Ao contrário, ela se estende a si mesma de tal maneira que seu próprio ser já se constitui como EX-TENSÃO. No ser da presença [Dasein], já subsiste um “entre” que remete a nascimento e morte. De forma nenhuma, a presença [Dasein] só “é” real num ponto do tempo, de maneira que, além disso, estaria “cercada” pela não realidade de seu nascimento e de sua morte. Compreendido existencialmente, o nascimento não é e nunca pode ser um passado, no sentido do que não é mais simplesmente dado. Da mesma maneira, a morte não tem o modo de ser de algo que ainda simplesmente não se deu mas que está pendente e em advento. De fato, a presença [Dasein] só existe nascente e é nascente que ela já morre, no sentido de ser-para-a-morte. Estes dois “fins” e o seu “entre” são apenas na medida em que a presença [Dasein] existe faticamente, e apenas são na única maneira possível, isto é, com base no ser da presença [Dasein] enquanto cura. Na unidade do estar-lançado e do ser-para-a-morte, em sua fuga e antecipação, é que nascimento e morte formam um “nexo” dotado do caráter de presença [Dasein]. Enquanto cura, a presença [Dasein] é o “entre”. STMSC: §72
Mas é na temporalidade que a totalidade da constituição da cura encontra o fundamento possível de sua unidade. No horizonte da constituição temporal da presença [Dasein], deve-se tomar como ponto de partida o esclarecimento ontológico do “nexo da vida”, ou seja, da EX-TENSÃO, movimentação e permanência específicas da presença [Dasein]. A movimentação da existência não é o movimento de algo simplesmente dado. Ela se determina pela EX-TENSÃO da presença [Dasein]. Chamamos de acontecer da presença [Dasein] a movimentação específica deste estender-se na extensão. A questão sobre o “nexo” da presença [Dasein] é o problema ontológico de seu acontecer. Liberar a estrutura do acontecer e suas condições existenciais e temporais de possibilidade significa conquistar uma compreensão ontológica da historicidade. STMSC: §72
Interpretamos, porém, como historicidade própria o acontecer dessa decisão, ou seja, a retomada que, antecipadamente, transmite a herança de possibilidades. Será que é nela que reside a EX-TENSÃO de toda a existência, originária, que nem se perde e nem necessita de um nexo? A decisão do si-mesmo contra a inconsistência da dispersão é, em si mesma, a consistência es-tendida na qual a presença [Dasein], enquanto destino, mantém “inseridos”, em sua existência, nascimento, morte e o seu “entre”. E isso de tal maneira que, nessa consistência, ela é o instante para a história do mundo de cada uma de suas situações. Na retomada, marcada pelo vigor de ter sido de um destino de possibilidades, a presença [Dasein] se recoloca “imediatamente” no ter sido antes dela, ou seja, no que é temporalmente ekstático. Com esta transmissão da herança, porém, o “nascimento”, provindo da possibilidade insuperável da morte, é então inserido na existência. E isto para que a existência possa assumir, com menos ilusões, o estar-lançado do próprio pre [das Da]. STMSC: §75
Em contrapartida, a historicidade imprópria mantém velada a EX-TENSÃO originária do destino. Inconsistente enquanto impessoalmente-si-mesma, a presença [Dasein] atualiza o seu “hoje”. Aguardando o imediatamente novo, ela já se esqueceu do antigo. O impessoal se furta à escolha. Cego para possibilidades, ele não é capaz de retomar o ter sido, mantendo e sustentando apenas o “real” que sobrou do vigor da história do mundo, as sobras e os anúncios simplesmente dados. Perdido na atualização do hoje, o impessoal compreende o “passado” a partir do “presente” [Gegenwart]. A temporalidade da historicidade própria, ao contrário, enquanto instante que antecipa e retoma, é uma desatualização do hoje e uma desabituação dos hábitos impessoais. Carregada dos despojos do “passado” que se lhe tornaram estranhos, a existência impropriamente histórica busca, por sua vez, o moderno. A historicidade própria compreende a história como o “retorno” do possível e sabe, por isso, que a possibilidade só retorna caso, num instante do destino, a existência se abra para a possibilidade, numa retomada decidida. STMSC: §75
