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Ortega y Gasset: ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

quarta-feira 23 de março de 2022

O texto desta lição, na sua maior parte, corresponde à primeira das ministradas em Buenos Aires, em 1939, que foi publicada no livro ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO. MEDITAÇÃO DA TÉCNICA. Espasa-Calpe Argentino, Buenos Aires, 1939.

1. ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO

[O texto desta lição, na sua maior parte, corresponde à primeira das ministradas em Buenos Aires, em 1939, que foi publicada no livro ENSIMESMAMENTO E ALTERAÇÃO. MEDITAÇÃO DA TÉCNICA. Espasa-Calpe Argentino, Buenos Aires, 1939.]

Trata-se do seguinte: falam os homens hoje, a toda hora, da lei e do direito, do estado, da nação e do internacional, da opinião   pública e do poder público, da política boa e da má, de pacifismo e belicismo, da pátria e da humanidade, de justiça e injustiça social, de coletivismo e capitalismo, de socialização e de liberalismo, de autoritarismo, de indivíduo e de coletividade, etc, etc. E não somente falam no jornal, na tertúlia, no café, na taberna, mas, além de falar, discutem. E não só discutem, mas também combatem pelas coisas que esses vocábulos designam. E, no combate, acontece que os homens chegam a matar-se uns aos outros, às centenas, aos milhares, aos milhões. Seria inocência supor que, no que acabo de dizer, há alusão particular a qualquer povo determinado. Seria inocência, porque semelhante suposição equivaleria a crer que essas tarefas truculentas ficam confinadas a territórios especiais do planeta, quando são, muito mais, um fenômeno universal e de extensão progressiva, do qual serão muito poucos os povos europeus e americanos que conseguem ficar isentos por completo. Sem dúvida, a feroz contenda será mais grave em uns do que em outros e pode ser que algum conte com a genial serenidade necessária para reduzir ao mínimo o estrago. Porque este, certamente não é inevitável, mas em verdade muito difícil de evitar-se. Muito difícil porque, para sua evitação, feriam de juntar-se muitos fatores em colaboração, fatores de qualidade e classe diversas, magníficas virtudes junto a humildes precauções.

Uma dessas precauções, humilde, - repito, - porém imprescindível, se se quer que um povo atravesse indene estes tempos atrozes, consiste em conseguir que um número suficiente de pessoas desse povo perceba até que ponto todas essas ideias, - chamemo-las assim, - em torno das quais se fala, se combate, se discute e se trucida, são grotescamente confusas e superlativamente vagas.

Fala-se, fala-se de todas essas questões, mas o que se diz sobre elas carece da clareza mínima, sem a qual a operação de falar acaba sendo nociva. Porque falar traz sempre algumas consequências e, como dos citados temas se tem falado muito, - há anos quase não se fala, nem se deixa falar de outra coisa, - as consequências dessa loquacidade são, evidentemente, graves.

Uma das maiores desgraças do tempo é a aguda incongruência entre a importância que têm no presente todas essas questões e a rudeza e confusão dos conceitos sobre as mesmas, que esses vocábulos representam.

Note-se que todas essas ideias, - lei, direito, estado, inter-nacionalidade, coletividade, autoridade, liberdade, justiça social, etc, - quando já não o ostentam em sua expressão, implicam sempre, como seu ingrediente essencial, a ideia do social, de sociedade. Se esta não está clara, todas essas palavras não significam o que pretendem e são meros espaventos. Ora, - confessemo-lo ou não, - todos, em nosso fundo insubornável, temos a consciência de não possuir, sobre essas questões, senão noções errantes, imprecisas, néscias ou turvas. E, desgraçadamente, a rudeza e confusão a respeito de tal matéria não existe somente no vulgo, mas também nos homens de ciência, até o ponto de que não é possível dirigir-se o profano a nenhuma publicação onde possa, de verdade, retificar e polir seus conceitos sociológicos.

Não esquecerei jamais a surpresa, pintada de vergonha s de escândalo, que senti quando, faz muitos anos, consciente de minha ignorância sobre este tema, acudi cheio de ilusão, soltas todas as velas da esperança, aos livros de sociologia, e me encontrei com uma coisa incrível, a saber, que os livros de sociologia não nos dizem nada claro sobre o que é o social, sobre o que seja a sociedade. Mais ainda: não somente não conseguem dar-nos uma noção precisa do que é o social, do que é a sociedade, como ainda, ao ler esses livros, descobrimos que seus autores, - os senhores sociólogos, - nem sequer tentaram, um pouco a sério, por-se eles mesmos em claro sobre os fenômenos elementares em que consiste o fato social. Inclusive em trabalhos que, pelo seu título, parecem enunciar que se vão ocupar a fundo do assunto, logo vemos que o eludem, - diríamos, - com plena consciência. Passam sobre esses fenômenos, - repito: preliminares e inevitáveis, - como sobre brasas e, salvo alguma exceção, essa mesma, sumamente parcial - como Durkheim, vemo-los lançar-se com invejável audácia a opinar sobre os temas mais terrivelmente concretos da convivência humana.

Eu não posso, é claro, demonstrar isso agora, porque tal intento ocuparia muito, do escasso tempo que temos a nossa disposição. Baste-me fazer esta simples observação estatística que me parece ser o cúmulo.

Primeiro: as obras nas quais Augusto Comte inicia a ciência sociológica sobem a mais de cinco mil páginas com letra bem apertada. Pois bem: entre todas elas, não encontraremos linhas bastantes para encher uma página e que tratem de dizer-nos o que Augusto Comte entende por Sociedade.

Segundo: o livro em que essa ciência ou pseudociência celebra o seu primeiro triunfo sobre o horizonte intelectual, - os "Princípios de Sociologia", de Spencer, publicados entre 1876 e 1896, - não contará menos de duas mil e quinhentas páginas. Não creio que cheguem a cinquenta as linhas dedicadas a perguntar-se o autor que coisas sejam essas estranhas realidades; as sociedades, de que a obesa publicação se ocupa.

Enfim, há poucos anos apareceu o livro de Bergson  , - no mais, encantador - intitulado "As Duas Fontes da Moral   e da Religião". Sob este título hidráulico, que por si mesmo é já uma paisagem, se oculta um tratado de sociologia, em que não existe uma única linha em que o autor nos diga formalmente que são essas sociedades sobre as quais especula. Saímos de sua leitura, isso, sim, como de uma selva, cobertos de formigas e envoltos nos vôos palpitantes das abelhas, porque tudo que faz o autor, para esclarecer-nos sobre a estranha realidade das sociedades humanas, é referir-se ao formigueiro e à colmeia, às presumidas sociedades animais, das quais, - certamente, - sabemos menos do que da nossa.

Isso não quer dizer, nem muito menos, que nessas obras, como em algumas outras, faltem entrevisões, às vezes genias, de certos problemas sociológicos. Carecendo, porém, de evidência, no elementar, esses acertos permanecem secretos e herméticos, inatingíveis, para o leitor normal. Para aproveitá-los, teríamos de fazer o que os seus autores não fizeram-, tentar trazer à luz esses fenômenos preliminares e elementares, esforçar-nos denodada-mente, sem escusas, em precisar o que é o social, o que é a sociedade. Porque esses autores não o fizeram, chegam como cegos geniais a apalpar certas realidades, - eu diria: a tropeçar nelas, - mas não conseguem vê-las e, muito menos, esclarecê-las para nós. De modo que nosso trato com eles vem a ser o diálogo do cego com o entrevado:

  •  Como anda você, bom homem? - pergunta o cego ao entrevado. E este responde ao cego:
  •  Como vê, amigo. . .

    Se isso acontece com os mestres do pensamento sociológico, mal pode estranhar-nos que as gentes, na praça pública, vociferem em torno dessas questões. Quando os homens não têm nada claro a dizer sobre uma coisa, em vez de calar-se, costumam fazer o contrário: dizem em superlativo, isto é, gritam. E o grito é o preâmbulo sonoro da agressão, do combate, da matança. Dove si grida non è vera scienza - dizia Leonardo. Onde se grita não há bom conhecimento.

