Artemis é a deusa da aurora, da luz, do jogo. Seu sinal é a lira que aparece em forma do arco. Para o grego, arco e lira são o mesmo. A lira – agora o arco – lança a flecha. O arco traz a morte. Entretanto, as mortes arremessadas pelas suas flechas são as mortes “súbitas”, as mortes “suaves” e “amáveis”. A deusa da aurora, do jogo e da luz é também a deusa da morte, como se o que é claro, o que joga e o que surge fossem como a morte. Surgir, iluminar-se, jogar e tocar caracterizam, sobretudo, o vigor essencial da zoe (“vida”) e do zoon (“vivo”). Nossa palavra “vida” possui um significado tão sobrecarregado pelo pensamento cristão e moderno que não diz mais nada do que os gregos entendiam por zoe e zoon. Embora nossa palavra “vida” seja apenas uma tradução indeterminada e confusa da palavra grega zoe, ainda podemos pensar, nessa palavra, que “vida” é uma contraposição à morte. Como pode a deusa da iluminação, do surgimento e do jogo ser ao mesmo tempo a deusa da morte, ou seja, do sinistro, do crepúsculo, da rigidez? Vida e morte são contrários. Mas o contrário é o que mais intimamente se atrai para o que o contraria. Onde vigora o contrário dá-se a luta, a eris. Para Heráclito, que pensa a luta como a essência de ser, a deusa do arco e da lira, Artemis, é a mais próxima. Sua proximidade, no entanto, é a pura proximidade, ou seja, a distância. Em tudo isso, deve-se pensar a proximidade e a distância de maneira grega – e não “moderna” -, como uma ordem numérica, como um intervalo maior ou menor entre pontos do espaço. [GA5 32]
Ser é sempre ser de um ente. O todo dos entes pode tornar-se, em seus diversos setores, campo para se liberar e definir determinados âmbitos de objetos. Estas, por sua vez, como, por exemplo, história, natureza, espaço [Raum], VIDA [Leben], existência [Existenz], linguagem [Sprache], podem transformar-se em temas e objetos de investigação científica. A pesquisa científica realiza, de maneira ingênua e a grosso modo, um primeiro levantamento e uma primeira fixação dos âmbitos de objetos. A elaboração do âmbito em suas estruturas fundamentais já foi, de certo modo, efetuada pela experiência e interpretação pré-científicas do setor de ser que delimita a própria região [Gegend] de objetos. Os “conceitos fundamentais” assim produzidos constituem, de início, o fio condutor da primeira abertura [Erschliessen] concreta do âmbito. Se o peso [Last] de uma pesquisa sempre se coloca nessa positividade, o seu progresso propriamente dito não consiste tanto em acumular resultados e conservá-los em “manuais”, mas em questionar a constituição fundamental de cada âmbito que, na maioria das vezes, surge reativamente do conhecimento crescente das coisas. STMSCC: §3
A ciência aparentemente mais rigorosa e de estrutura mais sólida, a matemática, encontra-se numa “crise de fundamentos”. A disputa entre formalismo e intuicionismo desenvolve-se visando a conquistar e assegurar um modo de acesso mais originário [ursprünglich] ao que deve constituir o objeto dessa ciência. A teoria da relatividade na física nasceu da tendência de apresentar o nexo [Zusammenhang] próprio [eigentlich] da natureza tal como ela se constitui “em si” mesma. Como teoria das condições de acesso à própria natureza, a teoria da relatividade procura preservar a imutabilidade das leis [Gesetze] do movimento através de uma determinação de toda a relatividade, colocando-se com isso diante da questão [Fragen] da estrutura da região [Gegend] de objetos por ela pressuposta, isto é, do problema da matéria. Na biologia, surge a tendência de questionar o organismo e a VIDA [Leben] independentemente das determinações do mecanicismo e vitalismo para, assim, definir, de maneira nova, o modo de ser [Seinsart] do vivo como tal [als solches]. Nas ciências históricas do espírito, acentuou-se o empenho pela própria realidade histórica através da tradição e de sua transmissão: desse modo, a história da literatura torna-se história dos problemas. A teologia procura uma interpretação mais originária do ser do homem [Mensch] para Deus, já prelineada [45] e restrita pelo sentido da própria fé. Pouco a pouco, a teologia começa a entender de novo a visão [Sicht] de Lutero, para quem [Wer] a sistematização dogmática repousa sobre um “fundamento” que, em sua origem, não advém de um questionamento da fé e cuja conceituação, mais do que insuficiente para a problemática teológica, a encobre e até mesmo deturpa. STMSCC: §3
O termo tem dois componentes: fenômeno [Phänomen] e logos; ambos remontam a étimos gregos. Exteriormente, o termo fenomenologia corresponde, no que respeita a sua formação, à teo-logia, bio-logia, socio-logia, termos traduzidos por ciência de Deus, da VIDA [Leben], da sociedade. Fenomenologia seria, portanto, a ciência dos fenômenos. Vamos expor uma concepção preliminar da fenomenologia de duas maneiras: primeiro, caracterizando o que designam os dois componentes do termo, a saber, “fenômeno [Phänomen]” e “logos” e, segundo, fixando o sentido da expressão, resultante de sua composição. A história da palavra, que apareceu segundo se presume na Escola de Wolff, não tem aqui importância. STMSCC: §7
