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Lima Vaz (1991:133-134) – Nietzsche

segunda-feira 14 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

A presença de Nietzsche  , como a de Marx  , é uma presença difusa, mas poderosamente determinante em vários campos da cultura contemporânea. No que diz respeito à filosofia, sua obra se apresenta sobretudo como crítica da cultura e como proposição de uma nova ideia do homem. Nietzsche   retoma, dando-lhes novo sentido, as questões de Kant   que convergem para a interrogação “o que é o homem?” Essa interrogação, para Nietzsche  , formula-se não no plano clássico da essência (Wesen) e sim na perspectiva do devir (Werden). Desse modo, a interrogação desdobra-se na sequência de três questões fundamentais: o que foi o homem; ou seja, sua aparição emergindo da natureza e da vida; o que o homem não é, atingido pela doença da cultura e pelo ressentimento ou vingança contra a vida e o devir; finalmente, o que o homem pode e deve ser, onde aparece o tema do homem como transição para o super-homem.

A visão nietzschiana do homem é articulada em dois planos epistemológicos: o plano metafísico e o plano da crítica da cultura. No plano metafísico, os temas dominantes são o da vontade em vista do poder (Wille zur Macht) e o do retomo eterno do mesmo (ewige Wiederkehr des Gleichen). A Wille zur Macht, cujo conceito apresenta matizes diversos e corresponde, segundo Heidegger, ao conceito de ser da metafísica moderna, tematiza o ser como valor ou, mais exatamente, representa o ser como fonte criadora da tábua dos valores, e de sua hierarquização. Sendo bipolar a escala de valores, pois a cada valor corresponde um contravalor, é necessário admitir igualmente a bipolaridade estrutural da Wille zur Macht. Sua forma suprema no sentido positivo é o retomo eterno do mesmo, que é o pensamento mais abissal e a mensagem última de Zaratustra. Ele é a afirmação do selo da eternidade impresso sobre o devir ou a aceitação jubilosa, o sim absoluto em face do devir. No nível da crítica da cultura, os temas dominantes do pensamento de Nietzsche   são o niilismo como diagnose da cultura ocidental, a genealogia da moral e dos contravalores que estão em oposição à vida, bem como o anúncio do super-homem.

A visão nietzschiana do homem define-se, portanto, seja em oposição ao zoon logon echon da tradição grega, seja ao homem imago Dei da tradição cristã. Em Nietzsche   se cumpre, por outro lado e de modo radical, a dissolução da imagem ocidental do homem cujos inícios remontam à Renascença. A dissolução nietzschiana atinge seja a posição do homem no cosmos, profundamente atingida pela descentração operada pelo sistema copernicano e pelo caráter aleatório da evolução da vida, seja sua estrutura interior com a rejeição do conceito de alma espiritual. Nietzsche   empreende, com efeito, uma crítica radical de toda a tradição dualista que, para ele, culmina no dualismo cartesiano, que faz da consciência o núcleo ontológico do homem. A consciência é, para Nietzsche  , apenas o instrumento de uma unidade superior que ele denomina “corpo” (Leib) e que constitui fatalidade do indivíduo.

É a partir do conceito englobante de corpo que Nietzsche   descreve a estrutura do indivíduo em seus diversos aspectos ou níveis e, partindo dessa estrutura, o movimento da vida individual e social que culmina no ato criador. É esse ato que define o sentido mais profundo do ser humano como possibilidade ou como ponte e transição para o super-homem. A doutrina antropológica de Nietzsche   é dominada por um radical imanentismo que se exprime no retomo eterno. Ela implica igualmente o chamado “perspectivismo” na teoria do conhecimento, trazendo consigo uma crítica radical do conceito clássico da verdade. Nietzsche   está na origem de uma importante corrente filosófica dos começos deste século, a chamada “filosofia da vida” (Lebensphilosophie), conquanto seus mais importantes representantes como G. Simmel e H. Bergson   não tenham seguido a trilha nietzschiana.


Ver online : Lima Vaz


LIMA VAZ, H. C. de. Antropologia filosófica. São Paulo: Loyola, 1991