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Luiz Bicca (1999:13-19) – mundo

quinta-feira 24 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Essas totalidades que enquadram e arranjam previamente as coisas para as compreensões primárias impelem o pensamento em direção à totalidade das totalidades, vêm a ser, ao mundo. Heidegger fornece-nos definições concisas de mundo, concebidas do ponto de vista da existência humana: “Mundo é… aquilo que é anterior, no sentido rigoroso da palavra — anterior: aquilo que anteriormente, antes já da concepção (Erfassen) deste ou daquele ente em cada Dasein existente, está desvelado e [13] compreendido, anterior como aquilo que já sempre previamente desvelado dispõe-se em relação a nós (her zu uns Steht) (…) é aquilo… a partir de que nos voltamos para o ente com que temos a ver e junto a que nos detentos” (GA24  :235). Um pouco mais à frente, complementando esta primeira observação e explicitando a unidade fundamental entre o Dasein e seu mundo, encontra-se esta outra: “O mundo é algo conforme ao Dasein [ou que tem a medida do Dasein: Daseinsmässig — L.B.]. Ele não está simplesmente dado [vorhanden: o que se fazendo presente, à mão, é entretanto restringido à apresentação ou feição, seu ser para a consideração] tal como as coisas, mas está aí, como o Da-sein que nós mesmos somos é, quer dizer, existe. (…) Mundo não está simplesmente dado e sim existe, isto é, tem o modo de ser do Dasein” (237). E por último, reforçando o que também é sustentado em Ser e Tempo  , “Mundo é apenas se e enquanto existe um Dasein” (241). Desse conjunto de afirmações depreende-se não somente a copertença entre o Dasein, sua ípseidade primária e seu mundo. Para a presente discussão importa enfatizar, desde já, o aspecto essencial de existência do Dasein (o único existente!). Neste contexto de reflexão, “existência” não quer dizer o mero estar dado ou apresentar-se factualmente de alguma coisa. Tampouco significa substancialidade ou algo como um substrato permanente e uniforme em meio a alterações consideráveis como inessenciais ou secundárias. Existir aqui é ex-sistire, quer dizer, sair ou ir para fora de si (aussich heraustreten) [14] que é ao mesmo tempo uma renúncia ou decaída de si próprio e uma ex-posição: o Dasein se expõe (o que implica arriscar), colocando-se sempre em jogo, projetando-se a partir de e em direção a um mundo (sich Welt vorher-werfen). Com isso está se afirmando a essência transcendente do homem. Ele é ex-sistenz, isto é, transcendência. Ao contrário do que tradicionalmente se pensa, não são as coisas que transcendem porque estão “no exterior” ou “além do sujeito”, mas o Dasein transcende, vai além de si, às coisas, a algum outro e a si mesmo.

Pelo que já foi exposto percebe-se que a transcendência é um constitutivo fundamental do Dasein do homem, anterior a qualquer comportamento seu, e é um fator central para distinguir o Dasein e o sujeito da metafísica moderna. Por sua essencial abertura, o Dasein tem, ou melhor, é esse poder de pôr-se e estar fora de si, antes de quaisquer relações com objetos. É graças à sua transcendência que a abertura é radicalmente originadora. Podemos então distinguir na transcendência da ex-sistência três momentos intimamente articulados: aquele que ultrapassa, isto é, o Dasein, aquilo que é ultrapassado, o ente ou a instância dos entes, e aquilo para que se dirige essa ultrapassagem: o mundo. Mundo é portanto algo que faz parte necessariamente da estrutura relacional que caracteriza o Dasein e é o que este último atinge quando vai além do ente. Ele torna-se, assim, condição de configuração de mundo. Pela transcendência ele já [15] está também além de si mesmo, à frente de si mesmo, antecipando-se a partir de seu “aí” (da), segundo sua estrutura ontológica de ser-lançado (Geworfenheit), que compõe seu caráter elementar híbrido de projeto-lançado. Seu movimento de transcender o ente institui mundo, permitindo inversamente um retorno ao ente. Por seu turno, o ente não poderia manifestar-se se não conseguisse localizar-se dentro de algum mundo. Manifestar-se é fazer parte de um mundo.