Sem dúvida, para o propósito da analítica, essa exemplificação histórica é também desviante. Uma das primeiras tarefas da analítica será, pois, mostrar que o princípio de um eu [Ich] e sujeito [Subjekt], dados como ponto de partida, deturpa, de modo fundamental, o fenômeno [Phänomen] da presença [Dasein]. Toda ideia de “sujeito [Subjekt]” – enquanto permanecer não esclarecida preliminarmente mediante uma determinação ontológica de seu fundamento – reforça, do ponto de vista ontológico, o ponto de partida do subjectum (hypokeimenon), por mais que, do ponto de vista ôntico [ontisch], se possa vivamente polemizar contra a “substância da alma” ou a “coisificação da consciência”. Para que se possa perguntar o que deve ser entendido positivamente ao se falar de um ser não coisificado do sujeito [Subjekt], da alma, da consciência, do espírito, da pessoa, é preciso já se ter verificado a proveniência ontológica da coisificação. Todos estes termos designam regiões de fenômenos, bem determinadas e passíveis de “ulterior formação”, embora o seu uso ocorra sempre junto a uma curiosa indiferença [Gleichgültigkeit] frente à necessidade de se questionar o ser dos entes assim denominados. Não é, portanto, por capricho terminológico que evitamos o uso desses termos bem como das expressões “VIDA [Leben]” e “homem [Mensch]” para designar o ente que nós mesmos somos. STMSCC: §10
Por outro lado, na tendência corretamente compreendida de toda “filosofia da VIDA [Leben]” séria e científica – em que a palavra VIDA [Leben] diz algo como a botânica das plantas – subsiste implicitamente a tendência para uma compreensão do ser [Seinsverständnis] da presença [Dasein] [NH: não!]. O que chama atenção, e nisso está sua radical deficiência [NH: não apenas isso, mas a questão [Fragen] da verdade [Wahrheit] é totalmente e, em sua essência, insuficiente], é não se questionar ontologicamente a própria “VIDA [Leben]” como um modo de ser [Seinsart]. [90] STMSCC: §10
As investigações de W. Dilthey são animadas pela insistente questão [Fragen] da “VIDA [Leben]”. Ele procura compreender [Verstehen] as “vivências” [Erlebnis] dessa “VIDA [Leben]”, em seus nexos de estrutura e desenvolvimento, a partir da totalidade da própria VIDA [Leben]. O que a sua “psicologia enquanto ciência do espírito” possui de filosoficamente relevante não se explica por se orientar pelos elementos e átomos psíquicos e de não mais pretender costurar os pedaços da VIDA [Leben] psíquica, mas sim por visar à “totalidade da VIDA [Leben]” e a suas “figuras” de conjunto. A sua importância filosófica reside em estar, em tudo isso, sobre-tudo, a caminho da questão [Fragen] da “VIDA [Leben]”. Decerto, também aqui se revelam, da maneira mais nítida, os limites da sua problemática e da conceituação usada para exprimi-la. Junto com Dilthey e Bergson, participam dessas limitações todas as correntes do “personalismo” por eles determinadas, e todas as tendências para uma antropologia filosófica. Mesmo a interpretação fenomenológica da personalidade, em princípio mais radical e lúcida, não alcança a dimensão da questão [Fragen] do ser da presença [Dasein]. Malgrado todas as diferenças no questionamento, na condução e orientação da concepção de mundo, as interpretações da personalidade elaboradas por Husserl e Scheler concordam e coincidem naquilo que ambos possuem de negativo. Tanto um quanto o outro já não colocam a questão [Fragen] sobre o ser da pessoa em si mesmo. Como exemplo, tomamos a interpretação de Scheler, não apenas por já se achar publicada , mas, sobretudo porque Scheler acentua explicitamente o ser da pessoa como tal [als solches], e busca determiná-lo mediante uma diferenciação entre o ser específico dos atos [91] face a tudo que é “psíquico”. Para Scheler, a pessoa nunca pode ser pensada como uma coisa ou uma substância. “A pessoa é, sobretudo, a unidade da vivência diretamente vivenciada com as vivências e não uma coisa somente pensada atrás e fora do que se vivência diretamente” . A pessoa não é um ser substancial, nos moldes de uma coisa. Além disso, o ser da pessoa não pode exaurir-se em ser um sujeito [Subjekt] de atos racionais, regidos por determinadas leis [Gesetze]. STMSCC: §10
em seu ser. E mesmo para uma tentativa ontológica que procedesse desta maneira, dever-se-ia pressupor uma ideia do ser da totalidade. O que, no entanto, constitui um obstáculo e desvia a questão [Fragen] fundamental do ser da presença [Dasein] é a orientação corrente pela antropologia cristã da Antiguidade. A insuficiência de fundamentos ontológicos desta antropologia escapou ao personalismo e à filosofia da VIDA [Lebensphilosophie]. A antropologia tradicional traz consigo: STMSCC: §10