Compreendendo-se no “então”, o aguardar se interpreta e, assim, compreende como atualização, a partir de seu “agora”, aquilo que aguarda. Nesse caso, então, já subsiste na “indicação” do “então” o “e agora-ainda-não”. O aguardar que atualiza compreende o “até então”. A interpretação articula esse “até então” – ele, sem dúvida, “possui seu tempo” – como o entrementes, que também remete à possibilidade de datação. Ele se exprime no “durante”. Aguardando de novo, a ocupação pode articular o próprio “durante” por meio de outras indicações de “então”. O “até então” divide-se numa série dos “desde então até então”, previamente “abraçados” no projeto do “então” primordial que aguarda. Junto com o compreender que aguarda e atualiza o “durante”, articula-se o “durar”. Essa duração é, por sua vez, o tempo revelado na interpretação que a temporalidade dá de si. Esse tempo é, assim, compreendido, embora de maneira não temática, em cada ocupação, como “lapso de tempo”. A atualização, que aguarda e retém, só “in”-terpreta, portanto, um “durante”, dentro de um lapso de tempo porque, com isso, ela se abriu, como a EX-TENSÃO ekstática da temporalidade histórica, mesmo não sendo reconhecida como tal. Aqui, no entanto, mostra-se uma outra particularidade do tempo “indicado”. Não apenas o “durante” se dá num lapso de tempo, mas, junto com a estrutura da possibilidade de datação, todo “agora”, “então” e “outrora” sempre possuem uma dimensão variável quanto à envergadura do lapso: “agora” na pausa, na refeição, à tarde, no verão; “então”: no café da manhã, na subida, etc. STMSC: §79
Caracterizamos, anteriormente, o existir próprio e impróprio no tocante aos modos de temporalização da temporalidade. Assim, a indecisão da existência imprópria se temporaliza numa atualização que não aguarda e que esquece. O indeciso se compreende a partir dos dados e a-casos mais próximos, que vêm ao encontro e variadamente se impõem nessa atualização. Perdendo-se na ocupação de múltiplos afazeres, o indeciso perde seu tempo. Por isso, a sua fala característica é: “eu não tenho tempo”. Da mesma forma que aquele que existe impropriamente sempre perde tempo e nunca “tem” tempo, também a temporalidade da existência própria se distingue por, na decisão, nunca perder tempo e “sempre ter tempo”. Pois, com referência à sua atualidade, a temporalidade da decisão tem o caráter de instante. A sua atualização própria do instante nas situações nunca predomina mas se sustenta no porvir do ter sido. A existência no modo do instante temporaliza-se como EX-TENSÃO, inteiramente marcada pelo destino, no sentido da consistência (Ständigkeit) própria e histórica do si-mesmo. Portanto, a existência assim temporal tem, “constantemente” (ständig), seu tempo para aquilo que a situação dela exige. Destarte, a decisão só abre o pre [das Da] como situação. Assim o que se abre nunca é capaz de vir ao encontro do decidido de modo a poder perder o seu tempo com indecisão. STMSC: §79
A sequência de agora é ininterrupta e sem lacunas. Por “mais” que dividamos o agora em “partes”, ele sempre ainda é agora. A permanência do tempo é vista no horizonte de algo simplesmente dado e indissolúvel. É orientando-se ontologicamente por um ser simplesmente dado insistente que se busca resolver o problema da continuidade do tempo ou que se deixa subsistir a aporia. Assim deve ficar encoberta a estrutura específica do tempo do mundo, uma vez que ela se estica num lapso de tempo, junto com a possibilidade de datação, ekstaticamente fundada. Não é a partir da EX-TENSÃO, horizontal da unidade ekstática da temporalidade, publicada na ocupação do tempo, que se compreende o esticar-se num lapso de tempo. Que todo agora, mesmo o mais momentâneo, sempre já é agora, deve ser concebido a partir do ainda “anterior”, de onde brota todo agora: a partir da EX-TENSÃO ekstática da temporalidade, estranha a qualquer continuidade dos entes simplesmente dados, mas que, por sua vez, constitui a condição de possibilidade para o acesso a uma constância do que é simplesmente dado. STMSC: §81