    Eis aí como a inépcia da sociologia, enchendo de ideias confusas as cabeças, chegou a converter-se em uma das pragas do nosso tempo. Corn efeito, a sociologia não está à altura dos tempos; por isso, os tempos, mal sustentados em sua altitude, caem e se precipitam.

    Se isso é assim, não lhes parece que seria uma das melhores maneiras de não perder por completo o tempo que vamos passar juntos, dedicar-nos a esclarecer um pouco o que é o social, o que é a sociedade? Muitos sabem bem pouco ou sabem nada do assunto. Por que não juntar nossas ignorâncias? Por que não formar uma sociedade anônima, com um bom capital de ignorância, e lançarmo-nos à empresa, sem pedantismo ou com a menor dose possível, mas com vivo afã de ver claro, com alegria intelectual, - uma virtude que começava a perder-se na Europa  , - com essa alegria que suscita em nós a esperança de que subitamente vamos encher-nos de evidências?

    Partamos, pois, mais uma vez, à procura de ideias claras. Isto é de verdades.

    São muito poucos os povos que a estas horas, - e me refiro a antes de estalar esta guerra tão tôrva, que estranhamente nasce como se não quisesse acabar de nascer, - são muito poucos, digo, os povos que nos últimos tempos gozavam já da tranquilidade de horizontes que permite escolher de verdade, recolher-se na reflexão. Quase todo o mundo está alterado, e na alteração o homem perde o seu atributo mais essencial: a possibilidade de meditar, de recolher-se dentro de si mesmo, para se pôr de acordo consigo mesmo e precisar, para si mesmo, aquilo que crê; aquilo que estima de verdade e o que deveras detesta. A alteração o obnubila, o cega, o obriga a atuar mecanicamente em um frenético sonambulismo.

    Em nenhuma parte advertimos que a possibilidade de meditar é, de fato, o atributo essencial do homem, melhor do que no Jardim Zoológico, diante das jaulas de nossos primos, os macacos. O pássaro e o crustáceo são formas de vida demasiado distantes da nossa para que, ao confrontarmo-nos com eles, percebamos outra coisa senão diferenças avultadas, abstratas, vagas, de tão excessivas. O símio, porém, tanto se parece conosco que nos convida a afinar a comparação, a descobrir diferenças mais concretas e mais férteis.

    Se sabemos permanecer quietos um instante, contemplando passivamente a cena simiesca, em breve se destacará dela, como que espontaneamente, um traço que nos chega como um raio de luz. E é aquele estar constantemente alerta dos endiabrados animaizinhos em perpétua inquietação, olhando, escutando todos os sinais que lhes chegam de redor, atentos sem descanso ao contorno, como que temendo que dele chegue sempre um perigo ao qual é forçoso responder automaticamente com a fuga ou com a dentada, em mecânico disparo de um reflexo muscular. O animal, com efeito, vive em perpétuo medo do mundo e, ao mesmo tempo, em perpétuo apetite das coisas que há nele e que nele aparecem, um apetite indomável que dispara também sem freio nem inibição possíveis, igual ao pavor. Em um e outro caso, são os objetos e os acontecimentos do ambiente que governam a vida do animal, que o trazem e o levam, como uma marionete. O animal não rege a sua existência, não vive a partir de si mesmo, mas está sempre atento ao que se passa fora dele, a esse outro diferente dele. Nosso vocábulo outro não é senão o latino alter. Dizer, portanto, que o animal não vive a partir de si mesmo, mas do outro, trazido e levado e tiranizado por seu outro, equivale a dizer que o animal vive sempre alterado, alienado, que a sua vida é constitutiva alteração.

    Contemplando esse destino de inquietação sem descanso, chega o momento em que nos dizemos: "que trabalho!". Com isso enunciamos, com plena ingenuidade, sem percebê-lo formalmente, a diferença mais substantiva entre o homem e o animal. Porque essa expressão diz que sentimos uma estranha fadiga, uma fadiga gratuita, suscitada pela simples antecipação imaginária de que tivéssemos de viver como eles, perpètuamente acossados pelo ambiente e em tensa atenção a êle. E, porventura, o homem não se acha, como o animal, prisioneiro do mundo, cercado de coisas que o espantam, de coisas que o encantam, e obrigado, por toda a vida, inexoravelmente, queira ou não queira, a ocupar-se delas? Sem dúvida. Mas com esta diferença essencial: que o homem pode, de quando em quando, suspender sua ocupação direta com as coisas, desligar-se de seu contorno, desentender-se dele e, submetendo a sua faculdade de atender a uma torção radical, - incompreensível zoològicamente, - voltar-se, por assim dizer, de costas ao mundo, e meter-se dentro de si, atender à sua própria intimidade ou, o que é igual, ocupar-se de si mesmo e não do outro, das coisas.

    Com palavras que, de muito usadas, como velhas moedas, já não conseguem dizer com vigor o que pretendem, costumamos chamar a essa operação: pensar, meditar. Estas expressões, porém, ocultam o que há de mais surpreendente nesse fato: o poder que o homem tem, de retirar-se, virtual e provisoriamente, do mundo, e recolher-se dentro de si mesmo, ou, dito com um esplêndido vocábulo, que só existe em nosso idioma: que o homem pode ensimesmar-se (Referia-se Ortega, naturalmente, ao espanhol, sem se lembrar que no português também existe o verbo (N. doT.).).

    Note-se que essa maravilhosa faculdade que o homem tem, de libertar-se transitoriamente de ser escravizado pelas coisas, implica dois poderes muito diferentes: um, o de não atender, mais ou menos tempo, ao mundo em torno, sem risco fatal; outro, o de ter onde meter-se, onde estar, quando saiu virtualmente do mundo. Baudelaire expressa essa faculdade com romântico e amaneirado dandysmo quando, ao perguntar-lhe alguém onde preferiria viver, respondeu: "Em qualquer parte, contanto que seja fora do mundo!" Mas o mundo é a total exterioridade, o absoluto fora, que não consente nenhum fora para além dê!e. O único fora cabível, desse fora, é precisamente um dentro, um intus, a intimidade do homem, seu si mesmo, que está constituído principalmente por ideias.

    Porque as ideias possuem a extravagantíssima condição de que não estão em nenhum sítio do mundo, que estão fora de todos o lugares, embora simbolicamente as alojemos em nossa cabeça, como os gregos de Homero   as alojavam no coração e os pré-homéricos as situavam no diafragma ou no fígado. Todas essas mudanças de domicílio simbólico, que fazemos as ideias padecerem, coincidem sempre nisso.- colocá-las numa víscera,- isto é, em uma entranha, ou seja: no mais íntimo do corpo, embora o dentro do corpo seja sempre um dentro meramente relativo. Dessa maneira, damos uma expressão materializada, - já que não podemos fazer outra coisa, - à nossa suspeita de que as ideias não estão em nenhum lugar do espaço, o qual é pura exterioridade; ao contrário, elas constituem, diante do mundo exterior, outro mundo, que não está no mundo: o nosso mundo interior.

    Eis aí porque o animal tem de estar sempre atento ao que se passa fora dele, às coisas em torno. Porque, ainda que estas diminuíssem os seus perigos e as suas incitações, o animal tem de continuar sendo regido por elas, pelo de fora, pelo outro dele; porque não se pode meter dentro de si mesmo, um chez soi, onde recolher-se e repousar.

    O animal é pura alteração. Não pode ensimesmar-se. Por isso, quando as coisas deixam de ameaçá-lo ou acariciá-lo; quando lhe permitem uma vacância; em suma-, quando o outro deixa de movê-lo e manejá-lo, o pobre animal tem de deixar virtualmente de existir, isto é: dorme. Daí, a enorme capacidade de sonolência que manifesta o animal, a modôrra infra-umana, que continua em parte no homem primitivo e, opostamente, a insônia crescente do homem civilizado, a quase permanente vigília, - às vezes, terrível, indomável, - que aflige os homens de intensa vida interior. Não faz muitos anos, meu grande amigo Scheler  , - uma das mentes mais fecundas do nosso tempo, que vivia em incessante irradiação de ideias, - morreu de não poder dormir.