A mesma coisa vale para a “psicologia”, cujas tendências antropológicas não se podem mais desconsiderar hoje em dia. A falta de fundamentos ontológicos, entretanto, não pode ser compensada inscrevendo-se a antropologia e a psicologia numa biologia geral. Na ordem de uma possível apreensão e interpretação, a biologia como “ciência da VIDA [Leben]” funda-se, embora não exclusivamente, na ontologia da presença [Dasein]. A VIDA [Leben] é um modo próprio [eigentlich] de ser, mas que, em sua essência, só se torna acessível na presença [Dasein]. A ontologia da VIDA [Leben] se exerce seguindo o caminho de uma interpretação privativa; ela determina o que deve ser, de modo que uma coisa possa ser apenas VIDA [Leben]. A VIDA [Leben] não é nem coisa simplesmente dada nem presença [Dasein]. A presença [Dasein], por sua vez, não poderá ser determinada ontologicamente, tomando-a como VIDA [Leben] – (indeterminada do ponto de vista ontológico) à qual ainda se acrescenta uma outra coisa. STMSCC: §10
Orientar a análise da presença [Dasein] pela “VIDA [Leben] dos povos primitivos” pode apresentar um significado [Bedeutung] metodológico positivo na medida em que, muitas vezes, os “fenômenos primitivos” são menos complexos e menos encobertos por uma interpretação própria, já muito abrangente, da respectiva presença [Dasein]. Com frequência, a presença [Dasein] primitiva fala [Rede] mais diretamente a partir de uma imersão originária nos próprios “fenômenos” (tomados em sentido pré-fenomenológico). A conceituação que, do nosso ponto [95] de vista, talvez possa parecer grosseira e acanhada, pode contribuir positivamente para uma elaboração genuína das estruturas ontológicas dos fenômenos. STMSCC: §11
Com a facticidade [Faktizität], o ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] da presença [Dasein] já se dispersou ou até mesmo se fragmentou em determinados modos de ser-em [In-sein]. [102] Pode-se exemplificar a multiplicidade desses modos de ser-em [In-sein] através da seguinte enumeração: ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de alguma coisa, aplicar alguma coisa, fazer desaparecer ou deixar perder-se alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar, discutir, determinar… Estes modos de ser-em [In-sein] possuem o modo de ser [Seinsart] da ocupação [Besorgen], que ainda será caracterizada mais profundamente. Modos de ocupação [Besorgen] são também os modos deficientes de omitir, descuidar, renunciar, descansar, todos os modos de “ainda apenas”, no tocante às possibilidades [Möglichkeit] da ocupação [Besorgen]. O termo “ocupação [Besorgen]” tem, de início, um significado [Bedeutung] pré-científico e pode designar: realizar alguma coisa, cumprir, “levar a cabo”. Mas a expressão ocupar-se de alguma coisa pode também significar “arranjar alguma coisa”. Ademais, usamos ainda a mesma expressão numa fórmula característica: preocupar-se com que uma empresa fracasse. “Preocupar-se” indica, neste caso, uma espécie de ter medo [fürchten]. Em oposição a estes significados pré-científicos e ônticos, a presente investigação usa a expressão “ocupar-se” para designar o ser de um possível ser-no-mundo [In-der-Welt-sein]. Esta escolha [Wahl] não foi feita porque a presença [Dasein] é, em primeiro lugar e em larga escala, “prática” e econômica, mas porque o ser da presença [Dasein] deve tornar-se visível em si mesmo como cura [Sorge]. Mais uma vez, deve-se tomar a expressão como um conceito ontológico de estrutura (cf. cap. 6 desta seção). Esta expressão nada tem a ver [Sehen] com as “penas”, “tristezas” ou “preocupações” da VIDA [Leben] as quais, do ponto de vista ôntico [ontisch], podem ser encontradas em qualquer presença [Dasein]. Tudo isso, assim como a “jovialidade” e “despreocupação” só são onticamente possíveis porque, entendida ontologicamente, a presença [Dasein] é cura [Sorge]. Como ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] pertence ontologicamente à presença [Dasein], o seu ser para com o mundo é, essencialmente, ocupação [Besorgen] [NH: aqui ser-homem e presença [Dasein] se equivalem]. STMSCC: §12
A formulação, hoje muito em voga, de que o homem [Mensch] “tem seu mundo circundante [Umwelt]” nada diz do ponto de vista ontológico, enquanto esse “ter” permanecer indeterminado. É que, em sua possibilidade [Möglichkeit], “ter” se funda na constituição existencial do ser-em [In-sein]. Sendo essencialmente desse modo, a presença [Dasein] pode, então, descobrir [entdecken] explicitamente o ente que lhe vem ao encontro [begegnen] no mundo circundante [Umwelt], saber algo a seu respeito, dele dispor, ter “mundo”. A formulação “ter um mundo circundante [Umwelt]”, tão trivial do ponto de vista ôntico [ontisch], é, do ponto de vista ontológico, um problema. Para resolvê-lo é imprescindível determinar, primeiro, de maneira suficiente e ontológica, o ser da presença [Dasein]. Porque a biologia se vale dessa constituição de