Lembrando sempre que o mundo, em um contexto de reflexão existencial, importa como mundo que é primário a nós, entende-se melhor de que maneira o homem é o ente que faz transparecer ou é ponto de manifestação de mundo, onde manifestação não quer dizer, por si só, conhecimento, no sentido estrito e rigoroso da palavra. O mundo primário é constituído pelas manualidades (Zuhandene), pelos utensílios, é o mundo dos entes de uso, dos instrumentos. Estes têm o seu “ser-para”, como vimos, sempre previamente decidido por algum contexto, onde eles se inserem e que delineia, por conseguinte, sua significanda. A rede de significandas arranja ou faz com que o mundo seja tal como ele é: assim, este mundo.

Em textos posteriores em alguns anos a Ser e Tempo   e à preleção sobre Fenomenologia (por exemplo, O que é Metafísica? [GA9  ] e Da Essência do Fundamento [GA9  ]), o presente questionamento apresenta algumas variações de formulação. O mundo passa a ser enfatizado como lugar onde acontece [16] o desdobramento do ser. Nessa medida, mundo é a abertura do ser, e o ser, como essa abertura originária, é a condição primordial de aparição de todo ente. Diversamente de Hegel  , que em sua ontológica dedica-se a pensar primeiro um começo que é um máximo de abstração, o puro ser, isto é, o ser sem o ente, Heidegger vislumbra um “destino” do ser, que é o de ser sempre dissimulado no ente e ocultado por este. Dessa forma, pensar o esquecimento do ser é pensar essa dissimulação no ente, e não mais ocupar-se no pensamento com um acesso ao puro ser. O ponto de partida, agora, é aquela pré-compreensão de ser, que é por excelência pré-reflexiva, pré-conceitual e nesses termos também pré-ontológica. Ora, dizer que o Dasein tem uma pré-compreensão de ser, é dizer que ele possui um poder originário de diferenciar, uma capacidade de ultrapassar o ente em direção a seu ser, e o melhor nome para esse poder é ainda transcendência. É assim que o Dasein é o “aí” do ser, isto é, o lugar da revelação do ser. A transcendência é tanto via de acesso (ao ser), quanto condição de revelação. O Dasein constitui uma circularidade: ele pode ir ao ser porque já é sempre o caminho ou o medium do ser vir. Cada vez mais o homem vem a ser concebido como destinatário de uma convocação que lhe é endereçada pelo ser. Nesse registro posterior, a transcendência dá lugar à linguagem que fala da “clareira do ser” — que é o espaço de recepção de uma luz que vem de outro lugar, que ela pode apenas acolher, mas não gerar, criar. O [17] homem deixa de ser descrito em termos de poder, para ser referido como recebedor de uma doação por parte do ser.

O Dasein é o seu mundo e é assim que ele se produz a si mesmo. Mundo não é algo exterior ao Dasein. Este, cuja determinação fundamental é ser-no-mundo, é o seu “exterior”. A discussão ora encaminhada não pode, todavia, perder de vista aquela caracterização, inicial em Ser e Tempo  , do Dasein como “sendo sempre meu”. O Dasein não é uma espécie, um conceito antropológico, nem sociológico, nem um exemplar ou caso de um gênero, mas algo rigorosamente singular. Antes, porém, de tratar da relação da ipseidade do Dasein com a autenticidade, faz-se necessário explorar um pouco esse aspecto essencial, a singularidade. Do ponto de vista de seu ser-no-mundo, mais precisamente da identificação de quem ele é, o Dasein exibe dois modos de ser: autêntico e inautêntico, ou com maior apuro terminológico, próprio ou impróprio — uma distinção, aliás, que não pretende estabelecer qualquer hierarquia moral entre ambos, conforme é ressaltado em Ser e Tempo   (p. 43). Seu caráter não-excludente é sublinhado também na preleção: o termo “existência imprópria” não designa nenhuma “aparência de existência”, uma não-existência ou uma que não deveria ser; ao contrário, “a impropriedade (Uneigentlkhkeit) pertence à essência do Dasein factual. Propriedade [i.e., ser de modo próprio, L.B.] é apenas uma modificação e não uma supressão total de impropriedade” (GA, 24, p. 243 — grifos meus, L.B.). Devido à facticidade, à [18] condição de já sempre estar lançado, o mundo de cada um é primariamente o mundo “dos outros”. Por isso o primeiro modo de comportar-se do homem é o de livrar-se de toda diferença ente ele e os outros. O Dasein, antes de tudo inautêntico, coloca seu poder-ser nas mãos destes.


Ver online : Luiz Bicca


[BICCA, Luiz. O Mesmo e os Outros. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999]