    Mas, bem entendido, - e com isto topamos pela primeira vez com algo que reiteradamente nos vai aparecer em quase todos os cantos e ângulos deste curso, embora cada vez em estratos mais profundos e em virtude de razões mais precisas e eficazes, - as que agora ofereço não são nem uma nem outra coisa; bem entendido, que estas duas coisas, o poder que o homem tem de subtrair-se ao mundo e o de ensimesmar-se não são dons feitos ao homem. Importa-me sublinhar isto para aqueles que se ocupam de filosofia: não são dons feitos ao homem. Nada que seja substantivo foi presenteado ao homem. Êle próprio tem de fazer tudo para si.

    Por isso, se o homem goza desse privilégio de liberar-se transitoriamente das coisas, e de poder entrar e descansar em si mesmo, é porque, com seu esforço, seu trabalho e suas ideias, conseguiu reoperar sobre as coisas, transformá-las e criar em seu redor uma margem de segurança sempre limitada, mas sempre ou quase sempre em aumento. Esta criação especificamente humana é a técnica. Graças a ela, e na medida de seu progresso, o homem pode ensimesmar-se. Mas também vice-versa, o homem é técnico, é capaz de modificar seu contorno no sentido de sua conveniência, porque aproveitou todo alento que as coisas lhe deixavam para ensimesmar-se, para entrar dentro de si e forjar para si ideias sobre esse mundo, sobre essas coisas e sobre sua relação com elas, para forjar um plano de ataque às circunstâncias; em suma, para construir-se um mundo interior. Desse mundo interior emerge e volta ao de fora. Mas volta na qualidade de protagonista, volta com um si mesmo que antes não tinha, - com seu plano de campanha, - não para deixar-se dominar pelas coisas, mas antes para governá-las, para lhes impor sua vontade e seu desígnio, para realizar, nesse mundo de fora, as suas ideias, para modelar o planeta segundo as preferências de sua intimidade. Longe de perder seu próprio si mesmo nesse regresso ao mundo, pelo contrário, leva seu si mesmo ao outro, projetando-o enérgica, senhorialmente sobre as coisas, isto é, faz com que o outro - o mundo - se vá convertendo pouco a pouco naquele êle mesmo. O homem humaniza o mundo, injeta-lhe sua própria substância ideal  , impregna-o dela e cabe imaginar que, um dia entre os dias, lá nos fundos do tempo, chegue a estar esse terrível mundo exterior tão saturado de homem, que possam nossos descendentes caminhar por êle como mentalmente caminhamos hoje pela nossa intimidade, - cabe imaginar que o mundo, sem deixar de sê-lo, chegue a converter-se em algo assim como uma alma materializada, e como em A Tempestade de Shakespeare, as rajadas do vento soprem impelidas por Ariel, o duende das ideias (Não digo que isso seja certo, - tal certeza semente o progressista a tem e eu não sou progressista, como se irá vendo, - mas digo que isso é possível. Nem se presuma, pelo que tenho dito, que sou idealista. Nem progressista nem idealista! Ao contrário, a ideia do progresso e o idealismo, - esse nome de molde tão lindo e tão nobre, - são duas de minhas feras negras, porque vejo nelas, talvez os dois maiores pecados dos últimos duzentos anos, as duas formas máximas de irresponsabilidade. Mas deixemos este tema para tratá-lo a seu tempo e sigamos agora gentilmente pelo nosso caminho.).

    Parece-me que presentemente podemos representar-nos, ainda que seja em vago esquematismo, qual tem sido a trajetória humana, considerada sob este ângulo. Façamo-lo num texto condensado, que nos sirva a um tempo como resumo e como recordação de tudo anteriormente dito.

    Acha-se o homem, não menos do que o animal, consignado ao mundo, às coisas em torno, à circunstância. Em princípio, sua existência mal difere da existência zoológica: êle, também, vive governado pelo contorno, inserido entre as coisas do mundo como uma delas. Não obstante, mal os seres em torno lhe deixam um alento, o homem, fazendo um esforço gigantesco, consegue um instante de concentração, mete-se dentro de si, isto é, mantém, a duras penas, sua atenção fixa nas ideias que brotam dentro dele, ideias que as coisas suscitam, e que se referem ao comportamento destas, ao que logo o filósofo chamará "o ser das coisas". Trata-se, de pronto, de uma ideia muito tosca, sobre o mundo, mas que permita esboçar um primeiro plano de defesa, uma conduta preconcebida. Mas, nem essas coisas em torno lhe permitem vagar por muito tempo nessa concentração; tampouco, embora elas o consentissem, esse homem primigênio seria capaz de prolongar mais de uns segundos ou minutos essa torção aten-cional, essa fixação nos impalpáveis fantasmas que são as ideias. Essa atenção para dentro, que é o ensimesmamento, constitui o fato mais antinatural, mais ultrabiológico. O homem tardou milhares de anos para educar um pouco, - nada mais que um pouco, - a sua capacidade de concentração. O que lhe é natural é dispersar-se, distrair-se para fora, como o macaco na selva e na jaula do Jardim Zoológico.

    O padre Chevesta, explorador e missionário, que foi o primeiro etnógrafo especializado no estudo dos pigmeus, provavelmente a variedade de homens mais antiga que se conhece, que êle foi procurar lá dentro das selvas tropicais mais recônditas, - o padre Chevesta, que desconhece por completo a doutrina agora exposta por mim e se limita a descrever o que vê, diz em sua última obra, de 1932, sobre os anões do Congo (Bambuti, die Zwerge des Congo):

    "Falta-lhes por completo o poder de concentrar-se. Estão sempre absorvidos pelas impressões exteriores, cuja contínua mutação lhes impede recolher-se a si mesmos, o que constitui condição indispensável a todo aprendizado. Sentá-los no banco de uma escola seria para estes homenzinhos um tormento insuportável. De modo que o trabalho do missionário e do mestre se torna sumamente difícil".

    Mas, embora instantâneo e tosco, esse primitivo ensimesma-mento vai separar radicalmente a vida humana da vida animal. Porque agora o homem, esse homem primigênio vai submergir novamente nas coisas do mundo, resistindo a elas, sem entregar-se de todo a elas. Leva um plano contra elas, um projeto de trato com elas, de manipulação de suas formas, que produz uma transformação mínima em seu redor, suficiente para que o oprimam um pouco menos e, em consequência, lhe permitam mais frequentes e folgados ensimesmamentos. . . e assim sucessivamente.

    São, pois, três momentos diferentes que ciclicamente se repetem ao longo da história humana em formas cada vez mais complexas e densas: I) O homem se sente perdido, naufragado nas coisas; é a alteração. II) O homem, com enérgico esforço, se recolhe à sua intimidade para formar ideias sobre as coisas e seu possível domínio; é o ensimesmamento, a vita   contemplativa como diziam os romanos, o theoretikòs bíos dos gregos, a theoria  . III) O homem torna a submergir no mundo para atuar nele conforme um plano preconcebido; é a ação, a vida ativa, a prâxis  .

    De acordo com isto, não se pode falar de ação senão na medida em que esteja regida por uma prévia contemplação; e vice-versa, o ensimesmamento não é senão um projetar a ação futura.

    O destino do homem é, portanto, primariamente ação. Não vivemos para pensar, mas ao contrário: pensamos para conseguir perviver. Este é um ponto capital em que, a meu juízo, urge que nos oponhamos radicalmente a toda tradição filosófica e nos resolvamos a negar que o pensamento, em qualquer sentido suficiente do vocábulo, tenha sido dado ao homem de uma vez para sempre, de forma que este o encontre, sem mais, à sua disposição, como uma faculdade ou potência perfeita, pronta a ser usada e posta em exercício, como ao pássaro foi dado o vôo e ao peixe, a natação.