ser [Seinsverfassung] – sobretudo depois de K.E. von Baer – não se deve deduzir um “biologismo” do uso filosófico dessa constituição. É que também a biologia, enquanto ciência positiva, não pode encontrar e determinar essa estrutura. Ao contrário, deve pressupô-la e dela a fazer [NH: será que aqui se trata mesmo de “mundo”? Apenas meio ambiente! Essa “ambiência” corresponde ao “ter”. Presença jamais “tem” mundo] um uso constante. Em si mesma essa estrutura só poderá ser filosoficamente explicitada como um a priori do objeto temático da biologia, depois de ter sido compreendida como estrutura da presença [Dasein]. Apenas orientando-se pela estrutura ontológica assim concebida é que se poderá definir a priori, através de uma privação, a constituição de ser [Seinsverfassung] da “VIDA [Leben]”. Tanto do ponto de vista ôntico [ontisch] como ontológico, o ser-no-mundo [In-der-Welt-sein], enquanto ocupação [Besorgen] tem a primazia. Na analítica da presença [Dasein], essa estrutura recebe uma interpretação fundamental. STMSCC: §12
Regiões não se formam a partir de coisas simplesmente dadas em conjunto, mas estão sempre à mão nos vários lugares específicos. Os próprios lugares dependem dos entes que se acham à mão na circunvisão [Umsicht] da ocupação [Besorgen] ou que, como tais, são encontrados. O que constantemente está à mão não tem um lugar, pois é previamente levado em conta pelo ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] da circunvisão [Umsicht]. O onde de sua manualidade [Zuhandenheit] é levado em conta na ocupação [Besorgen] e se orienta [156] para os demais entes à mão. Assim, por exemplo, o sol cuja luz [Licht] e calor são usados cotidianamente possui seus lugares marcados e descobertos pela circunvisão [Umsicht], a partir da possibilidade [Möglichkeit] de emprego variável daquilo que ele propicia: o nascente, o meio-dia, o poente, a meia-noite. Os lugares deste manual [zuhanden] em contínua mudança, e não obstante uniforme, tornam-se “indicações” privilegiadas de suas regiões. Esses pontos cardeais, que ainda não precisam ter um sentido geográfico, proporcionam previamente o para onde [Wohin] de todo delineamento ulterior de qualquer região [Gegend] que possa vir a ser ocupada por lugares. A casa tem o seu lado do sol e o seu lado da ventilação; por ele se orienta a distribuição dos “cômodos” e nestes, novamente, a “instalação” de acordo com o seu caráter instrumental. Igrejas e sepulturas, por exemplo, são situadas segundo o nascente e o poente, regiões da VIDA [Leben] e da morte [Tod], a partir das quais a própria presença [Dasein] se determina no tocante às suas possibilidades [Möglichkeit] mais próprias de ser-no-mundo [In-der-Welt-sein]. A ocupação [Besorgen] da presença [Dasein] que, sendo, está em jogo seu próprio [eigentlich] ser, descobre previamente as regiões em que, cada vez, está em jogo uma conjuntura [Bewandtnis] decisiva. A descoberta [entdecken] prévia das regiões também se determina pela totalidade conjuntural [Bewandtnisganzheit] em que se libera o manual [zuhanden] enquanto aquilo que vem ao encontro [begegnen]. STMSCC: §22
Mas assim como o revelar-se e o fechar-se fundam-se nos modos de ser respectivos da convivência [Miteinandersein], de tal maneira que ele nada mais é do que isso mesmo, também a abertura [Erschliessen] explicitada na preocupação [Fürsorge] nasce meramente do ser-com [Mitsein] primordial. Essa abertura [Erschliessen] temática e não teórica ou psicológica do outro evidencia-se facilmente para a problemática teórica do compreender [Verstehen] da “VIDA [Leben] psíquica do outro” enquanto o fenômeno [Phänomen] que é primeiro visualizado. O que, fenomenalmente, apresenta “numa primeira aproximação” um modo de convivência [Miteinandersein] compreensiva torna-se, ao mesmo tempo, aquilo que, assim considerado, possibilita e constitui, “em princípio” e originariamente, o ser para os outros. Esse fenômeno [Phänomen] que, de maneira não muito feliz, denomina-se ” empatia [Einfühlung]” deve, por assim dizer, construir ontologicamente uma ponte entre o próprio [eigentlich] sujeito [Subjekt] isolado e o outro sujeito [Subjekt], de início, inteiramente fechado. STMSCC: §26
As tentativas de se apreender a “essência da linguagem [Sprache]” sempre se orientaram por um desses momentos singulares, compreendendo a linguagem [Sprache] com base na ideia de “expressão”, “forma simbólica”, comunicação [Mitteilung] no sentido de “enunciado [Aussage]”, “anúncio de vivências” ou “configurações” da VIDA [Leben]. Uma definição da linguagem [Sprache] em nada ganharia se pretendesse reunir sincreticamente esses diversos pedaços de determinação. Decisivo é elaborar previamente a totalidade ontológico-existencial da estrutura da fala [Rede] com base numa analítica da presença [Dasein]. STMSCC: §34