    Se esta pertinaz doutrina fosse válida, teria como resultado que, como o peixe pode, - desde logo, - nadar, poderia o homem, - desde logo e sem mais nada, - pensar. Tal noção nos cega deploràvelmente para perceber o dramatismo peculiar, dramatismo único que constitui a condição mesma do homem. Porque se, por um momento, para nos entendermos neste instante, admitimos a ideia tradicional de que o pensamento seja a característica do homem, lembrem o homem, animal racional, - de sorte que ser homem equivalesse - como nosso genial pai Descartes   pretendia, - a ser coisa pensante, teríamos, que o homem, ao ser dotado de uma vez para sempre de pensamento, ao possuí-lo com a certeza com que se possui uma qualidade constitutiva e inalienável, estaria certo de ser homem como o peixe está certo, - com efeito, - de ser peixe. Ora; este é um erro formidável e fatal. O homem não está nunca certo de que vai poder exercitar o pensamento, entenda-se, de maneira adequada, e, somente se é adequada, é pensamento. Ou, expressado em linguagem mais vulgar: o homem não está nunca seguro de que vai estar certo, de que vai acertar. O que significa, nada menos, que esta coisa tremenda: que, diversamente de todas as demais entidades do universo, o homem não está, não pode nunca estar seguro de que é, com efeito, homem, como o tigre está seguro de ser tigre e o peixe, de ser peixe.

    Longe de ter sido presenteado o pensamento ao homem, a verdade é que, - uma verdade que agora não possa arrazoar suficientemente, mas somente enunciar, - a verdade é que o pensamento se vem fazendo, fabricando pouco a pouco graças a uma disciplina, a um cultivo ou cultura, a um esforço milenário, de muitos milênios, sem que se tenha ainda conseguido, - nem muito menos, - terminar essa elaboração. Não somente não foi dado o pensamento, desde logo, ao homem, mas, mesmo a esta altura da história, apenas se conseguiu forjar uma débil porção e uma tosca forma daquilo que, no sentido ingênuo e normal do vocábulo, costumamos entender por tal. E essa mesma porção já conseguida, a modo de qualidade adquirida e não constitutiva, está sempre em risco de perder-se; em grandes doses já se perdeu, muitas vezes, de fato, no passado, e hoje estamos prestes a perdê-la outra vez. Até esse grau, diversamente dos demais seres do universo, o homem não é nunca seguramente homem: ao contrário, ser homem significa, precisamente, estar sempre a ponto de o não ser, significa ser vivente problema, absoluta e azarosa aventura ou, como costumo dizer, ser, por essência, drama  ! Porque só há drama quando não se sabe o que vai acontecer, ou quando cada instante é puro perigo e trêmulo risco. Enquanto o tigre não pode deixar de ser tigre, não pode destigrar-se, o homem vive em risco permanente de desumanizar-se. Não só é problemático e contingente que lhe aconteça isto ou aquilo, como aos demais animais; ao homem lhe sucede às vezes nada menos que não ser homem. E isto é verdade, não só em abstrato e em gênero, mas é válido referindo-se à nossa individualidade. Cada um está sempre em perigo de não ser êle mesmo, único e intransferível que é. A maior parte dos homens atraiçoa continuamente esse êle-mesmo que está esperando ser, e, para dizer toda a verdade, nossa individualidade pessoal é uma personagem que não se realiza nunca de todo, uma utopia incitante, uma lenda secreta que cada qual guarda no mais íntimo do peito. Compreende-se muito bem que Píndaro   resumisse a sua ética heróica no conhecido imperativo: "chega a ser quem és".

    A condição do homem é, pois, incerteza substancial. Por isso está tão bem aquela máxima, gràcilmente amaneirada, de um senhor borgonhês do século XV: "Rien ne m’est sur que Ia chose incertaine". Nada é seguro para mim senão o "incerto" (Ortega traduziu assim para o espanhol: "Solo me es seguro lo inseguro e incierto" (N. do T.)).

    Não existe aquisição humana que seja firme. Mesmo aquilo que nos parece mais conseguido e consolidado pode desaparecer em poucas gerações. Isso que chamamos "civilização", - todas essas comodidades físicas e morais, todos esses descansos, todos esses abrigos, todas essas virtudes e disciplinas já, "habitualiza-das" com que costumamos contar e que com efeito constituem um repertório ou sistema de garantias que o homem fabricou para si como uma balsa, no naufrágio inicial que é sempre o viver, - todas essas garantias são garantias inseguras que, a qualquer cochilo, ao menor descuido, escapam de entre as mãos dos homens e se desvanecem como fantasmas.

    A história nos conta inumeráveis retrocessos, decadências e degenerações. Mas não foi dito que não sejam possíveis retrocessos muito mais radicais do que todos os conhecidos, inclusive o mais radical de todos: a total volatilização do homem como homem e seu taciturno reingresso na escala animal, na plena ^ definitiva alteração. A sorte da cultura, o destino do homem, depende de que no fundo de nosso ser mantenhamos sempre vivaz esta dramática consciência e, como um contraponto murmurante em nossas entranhas, sintamos bem que para nós só é segura a insegurança.

    Não escassa porção das angústias que retorcem hoje as almas do Ocidente provém de que durante o século passado, - e quiçá pela primeira vez na história, - o homem chegou a crer-se seguro. Porque a verdade é que seguro, seguro, só conseguiu sentir-se o farmacêutico monsieur Homais, produto nítido do progressismo! A ideia progressista consiste em afirmar não somente que a humanidade, - um ente abstrato, irresponsável, inexistente que então se inventou, - progride, o que é certo, mas também progride necessariamente. Tal ideia cloroformizou o europeu e o americano para essa sensação radical de risco que é substância do homem. Porque se a humanidade progride inevitavelmente, quer dizer que podemos abandonar toda alerta, despreocupar-nos, irresponsabilizar-nos, ou, como dizemos na Espanha, "tumbarnos a la bartola" (Expressão que corresponde à nossa: "deitar de papo para o ar" (N. do T.)) e deixar que ela, a humanidade, nos leve inevitavelmente à perfeição e à delícia. A história humana fica, deste modo, desossada de todo dramatismo e reduzida a uma tranquila viagem turística organizada por qualquer agência "Cook" de categoria transcendente. Caminhando assim, segura, para a sua plenitude, a civilização em que embarcamos seria como a nau dos feácios de que fala Homero, a qual, sem piloto, navegava direito ao porto. Esta segurança é o que estamos pagando agora (Eis aqui uma das razões pelas quais disse que não sou progressista. Aqui está porque prefiro renovar em mim, com frequência, a emoção que me causaram na juventude aquelas palavras de Hegel  , no começo de sua Filosofia da História: "Quando contemplamos o passado, isto é, a História, - diz, - o primeiro que vemos é só ruínas". Aproveitamos, de passagem, esta conjuntura para, desta visão, perceber o que há de frivolidade, e até de notável contrafação, no imperativo famoso de Nietzsche  : "Vivei em perigo". Que, além do mais, não é tampouco de Nietzsche, e sim a exasperação de um velho mote do Renascimento italiano, o famoso lema de Aretino: Vivere risolutamente. Porque não diz: Vivei alerta, o que estaria bem; senão: Vivei em perigo. E isto revela que Nietzsche, apesar de sua genialidade, ignorava que a substância mesma de nossa vida é perigo e que, portanto, acaba sendo afetada superfetação propormos como novidade algo acrescido e original, que o procuremos e o colecionemos. Ideia, além disso, típica da época que se chamou fin de siè-c!e; época que ficará na história, - culminou por volta de 1900, - como aquela em que o homem se sentiu mais seguro e, a um tempo, como a época, - com seus peitilhos e casacas, suas mulheres fatais, sua pretensão de perversidade e o seu culto barrèsiano do Eu, - como a época de contrafação por excelência. Em toda época há sempre certas ideias que eu chamaria ideias fishing, ideias que se enunciam e proclamam precisamente porque se sabe que não terão cabida; que não se pensam senão à maneira de jogo e folie - como há anos agradavam tanto na Inglaterra os contos de lobos, porque a Inglaterra é um país onde em 1668 se caçou o último lobo e carece, portanto, da experiência autêntica do lobo. - Em uma época que não tem experiência forte da insegurança, - como aquela, - brincava-se de vida perigosa.).

    Segue-se isto à conta de que o pensamento não é um dom do homem, mas aquisição laboriosa, precária e volátil.

    Assim pensando se compreenderá que me pareça um tanto ridícula a definição que Lineu e o século XVIII davam do homem, como homo sapiens. Porque, se entendermos esta expressão com boa fé, ela só pode significar para nós que o homem, com efeito, sabe, isto é, que sabe tudo o que precisa saber. Ora; nada mais longe da realidade. Jamais o homem soube o que necessitava saber. Pois se entendermos homo sapiens no sentido de que o homem sabe algumas coisas, muito poucas, mas ignora o resto, como esse resto é enorme, pareceria mais oportuno defini-lo como homo insciens, insipiens, como homem ignorante. E, decerto, senão fôssemos agora tão de carreira, poderíamos ver a cordura com que Platão   define o homem, precisamente pela sua ignorância. Esta é, de fato, privilégio do homem. Nem Deus nem a besta ignoram - aquele, porque possui todo o saber, e esta, porque não necessita dele.

    Conste, pois, que o homem não exercita o seu pensamento porque o encontra como um presente, mas porque, não tendo mais remédio senão viver submergido no mundo e bracejar entre as coisas, se vê obrigado a organizar as suas atividades psíquicas, não muito diferentes das do antropóide, em forma de pensamento, - que é o que não faz o animal.

    O homem, portanto, mais do que pelo que é, pelo que tem, escapa à escala zoológica por aquilo que faz, por sua conduta. Daí o ter de estar sempre vigiando-se a si mesmo.

    Isto é algo daquilo que eu desejava insinuar na frase, - que não parece senão uma frase, - segundo a qual não vivemos para pensar mas pensamos para conseguir subsistir ou perviver.

    Veja-se como isso de atribuir ao homem o pensamento como uma qualidade ingênita, - que, de início, parece uma homenagem e até uma adulação à sua espécie, - é, em rigor, uma injustiça. Porque não há esse dom nem tal presente; ao contrário, êle é uma penosa fabricação e uma conquista, como toda conquista, - seja de uma cidade, seja de uma mulher, - sempre inestável e fugidiça.

    Era necessária essa advertência sobre o pensamento, para ajudar a compreender meu enunciado anterior, segundo o qual o homem é primária e fundamentalmente ação. Homenageemos, de passagem, o primeiro homem que pensou com total clareza esta verdade, o qual não foi Kant   nem foi Fichte  , mas Augusto Comte, o demente genial.

    Vimos que ação não é qualquer caminhar aos golpes com as coisas em torno, ou com os outros homens-, isso é o infra-umano, isso é alteração. A ação é atuar sobre o contorno das coisas materiais ou dos outros homens conforme um plano preconcebido em uma prévia contemplação ou pensamento. Não há, pois, ação autêntica, não há pensamento, e não há autêntico pensamento, se este não está devidamente referido à ação, e virilizado pela sua relação com esta.

    Esta relação, porém, - que é a efetiva, - entre ação e contemplação, tem sido ignorada pertinazmente. Quando os gregos descobriram que o homem pensava, que existia no universo essa estranha realidade que é o pensamento, (até então os homens não tinham pensado, ou, como o bourgeois gentilhomme, tinham-no feito sem saber,) sentiram tal entusiasmo pelas graças das ideias, que atribuíram à inteligência, o logos  , a categoria suprema no orbe. Em comparação com isso, tudo mais lhes pareceu coisa subalterna e desprezível. E como tendemos a projetar em Deus tudo quanto nos parece ótimo, chegaram os gregos com Aristóteles   a sustentar que Deus não tinha outra ocupação, senão pensar. E nem sequer pensar nas coisas: isto lhes parecia uma espécie de envilecimento da operação intelectual. Não; segundo Aristóteles, Deus não faz outra coisa senão pensar no pensar - o que é converter Deus em um intelectual, mais precisamente, em um modesto professor de filosofia. Mas repito que, para eles, isto era o que havia de mais sublime no mundo e o que de mais sublime um ser pode fazer. Por isso acreditavam que o destino do homem não era outro senão exercitar seu intelecto, que o homem tinha vindo ao mundo para meditar ou, em nossa terminologia, para ensimesmar-se.

    Essa doutrina é o que se tem chamado intelectualismo, a idolatria da inteligência, que isola o pensamento de seu encaixe, de sua função na economia geral da vida humana. Como se o homem pensasse porque sim, e não porque, queira ou não queira, tem de fazê-lo para suster-se entre as coisas! Como se o pensamento pudesse despertar e funcionar pelas suas próprias molas, como se começasse e acabasse em si mesmo, e não, - o que é a verdade, - engendrado pela ação e tendo nela as suas raízes e o seu termo! Inumeráveis coisas da mais alta classe devemos aos gregos, mas também lhes devemos cadeias. O homem do Ocidente vive ainda, em medida escassa, escravizado por preferências que tiveram os homens da Grécia, os quais, operando no subsolo da nossa cultura, nos desviam, há oito séculos, de nossa própria e autêntica vocação ocidental. A mais pesada dessas cadeias é o "intelectualismo" e importa muito que, nesta hora em que é preciso retificar a rota, iniciar novos caminhos, - acertar, em suma, - importa muito que nos desfaçamos resolutamente dessa arcaica atitude que foi levada ao extremo nestas duas últimas centúrias.

    Sob o nome, primeiro, de raison, logo de ilustração, e, por fim, de cultura, operou-se a mais radical tergiversação dos termos e a mais indiscreta divinização da inteligência. Na maior parte de quase todos os pensadores da época, sobretudo nos alemães, por exemplo: nos que foram os meus mestres no começo do século, veio a cultura, o pensamento, a ocupar o posto abandonado de um deus em fuga. Toda a minha obra, desde os-seus primeiros balbucios, foi uma luta contra essa atitude, que há muitos anos chamei de "beatice da cultura". Beatice da cultura, porque nela se nos apresentava a cultura, o pensamento, como algo que se justifica a si mesmo, a saber, que não precisava de justificação, mas que é valioso por sua própria essência, sejam quais forem a sua concreta ocupação e o seu conteúdo. A vida humana devia pôr-se ao serviço da cultura, porque só assim se carregava de substância estimável. Assim sendo, ela, a vida humana, nossa pura existência, seria, por si mesma, coisa balda e sem apreço.

    Essa maneira de inverter a relação efetiva entre vida e cultura, entre ação e contemplação, deu motivo a que nos últimos cem anos, - portanto, até bem pouco, - se suscitasse uma superprodução de ideias, de livros e obras de arte, uma verdadeira inflação cultural. Caiu-se naquilo que, por gracejo, - porque desconfio dos "ismos", - poderíamos chamar de "capitalismo da cultura", moderno aspecto do bizantinismo. Em vez de atender ao consumo, vão-se produzindo, por produzir, as ideias necessárias, de que o homem de hoje precisa e que pode absorver. E, como acontece no capitalismo, saturou-se o mercado e sobreveio a crise. Não me digam que a maior parte das grandes mudanças ocorridas nos últimos tempos nos apanhou de surpresa. Há vinte anos as anuncio e as denuncio. Para me não referir senão ao tema estrito que glosamos agora, veja-se o meu ensaio intitulado, formal   e programàticamente, A reforma da inteligência, que se publicou por volta de 1922 ou 1923, e que foi reunido em volume ([Vejam-se Obras completas, tomo IV,]).

    O mais grave, porém, nessa aberração intelectualista que significa a beatice da cultura, não é isso, mas consiste em apresentar ao homem a cultura, o ensimesmamento, o pensamento, como uma graça ou joia que este deve acrescentar à sua vida, portanto, como algo que se acha desde logo fora dela, como se existisse um viver sem cultura e sem pensar, como se fosse possível viver sem ensimesmar-se. Com isso os homens eram postos, - como diante da vitrina de uma joalheria, - na opção de adquirir a cultura ou prescindir dela. E, é claro, diante de tal dilema, ao longo destes anos que estamos vivendo, os homens não vacilaram, mas resolveram ensaiar a fundo a última operação e pretendem fugir a todo ensimesmamento e entregar-se à plena alteração. Por isso, existem na Europa somente alterações.