A falação [Gerede] também rege os caminhos da curiosidade [Neugier]. É ela que diz o que se deve ter lido e visto. Esse estar em toda parte e em parte alguma da curiosidade [Neugier] entrega-se à responsabilidade [Überantwortung] da falação [Gerede]. Esses dois modos de ser cotidianos da fala [Rede] e da visão [Sicht] não se acham simplesmente um ao lado do outro em sua tendência de desenraizamento, mas um modo de ser [Seinsart] arrasta o outro consigo. A curiosidade [Neugier], que nada perde, e a falação [Gerede], que tudo compreende, dão à presença [Dasein], que assim existe, a garantia de “uma VIDA [Leben] cheia de VIDA [Leben]”, pretensamente autêntica. Com esta pretensão, porém, mostra-se um terceiro fenômeno [Phänomen] característico da abertura [Erschliessen] da presença [Dasein] cotidiana [alltäglich]. STMSCC: §36
Tornando-se desse modo tentação, a interpretação pública mantém a presença [Dasein] presa em sua decadência [Verfallen]. A falação [Gerede] e a ambiguidade [Zweideutigkeit], o já ter visto tudo e já ter compreendido tudo, perfazem a pretensão de que a abertura [Erschliessen] da presença [Dasein], assim disponível e dominante, seria capaz de lhe assegurar a certeza [Gewissheit], a autenticidade e a plenitude de todas as possibilidades [Möglichkeit] de seu ser. A certeza [Gewissheit] de si mesmo e a decisão [Entschlossenheit] do impessoal [das Man] espalham uma suficiência crescente no tocante à compreensão própria e disposta. A pretensão do impessoal [das Man], [242] de nutrir e dirigir toda “VIDA [Leben]” autêntica, tranquiliza a presença [Dasein], assegurando que tudo “está em ordem” e que todas as portas estão abertas. O ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] da decadência [Verfallen] é, em si mesmo, tanto tentador como tranquilizante. STMSCC: §38
Os fenômenos aqui demonstrados de tentação, tranquilidade, alienação e aprisionamento (prisão) caracterizam o modo de ser [Seinsart] específico da decadência [Verfallen]. Designamos essa “mobilidade” da presença [Dasein] em seu próprio [eigentlich] ser de precipitação. A presença [Dasein] se precipita de si mesma para si mesma na falta de solidez e na nulidade de uma cotidianidade [Alltäglichkeit] imprópria. [243] Mediante a interpretação pública, essa precipitação fica velada para a presença [Dasein], sendo interpretada como “ascensão” e “VIDA [Leben] concreta”. STMSCC: §38
A perfectio do homem [Mensch], o ser para aquilo que, em sua liberdade [Freiheit], pode ser para suas possibilidades [Möglichkeit] mais próprias (para o projeto [Entwurf]), é um “desempenho” da “cura [Sorge]”. De modo igualmente originário [ursprünglich], ela determina, porém, o modo fundamental desse ente, segundo o qual ele está entregue ao mundo da ocupação [Besorgen] (estar-lançado [Geworfenheit]). O “duplo sentido” de “cura [Sorge]” significa uma constituição fundamental em sua dupla estrutura essencial de projeto [Entwurf] lançado. Frente a interpretação ôntica [ontisch], a interpretação ontológico-existencial não é uma espécie de generalização ôntico-teórica. Isso ria simplesmente: do ponto de vista ético, todos os comportamentos e atitudes do homem [Mensch] são “dotados de um acurar” e guiados por uma “dedicação”. A “generalização” e de ordem ontológica e a priori. Ela não significa propriedades ônticas que constantemente aparecem, e sim a constituição de ser [Seinsverfassung] sempre subjacente. Só isso torna ontologicamente possível que esse ente possa ser onticamente referido como cura [Sorge]. A condição existencial de possibilidade [Möglichkeit] de “uma preocupação [Fürsorge] com a VIDA [Leben]” e “dedicação” deve ser concebida como cura [Sorge] num sentido originário [ursprünglich], ou seja, ontológico. STMSCC: §42
A “universalidade” transcendental do fenômeno [Phänomen] da cura [Sorge] e de todos os existenciais fundamentais tem, por outro lado, a envergadura que subministra preliminarmente o solo em que toda interpretação da presença [Dasein] se move, baseada numa concepção ôntica [ontisch] de mundo, quer se compreenda a presença [Dasein] como “preocupação [Fürsorge] com a VIDA [Leben]” e necessidade ou ao contrário. STMSCC: §42
Com efeito, sem que se explicite a base ontológico-existencial, já se pode caracterizar fenomenalmente, embora de modo limitado, a realidade do real. Foi o que fez Dilthey no tratado supracitado. Aí se faz a experiência do real no impulso e na vontade [Wille]. Realidade é resistência ou, mais precisamente, o conjunto das resistências. A elaboração analítica do fenômeno [Phänomen] de resistência constitui o [278] ponto positivo do referido tratado e a melhor confirmação concreta da ideia de uma “psicologia descritiva e classificatória”. Contudo, devido à problematização epistemológica da realidade, o efeito adequado da análise do fenômeno [Phänomen] de resistência não logrou êxito. O “princípio da fenomenalidade” impediu Dilthey de chegar a uma interpretação ontológica do ser da consciência (Bewusstsein). “A vontade [Wille] e seus freios emergem em meio à sua consciência” (Bewusstsein). O modo de ser [Seinsart] dessa “emergência”, o sentido ontológico de “em meio a”, a remissão [Bezug] ontológica da consciência (Bewusstsein) ao próprio [eigentlich] real, tudo isso necessita de uma determinação ontológica. A sua não-elaboração explica-se por Dilthey ter deixado a “VIDA [Leben]”, para “atrás” da qual não se pode mais recuar, numa indiferença [Gleichgültigkeit] ontológica. Interpretar ontologicamente a presença [Dasein], porém, não significa uma recondução ôntica [ontisch] a um outro ente. As refutações feitas a Dilthey no plano epistemológico não podem impedir que o que há de positivo em sua análise, justamente o que ficou incompreendido nessas objeções, venha a tornar-se frutífero. STMSCC: §43
O mesmo que foi dito acerca da indeterminação [Unbestimmtheit] ontológica dos fundamentos em Dilthey vale fundamentalmente para essa teoria. A análise ontológica dos fundamentos da “VIDA [Leben]” não pode ser acrescentada posteriormente como uma infra-estrutura. É ela que sustenta, [279] tenta e condiciona a análise da realidade, bem como toda explicação do conjunto das resistências e de suas pressuposições fenomenais. Resistência vem ao encontro [begegnen] como não deixar passar…, como impedimento da vontade [Wille] de passar… com isso, no entanto, abre-se algo pelo que impulso e vontade [Wille] se empenham. A indeterminação [Unbestimmtheit] ôntica [ontisch] desse pelo que se empenham não pode ser ontologicamente desconsiderada e compreendida como um nada. O próprio [eigentlich] empenho … que se depara com resistência, e é o único que pode se deparar, já se acha junto a uma totalidade conjuntural [Bewandtnisganzheit]. A sua descoberta [entdecken], porém, funda-se na abertura [Erschliessen] do todo referencial da significância [Bedeutsamkeit]. Do ponto de vista ontológico, a experiência de resistência, ou seja, a descoberta [entdecken] daquilo que resiste a um esforço, só é possível com base na abertura [Erschliessen] de mundo. O conjunto das resistências caracteriza o ser dos entes intramundanos [innerweltlich]. As experiências de resistência apenas determinam faticamente o alcance e a direção da descoberta [entdecken] dos entes intramundanos [innerweltlich] que vêm ao encontro [begegnen]. A abertura [Erschliessen] de mundo não é introduzida pela sua soma, mas, ao contrário, pressuposta. Em sua possibilidade [Möglichkeit] ontológica, o “ser-contra” e o “ser oposto” são sustentados pelo ser-no-mundo [In-der-Welt-sein] que já se abriu. STMSCC: §43
A dependência [Angewiesenheit] caracterizada, não dos entes, mas do ser em relação [Beziehung] à compreensão de ser [Seinsverständnis], isto é, a dependência [Angewiesenheit] da realidade e não do real em relação [Beziehung] à cura [Sorge], assegura que a analítica da presença [Dasein] possa prosseguir sem resvalar numa interpretação não crítica que, guiada pela ideia de realidade, sempre de novo tenta se impor. Somente a orientação pela existencialidade [Existenzialität], interpretada ontologicamente de modo positivo, pode garantir que, no decorrer da análise da “consciência” (Bewusstsein) e da “VIDA [Leben]”, não se tome por base nenhum sentido indiferente de realidade. STMSCC: §43
A presença [Dasein] dos outros, com sua totalidade alcançada na morte [Tod], também constitui um não mais ser presença [Dasein], no sentido de [311] não-mais-ser-no-mundo. Morrer não significa sair do mundo, perder o ser-no-mundo [In-der-Welt-sein]? Levando-se ao extremo, o não-mais-ser-no-mundo do morto ainda é também um ser, na acepção do ser simplesmente dado [Vorhandenheit] de uma coisa corpórea. Na morte [Tod] dos outros, pode-se fazer a experiência do curioso fenômeno [Phänomen] ontológico que se pode determinar como a alteração sofrida por um ente ao passar do modo de ser [Seinsart] da presença [Dasein] (da VIDA [Leben]) para o modo de não mais ser presença [Dasein]. O fim de um ente, enquanto presença [Dasein], é o seu princípio como mero ser simplesmente dado [Vorhandenheit]. STMSCC: §47
Interpretar o movimento de passagem [Zugang] da presença [Dasein] para o ser simplesmente dado [Vorhandenheit] perde a base fenomenal [phänomenal] na medida em que o ente remanescente não é uma mera coisa corpórea. Do ponto de vista teórico, mesmo o cadáver dado é ainda objeto possível da anatomia patológica, cuja tendência de compreensão se orienta, não obstante, pela ideia de VIDA [Leben]. O ser ainda simplesmente dado é “mais” do que uma coisa material, destituída de VIDA [Leben]. Nele encontra- se algo não vivo, que perdeu a VIDA [Leben]. STMSCC: §47