    À aberração intelectualista que isola a contemplação da ação, sucedeu a aberração oposta: a voluntarista, que se exonera da contemplação e diviniza a ação pura. Esta é uma maneira de interpretar erroneamente a tese anterior, de que o homem é primária e fundamentalmente ação. Sem dúvida, toda ideia é susceptível, - mesmo a mais verídica, - de ser mal interpretada; sem dúvida, toda ideia é perigosa: isto é forçoso reconhecê-lo formalmente e de uma vez para sempre, a salvo de acrescentar que essa periculosidade, que esse risco latente não é exclusivo das ideias, mas vai anexo a tudo, absolutamente tudo que o homem faz. Por isso disse que a substância do homem não é outra coisa senão perigo. O homem caminha sempre entre precipícios, e, queira ou não queira, sua mais autêntica obrigação é conservar o equilíbrio.

    Como outras vezes aconteceu no passado conhecido, voltam agora, - e me refiro a estes anos, quase ao que já passou do século, - voltam agora os povos a submergir-se na alteração. O mesmo que aconteceu em Roma  ! A Europa começou deixando-se atropelar pelo prazer, como Roma, pelo que Ferrero chamou a luxúria, o excesso, o luxo das comodidades. Logo sobreveio o atropelamento pela dor e pelo pavor. Como em Roma, as lutas sociais e as consequentes guerras encheram as almas de estupor. E o estupor, a máxima forma de alteração, o estupor, quando persiste, se converte em estupidez. Chamou a atenção de alguns o fato de que, há algum tempo, com reiteração de leit motiv, me referisse em meus escritos ao ponto, não suficientemente conhecido, de que o mundo antigo, já em tempos de Cícero, começou a tornar-se estúpido. Já se disse que seu mestre Possidônio foi o último homem daquela civilização capaz de se pôr diante das coisas e pensar efetivamente nelas. Perdeu-se, - como ameaça perder-se na Europa, se não se lhe dá remédio, - a capacidade de ensimesmar-se, de nos recolhermos com serenidade ao nosso fundo insubornável. Fala-se somente de ação. Os demagogos, empresários da alteração, que já fizeram morrer várias civilizações, fustigam os homens para que não reflitam, procuram mantê-los enfeixados em multidões para que não possam reconstruir a sua pessoa onde unicamente se reconstrói, que é na solidão. Denigram o serviço à verdade, e nos propõem no seu lugar: mitos. E, com tudo isso, conseguem que os homens se apaixonem, e entre fervores e horrores se ponham fora de si.

    É claro que, como o homem é o animal que conseguiu meter-se dentro de si, quando o homem se põe fora de si é que aspira a descer, e recai na animalidade. Tal é a cena, sempre idêntica, das épocas em que se diviniza a pura ação. O espaço se povoa de crimes. Perde valor, perde preço a vida dos homens, e se praticam todas as formas da violência e da espoliação. Sobretudo da espoliação. Por isso, sempre que se observe que ascende sobre o horizonte e chega ao predomínio a figura do puro homem de ação, a primeira coisa que cada um deve fazer é abotoar-se. Quem quer aprender, de verdade, os efeitos que a espoliação causa em uma grande civilização pode vê-lo no primeiro livro de alta classe que se escreveu sobre o Império Romano  , - até agora, não sabíamos o que este havia sido, - refiro-me ao livro do grande russo Rostovzeff, professor há muitos anos na América do Norte, intitulado: "História social e econômica do Império Romano".

    Deslocada desta forma de sua normal conjuntura com a contemplação, com o ensimesmamento, a ação pura permite e suscita apenas uma concatenação de atos insensatos que melhor deveríamos chamar desencadeamento. Assim vemos hoje que uma atitude absurda justifica o advento de outra atitude antagônica, mas tampouco razoável; pelo menos, suficientemente razoável, e assim sucessivamente. As coisas da política chegaram no Ocidente ao extremo de que, à força de ter todo mundo perdido a razão, acabam tendo-a todos. Apenas, a razão que cada um tem não é a sua, mas a que o outro perdeu.

    Estando assim as coisas, parece prudente que, onde as circunstâncias permitam alento, por mínimo que seja, se rompa esse círculo mágico da alteração, que nos precipita de insensatez em insensatez; parece prudente que nos digamos, - como, depois de tudo, muitas vezes nos dizemos em nossa vida mais vulgar, sempre que o contorno nos atropela, que nos sentimos perdidos num tor-velinho de problemas, - que nos digamos: Calma! Que sentido tem esse imperativo? Simplesmente, o de convidar-nos a suspender um momento a ação, para nos recolher dentro de nós próprios, para passar uma revista em nossas ideias sobre a circunstância e forjarmos um plano estratégico.

    Não julgo, pois, que seja nenhuma extravagância nem inso-lência se, ao chegar a um pais que goza ainda de serenidade, em seu horizonte, penso que a obra mais fértil que possa fazer para si mesmo e para os demais humanos não é contribuir para a alteração do mundo, e, menos ainda, alterar-se êle mais do que é devido, por conta de alterações estranhas, mas aproveitar sua afortunada situação para fazer o que os outros agora não podem: ensimesmar-se um pouco. Se agora, ali onde é possível, não se cria um tesouro de novos projetos humanos, - isto é, de ideias, - pouco podemos confiar no futuro. A metade das tristes coisas que hoje acontecem, a metade delas ocorre porque esses projetos faltaram, como o anunciei por volta de 1922, no prólogo de meu livro "Espanha invertebrada".

    Sem retirada estratégica a si mesmo, sem pensamento alerta, a vida humana é impossível. Recorde-se tudo que o homem deve a certos grandes ensimesmamentos! Não é um acaso que todos os grandes fundadores de religiões antepusessem famosos retiros a seu apostolado. Buda se retira para a montanha; Mahomé se retira para sua tenda, e ainda dentro de sua tenda se retira dela, envolvendo a cabeça com seu albornoz; superando a todos, Jesus se apartou quarenta dias no deserto. Que devemos a Newton  ? Quando alguém, maravilhado de que tivesse conseguido reduzir a um sistema tão exato e simples os inumeráveis fenômenos da física, lhe perguntava como tinha conseguido fazê-lo, respondia ingenuamente: nocte dieque incubando, "dándole vuel-tas dia y noche" (Mantemos a tradução de Ortega (N. doT.)), palavras através das quais entrevemos vastos e abismáticos ensimesmamentos.

    Há hoje uma grande coisa no mundo que está moribunda, e é a verdade. Sem certa margem de tranquilidade, a verdade sucumbe. Eis aqui como agora frisamos o friso iniciado com nossas palavras do começo, para dar plenamente sentido às quais já disse quanto disse.

    Por esse motivo, diante das incitações para a alteração, que hoje nos chegam dos quatro pontos cordiais e de todos os recantos da existência, acreditei que devia antepor ao presente curso esboço dessa doutrina do ensimesmamento, embora feito à pressa, sem poder demorar-me a gosto em nenhuma de suas partes e mesmo deixando tácitas não poucas, pois nem sequer, por exemplo, pude indicar que o ensimesmamento, como tudo que é humano, é sexuado, quer dizer que há um ensimesmamento masculino e outro ensimesmamento feminino. Como não pode deixar de ser, já que a mulher não é si mesmo, senão si mesma.

    Igualmente, o homem oriental se ensimesma de modo diferente ao do homem do Ocidente. O ocidental se ensimesma em claridade da mente. Recordem-se os versos de Goethe  :

    Eu me confesso da estirpe desses que do escuro ao claro aspiram. [Ich   bekenne mich zu dem Gescheecht Das aus dem Dunkel ins Helle strebt.]

    A Europa e a América significam o ensaio de viver sobre ideias claras, não sobre mitos. Porque agora faltam essas ideias claras, o europeu se sente perdido e desmoralizado.

    Maquiavelo, - que é coisa muito diferente do maquiavelismo, - Maquiavelo nos diz, elegantemente, que, quando um exército se desmoraliza e se esparrama desarticulado, só há uma salvação: "Ritornare ai segno", "voltar à bandeira", recolher-se sob sua ondulação e reagrupar, sob o signo, as hostes dispersas. A Europa e a América têm também de "ritornare ai segno" das ideias claras. As novas gerações, que gostam do corpo limpo, e do ato nítido, têm de integrar-se na ideia clara, de arestas rigorosas, a que não é supérflua nem linfática, a que é necessária para viver. Voltemos, - repito, - dos mitos às ideias claras e distintas, como há três séculos as chamou com solenidade pro-gramática a mente mais acerrada que houve no Ocidente: Renato Descartes, "aquele cavalheiro francês que se pôs a andar com tão bom passo", segundo dizia Péguy. Bem sei que Descartes e seu racionalismo são pretérito perfeito, mas o homem não é nada positivo se não é continuidade. Para superar o passado é preciso não perder o contacto com êle; pelo contrário, senti-lo bem sob nossos pés porque subimos sobre êle.