Mais adiante, quando da caracterização da passagem [Zugang] da presença [Dasein] para o não mais ser presença [Dasein], enquanto não-mais-ser-no-mundo, mostrar-se-á que, quando a presença [Dasein] sai do mundo, no sentido de morrer [sterben], isso não pode ser confundido com o sair-do-mundo na acepção de simplesmente viver. Apreendemos terminologicamente o findar do ser vivo como finar . A diferença só pode tornar-se visível mediante uma delimitação do findar, dotado do caráter de presença [Dasein], frente ao fim de uma VIDA [Leben]. Na verdade [Wahrheit], também se pode compreender [Verstehen] o morrer [sterben] de modo físico-biológico. O conceito médico de “exitus” não se identifica com o conceito de finar. STMSCC: §47
No sentido mais amplo, a morte [Tod] é um fenômeno [Phänomen] da VIDA [Leben]. Deve-se entender VIDA [Leben] [NH: quando se entende VIDA [Leben] humana. Caso contrário não – “mundo”] como uma espécie de ser ao qual pertence um ser-no-mundo [In-der-Welt-sein]. Do ponto de vista ontológico, esse modo de ser [Seinsart] pode fixar-se à presença [Dasein] apenas numa orientação privativa. A presença [Dasein] também pode ser considerada como mera VIDA [Leben]. Para o questionamento bio-fisiológico, a presença [Dasein] desliza para o âmbito ontológico, que conhecemos como mundo animal e vegetal. Nesse campo, pode-se alcançar, mediante uma constatação ôntica [ontisch], dados e estatísticas acerca da duração [Dauer] da VIDA [Leben] das plantas, dos animais e dos homens. Podemos reconhecer nexos entre duração [Dauer] da VIDA [Leben], multiplicação e crescimento. Podemos pesquisar as “espécies” de morte [Tod], as causas, “instalações e meios” de seu surgimento. [321] STMSCC: §49
Essa pesquisa ôntico-biológica da morte [Tod] tem por base uma problemática ontológica. Permanece em questão [Fragen] como a essência da morte [Tod] se determina a partir da essência ontológica da VIDA [Leben]. De certo modo, a investigação ôntica [ontisch] da morte [Tod] sempre já se decidiu sobre essa questão [Fragen]. Nela atuam conceitos sobre a VIDA [Leben] e a morte [Tod], mais ou menos esclarecidos. Estes necessitam de um prelineamento através da ontologia da presença [Dasein]. No âmbito da ontologia da presença [Dasein], que ordena previamente uma ontologia da VIDA [Leben], a análise existencial da morte [Tod] subordina-se a uma caracterização da constituição fundamental da presença [Dasein]. Chamamos de finar o findar do ser vivo. A presença [Dasein] também “possui” uma morte [Tod] fisiológica, própria da VIDA [Leben]. Embora esta não possa ser isolada onticamente, determinando-se pelo seu modo originário [ursprünglich] de ser, a presença [Dasein] também pode findar sem propriamente morrer [sterben] e, por outro lado, enquanto presença [Dasein], não pode simplesmente finar. Chamamos esse fenômeno [Phänomen] intermediário de deixar de viver [ableben]. Morrer, por sua vez, exprime o modo de ser [Seinsart] em que a presença [Dasein] é para a sua morte [Tod]. Assim, pode-se dizer: a presença [Dasein] nunca fina. A presença [Dasein] só pode deixar de viver [ableben] na medida em que morre. A investigação médico-biológica do deixar de viver [ableben] logra resultados que, do ponto de vista ontológico, podem também ser relevantes, desde que se tenha assegurado a orientação fundamental para uma interpretação existencial da morte [Tod]. Ou será que, do ponto de vista médico, até a doença e a morte [Tod] devem ser concebidas primariamente como fenômenos existenciais? STMSCC: §49
A interpretação existencial da morte [Tod] precede toda biologia ou ontologia da VIDA [Leben]. É ela que fundamenta qualquer investigação histórico-biográfica e psico-etnológica da morte [Tod]. Uma “tipologia” do “morrer [sterben]”, entendida como caracterização dos estados e dos modos em que se “vivência” esse deixar de viver [ableben], já pressupõe o conceito de morte [Tod]. Ademais, uma psicologia do “morrer [sterben]” acaba fornecendo mais soluções sobre a “VIDA [Leben]” “dos que morrem” do que propriamente sobre o morrer [sterben]. Isso apenas reflete que a presença [Dasein] não morre simplesmente ou até propriamente numa vivência do fato de deixar de viver [ableben]. De igual modo, as apreensões acerca da morte [Tod] junto aos primitivos e de seus comportamentos diante dela na magia e no culto esclarecem, primeiramente, a compreensão da presença [Dasein], cuja interpretação já reclama uma analítica existencial e um conceito correspondente da morte [Tod]. STMSCC: §49
A exposição do ser-para-a-morte [Sein zum Tode] mediano na VIDA [Leben] cotidiana [alltäglich] orienta-se pelas estruturas da cotidianidade [Alltäglichkeit] já explicitadas. No ser-para-a-morte [Sein zum Tode], a presença [Dasein] relaciona-se com ela mesma enquanto um poder-ser [Seinkönnen] privilegiado. Entretanto, o próprio [eigentlich] da cotidianidade [Alltäglichkeit] é o impessoal [das Man], constituído na interpretação pública expressa na falação [Gerede]. Este deve, portanto, revelar de que modo a presença [Dasein] cotidiana [alltäglich] interpreta para si o seu ser-para-a-morte [Sein zum Tode]. O fundamento da interpretação sempre molda uma compreensão que, por sua vez, também é sempre disposta, ou seja, afinada e sintonizada no humor [Stimmung]. Impõe-se, assim, a pergunta: Como a compreensão, que se acha disposta na falação [Gerede] do impessoal [das Man], abriu o ser-para-a-morte [Sein zum Tode]? Como o impessoal [das Man] se relaciona na compreensão com essa possibilidade [Möglichkeit] mais própria, irremissível e insuperável da presença [Dasein]? Que disposição [Befindlichkeit] o estar entregue à responsabilidade [Überantwortung] da morte [Tod] abre para o impessoal [das Man] e de que modo? STMSCC: §51