    Do imenso emaranhado de temas que será forçoso esclarecer, se se ambiciona uma nova aurora, elejo um, que me parece urgente: "que é o social, que é a sociedade", - um tema, se se quiser, bastante humilde, desde logo, pouco brilhante e, o que é pior, sobradamente difícil. Mas, o tema é urgente. Êle constitui a raiz desses conceitos, - Estado, nação, lei, liberdade, autoridade, coletividade, justiça, etc. - que hoje põem os mortais em frenesi. Sem luz sobre esse tema, todas essas palavras representam somente mitos. Iremos afastar-nos de todo esse falar da gente, até um estrato onde os mitos não chegam e começam as evidências. Vamos procurar um pouco dessa luz. Não se espere coisa maior. Dou o que tenho; que outros, capazes de fazer mais, façam o seu mais, como eu faço o meu menos.

    NOTA PRELIMINAR

    A partir de uma nota que acompanhava o estudo "História como sistema" (Publicado em 1935, como porte do volume PHILOSOPHY AND HISTO-RY, dirigido por Klibansky e editado pela Oxford University Press.), e em reiteradas ocasiões posteriores, anunciava Ortega a aparição de um livro seu, que abrangeria sua doutrina sociológica, sob o título de O HOMEM E A GENTE. Em rigor, foi em 1934, numa conferência pronunciada em Valladolid, com o mesmo título, que êle, pela primeira vez, expôs publicamente sua ideia sobre os "usos" como sendo característicos do social. (À parte de seus cursos universitários, especialmente, um reduzido seminário na universidade de Madri, sobre "Estrutura da Vida Histórica e Social"). E, mais tarde, seu trabalho público, sob esse título, foi ativo. Em Buenos Aires, dois cursos sucessivos, de seis e quatro lições; em Madri, no Instituto de Humanidades, por êle organizado, um curso de doze; dois cursos na Alemanha, em Munich e Hamburgo, e um último na Suíça, - os três, de quatro lições. Os textos de todos eles oferecem exposições diferentes do seu pensamento, em torno dos princípios de uma nova sociologia. Não obstante, nossa tarefa foi simples, pois Ortega tinha preparado a edição do presente volume, com vistas à sua versão e edição simultânea na Alemanha, na Holanda e nos Estados Unidos. Em linhas gerais, o autor conservou o texto que preparou para o curso ministrado em 1949-50 no Instituto de Humanidades, incluindo novos desenvolvimentos em algumas questões. Anexamos, em notas de pé de página, alguns parágrafos que pareciam omitidos.

    O texto atinge a totalidade do índice previsto; a morte surpreendeu o autor, quando trabalhava nos últimos capítulos. Em ulteriores edições, quando todos os seus escritos inéditos estiverem publicados, acrescentaremos às epígrafes faltantes, - que oferecemos em APÊNDICE, - as oportunas referências ao resto de sua obra, em que esses temas têm um desenvolvimento suficiente.

    As questões fundamentais acham-se tratadas neste volume; êle situa, certamente, o urgente e transbordante problema que apresentam hoje os temas sociológicos, em um nível de esclarecedor radicalismo não alcançado por nenhuma outra filosofia.

    OS COMPILADORES

    ABREVIATURA [A titulo de introdução, reproduzimos as páginas que o autor publicou na Argentina, em forma de folheto, para uso dos que assistiram ao segundo ciclo de seu curso sobre O HOMEM E A GENTE.]

    Ao reatar agora as LIÇÕES SOBRE O HOMEM E A GENTE, dadas na primavera passada, torna-se imprescindível ter claro e presente o que nelas se alcançou. A fim de não sobrecarregar as quatro lições que o ciclo deste ano comporta, com o resumo inevitável, no qual os conceitos, obtidos e esclarecidos na série anterior, renovassem a sua presença na mente daqueles que me vão escutar e poder, desde logo, tratar de novos temas de minha doutrina sociológica, julguei que seria bom concentrar nestas páginas o mais indispensável.

    Comecei por afirmar que boa parte das angústias históricas atuais procede da falta de clareza sobre problemas que somente a sociologia pode esclarecer, e que essa falta de clareza na consciência do homem médio se origina, por sua vez, no estado deplorável da teoria sociológica. A insuficiência da doutrina sociológica que hoje está à disposição de quem procure, de boa fé, orientar-se sobre o que é a política, o Estado, o direito, a coletividade e sua relação com o indivíduo, a revolução, a guerra, a justiça, etc, - a saber: as coisas de que mais se fala desde quarenta anos atrás, - estriba-se em que os próprios sociólogos ainda não analisaram suficientemente a sério, radicalmente, isto é, indo à raiz, os fenômenos sociais elementares. Vem daí que todo esse repertório de conceitos seja impreciso e contraditório.

    Torna-se urgente esclarecer deveras o que é sociedade, sem o que nenhuma das noções citadas pode possuir clara substância. Não é possível, porém, obter uma visão luminosa, evidente, do que seja sociedade se, previamente, não estamos esclarecidos sobre os seus sintomas, sobre quais são os fatos sociais em que a sociedade se manifesta e em que consiste. Daí a necessidade forçosa de precisar o caráter geral do social.

    Mas não foi dito que o social seja uma realidade peculiar. Poderia acontecer que fosse só uma combinação ou resultado de outras realidades, como os corpos não são "em realidade" mais do que combinações de moléculas e estas, de átomos. Se, como se tem acreditado quase sempre, - e com consequências praticamente mais graves no século XVIII, - a sociedade é somente uma criação dos indivíduos que, em virtude de uma vontade deliberada "se reúnem em sociedade"; portanto, se a sociedade não é mais do que uma "associação", a sociedade não tem própria e autêntica realidade e não faz falta uma sociologia. Bastará estudar o indivíduo.

    Ora, a questão de ser uma coisa, que não, própria e ultimamente, realidade, só se pode resolver com os meios radicais da análise e da técnica filosóficas.

    Trata-se, pois, de investigar se, no repertório das realidades autênticas, - isto é, de tudo quanto já não é redutível a alguma outra realidade, - existe algo que corresponda a isso que vagamente denominamos "fatos sociais".

    Para tanto, temos de partir da realidade fundamental, em que todas as demais, de um modo ou de outro, têm de aparecer. Essa realidade fundamental é nossa vida, a de cada um, e é cada um que tem de analisar se, no âmbito que constitui a sua vida, aparece o social como alguma coisa diferente de tudo mais e irredutível a tudo mais.

    Na área de nossa vida, - prescindindo do problema transcendente que é Deus, - achamos minerais, vegetais, animais e os outros homens, realidades irredutíveis entre si e, portanto, autênticas. O social aparece-nos adstrito somente aos homens. Fala-se também de sociedades animais, - a colmeia, o formigueiro, o termitário, o rebanho; - sem entrar, porém, em mais considerações, basta a de que o homem, como realidade, não foi reduzido à realidade animal, para que não possamos, por enquanto, ao menos, considerar como sinônima a palavra sociedade, quando falamos de "sociedade humana" e de "sociedade animal". Portanto:

    "1. - O social consiste em ações ou comportamentos humanos, - é um fato da vida humana. Mas a vida humana é sempre a de cada um, é a vida individual ou pessoal e consiste em que o EU que cada qual é se encontre tendo de existir em uma circunstância, - o que costumamos chamar mundo, - sem segurança de existir no instante imediato, tendo sempre de estar fazendo algo, - material ou mentalmente, - para assegurar essa existência. O conjunto desses afazeres, ações ou comportamentos, é a nossa vida. Só é, pois, humano, no sentido estrito e primário, o que faço por mim mesmo e em vista de meus próprios fins ou, o que é a mesma coisa, o fato humano é um fato sempre pessoal. Isto quer dizer:

    a) - Que é só propriamente humano em mim o que penso, quero, sinto e executo com meu corpo, sendo eu o "sujeito criador disso", ou o que a mim mesmo, como tal eu-mesmo, acontece.

    b) - Portanto, somente é humano o meu pensar, se penso alguma coisa por minha própria conta, advertindo-me do que significa. SOMENTE É HUMANO AQUILO QUE, AO FAZER, O FAÇO PORQUE TEM PARA MIM UM SENTIDO, A SABER, AQUILO QUE ENTENDO.

    c) - Em toda ação humana existe, pois, um SUJEITO do qual ela emana e que, por isso mesmo, é RESPONSÁVEL por ela.

    d) - Consequência do anteriormente exposto é que a minha vida humana, que me põe em relação direta com quanto me rodeia, - minerais, vegetais, animais, os outros homens, - é, por essência, solidão. Minha dor de dentes só a mim pode doer. O pensamento que de verdade penso, - e não somente repito mecanicamente por tê-lo ouvido, - tenho de o pensar eu "sozinho" ou eu em minha solidão.

    Mas o fato social não é um comportamento de nossa vida humana como solidão; ao contrário, aparece enquanto estamos em relação com os outros homens. Não é, pois, vida humana no sentido estrito e primário.

    2. - O social é um fato, não da vida humana, mas algo que surge na convivência humana. Por convivência, entendemos a relação ou trato entre duas vidas individuais. O que chamamos pai e filhos, amantes, amigos, por exemplo, são formas de convívio. Nessa convivência sempre se trata de que um indivíduo, como tal, - portanto, um sujeito criador e responsável por suas ações, que faz o que faz porque para êle isso tem sentido e ê!e o compreende, - atua sobre outro indivíduo que tem as mesmas características. O pai, como indivíduo determinado qu« é, dirige-se a seu filho, que é outro indivíduo determinado e único também. Os fatos de convivência não são, portanto, por si mesmos, fatos sociais. Formam o que deveria chamar-se "companhia ou comunicação", - "um mundo de relações inter-individuais .

    Analise-se, porém, toda outra série de fatos humanos, como o cumprimento, como a ação do guarda que nos impede, em certo momento, de atravessar a rua. Neles, a ação, - dar a mão, o ato de o guarda impedir o nosso passo, - não o faz o homem porque lhe haja ocorrido, nem espontaneamente, isto é, sendo êle o responsável pela ação; tampouco é dirigida a outro homem por ser êle tal indivíduo determinado. O homem faz isso sem sua original vontade e amiúde contra a sua vontade. Além disso, - no caso do cumprimento, está bem claro, - o que fazemos, dar a mão, não o entendemos, não sabemos porque é isso e não outra coisa o que temos de fazer, quando encontramos um conhecido. Essas ações não têm, pois, sua origem em nós: somos meros executores delas, como o gramofone canta o seu disco, como o autômato pratica seus movimentos mecânicos.

    Quem é o sujeito originário, do qual essas ações provêm? Por que as fazemos, já que não as fazemos, nem por nossa invenção, nem com a nossa espontânea vontade? Damos a mão ao encontrar um conhecido porque isso é o que "se faz". O guarda detém nosso passo, não porque isso lhe tenha ocorrido, nem por sua conta, mas porque assim "é mandado". Quem é, porém, o sujeito originário e responsável por aquilo que se faz? A gente, os demais, "todos", a coletividade, a sociedade, - isto é: "ninguém determinado".

    Eis aqui, pois, ações que são, por um lado, humanas, já que consistem em comportamentos intelectuais ou de conduta especificamente humanos e que, por outro lado, nem se originam na pessoa ou indivíduo, nem este os quer, nem é responsável por eles e com frequência nem sequer os entende.

    Aquelas nossas ações que têm essas características negativas e que executamos por conta de um sujeito impessoal, indetermi-nável, que são "todos" e "ninguém", e que denominamos a gente, a coletividade, a sociedade, são os fatos propriamente sociais, irredutíveis à vida humana individual. Esses fatos aparecem no âmbito da convivência, porém não são fatos de pura convivência.

    O que pensamos ou dizemos porque "se" diz; o que fazemos porque "se" faz costuma chamar-se uso.

    OS FATOS SOCIAIS CONSTITUTIVOS SÃO USOS

    Os usos são formes de comportamento humano que o indivíduo adota e cumpre porque, de um modo ou de outro, em uma ou em outra medida, não tem mais remédio. São-lhe impostos pelo seu contorno de convivência: pelos "demais", pela "gente", pela sociedade.

    Para a doutrina sociológica que vai ser exposta nestas lições, basta que certos usos, se se querem os casos extremos do uso, se caracterizem por estes traços:

    1. - São ações que executamos em virtude de uma pressão social. Esta pressão consiste na antecipação, por nossa parte, das represálias "morais" ou físicas que nosso contorno vai exercer contra nós, se não nos comportarmos assim. Os usos são imposições mecânicas.

    2. - São ações cujo conteúdo preciso, a saber, o que fazemos nelas, é, para nós, ininteligível. Os usos são irracionais.

    3. - Encontramo-los como formas de conduta, que são ao mesmo tempo pressões, fora de nossa pessoa e de toda outra pessoa, porque atuam tanto sobre o próximo como sobre nós. Os usos são realidades extra-individuais ou impessoais.

    Durkheim, por volta de 1890, entreviu os traços 1. e 3. como constitutivos do fato social, mas não conseguiu acabar de vê-los bem, nem começou sequer a pensá-los. Basta dizer que não só não viu o traço 2., como acreditou tudo ao contrário, a saber: que o fato social era o verdadeiramente racional, porque emanava de uma suposta e mística "consciência social" ou "alma coletiva". Além disso, não advertiu que consiste em usos, nem o que é o uso. Ora, a irracionalidade é a nota decisiva. Quando se entende bem, entende-se que as outras duas características, - ser pressão sobre o indivíduo e ser exterior a este, ou extra-individuais, - quase que só coincidem no vocábulo com aquilo que Durkheim percebeu. De qualquer modo, seja dito em sua homenagem, foi êle quem esteve mais perto de uma intuição certa do fato social.

    Ao seguir os usos, comportamo-nos como autômatos, vivemos por conta da sociedade ou coletividade. Esta, no entanto, não é algo humano ou sobre-humano; ao contrário: atua exclusivamente mediante o simples e puro mecanismo dos usos, dos quais ninguém é sujeito criador, responsável e consciente. E, como a "vida social ou coletiva" consiste nos usos, essa vida não é humana, é algo intermédio entre a natureza e o homem, é uma quase-natureza e, como a natureza: irracional, mecânica e brutal. Não há uma "alma coletiva". A sociedade, a coletividade é a grande desalmada, - já que é o humano naturalizado, mecanizado e como que mineralizado. Por isso está justificado que a sociedade se chame "mundo" social. Não é, com efeito, tanto "humanidade" como "elemento inumano" em que a pessoa se encontra.

    Não obstante, a sociedade, ao ser mecanismo, é uma formidável máquina de fazer homens.

    Os usos produzem no indivíduo estas três principais categorias de efeitos:

    I - São pautas do comportamento que nos permitem prever a conduta dos indivíduos que não conhecemos e que, portanto, não são, para nós, tais determinados indivíduos. A relação inter-individual somente é possível com o indivíduo ao qual individualmente conhecemos, isto é, com o próximo de nós. Os usos nos permitem a quase-convivência com o desconhecido, com o estranho.

    II - Ao impor, por pressão, um determinado repertório de ações, - de ideias, de normas, de técnicas, - obrigam o indivíduo a viver à altura dos tempos e injetam nele, queira ou não queira, a herança acumulada no passado. Graças à sociedade, o homem é progresso e história. A sociedade entesoura o passado.

    III - Ao automatizarem uma grande parte da conduta da pessoa e dar-lhe resolvido o programa de quase tudo que tem de fazer, permitem que essa pessoa concentre sua vida individual, criadora e verdadeiramente humana, em certas direções, o que de outro modo seria impossível ao indivíduo. A sociedade situa o homem em certa liberdade diante do porvir e lhe permite criar o novo, racional e mais perfeito.

    JOSÉ ORTEGA Y GASSET


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