O impessoalmente si mesmo é interpelado para o si-mesmo [Selbst]. Esse, contudo, não é o si-mesmo [Selbst] que se pode tornar “objeto” de avaliação, nem o si-mesmo [Selbst] que se empenha com curiosidade [Neugier] e sem descanso no exame de sua “VIDA [Leben] interior” e nem tampouco o si-mesmo [Selbst] de uma cupidez “analítica” de olhar os estados da alma e suas profundezas. A interpelação [Anruf] do si-mesmo [Selbst] no impessoalmente si mesmo não o leva para um interior a fim de se trancar para o “mundo exterior”. O apelo [Ruf] passa por cima de tudo isso e desfaz tudo isso para interpelar [anrufen] [351] unicamente o si-mesmo [Selbst] que, por sua vez, não é senão no modo de ser-no-mundo [In-der-Welt-sein]. STMSCC: §56
Esses significados vulgares de ser e estar em dívida [Schuldigsein] enquanto “ter dívidas junto a…” e “ser aquele a quem [Wer] algo se deve…” podem misturar-se e determinar um comportamento que denominamos de “fazer-se culpado”, ou seja, sendo responsável por uma dívida [Schuld], ferir seu direito e por isso tornar-se passível de punição. A exigência [361] não satisfeita não precisa necessariamente referir-se a uma posse, pois pode dizer respeito à convivência [Miteinandersein] pública em geral. Este “fazer-se culpado” na violação de um direito pode também possuir o caráter de um “tornar-se culpado em relação [Beziehung] a outros”. Isso não ocorre por violação do direito como tal [als solches] mas por eu [Ich] ser aquele a quem [Wer] se deve que um outro esteja em perigo [Gefahr], desoriente-se ou até mesmo fracasse em sua VIDA [Leben]. Este tornar-se culpado é possível sem que se viole a lei “pública”. O conceito formal do ser e estar em dívida [Schuldigsein] no sentido de tornar-se culpado com relação [Beziehung] a outrem deixa-se formular do seguinte modo: ser-fundamento e causa da falta na presença [Dasein] de um outro, de tal maneira que esse próprio [eigentlich] ser-fundamento e causa determina-se como “faltoso” a partir de seu para quê [Wozu]. Esta falta está em não se satisfazer uma exigência do ser-com [Mitsein] os outros existente. STMSCC: §58
Mas será que a interpretação ontológica deve, na verdade [Wahrheit], concordar com a interpretação vulgar? Será que esta não é, em princípio, atingida por uma suspeita ontológica? Se, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes [zunächst und zumeist], a presença [Dasein] se compreende a partir das ocupações e interpreta todos os seus comportamentos como ocupação [Besorgen], então não haverá de interpretar justamente o modo de seu ser como decadência [Verfallen] e encobrimento, modo que, no apelo [Ruf], ela pretende recuperar da perdição nos afazeres do impessoal [das Man]? A cotidianidade [Alltäglichkeit] toma a presença [Dasein] como algo à mão de que se ocupa, ou seja, que pode ser gerenciado e calculado. A “VIDA [Leben]” é um “negócio”, independentemente se ela cobre ou não os seus custos. STMSCC: §59
O argumento do “círculo” do compreender [Verstehen] exprime um duplo desconhecimento: 1. Que o próprio [eigentlich] compreender [Verstehen] constitui um modo fundamental do ser da presença [Dasein]. 2. Que esse ente é constituído como cura [Sorge]. Negar o círculo, na tentativa de escondê-lo ou até de superá-lo, significa apenas consolidar, definitivamente, esse desconhecimento. Ao invés disso, deve-se concentrar o esforço em saltar, originária e integralmente, para dentro desse “círculo” a fim de assegurar, ao ponto de partida da análise da presença [Dasein], uma visão [Sicht] plena do ser em círculo da presença [Dasein]. Para a ontologia da presença [Dasein], “partir” de um eu [Ich], destituído de mundo, para torná-lo objeto e estabelecer uma relação [Beziehung] ontologicamente infundada com ele, não é [399] “pressupor” demais, mas de menos. Uma visão [Sicht] demasiado curta foi a que faz da “VIDA [Leben]” um problema e considera a morte [Tod] apenas ocasionalmente. Talha-se de forma dogmática e artificial o objeto temático quando, “numa primeira aproximação”, este é restrito a um “sujeito [Subjekt] teórico” para então, “de acordo com o lado prático”, complementá-lo, acrescentando-lhe uma “ética”. STMSCC: §63
Por fim, o que demonstra, da forma mais penetrante, o poder do esquecer [Vergessen] nos humores [Stimmung] cotidianos da ocupação [Besorgen] imediata é a morna ausência de humor [Stimmung] na indiferença [Gleichgültigkeit]. Pois esta não se prende nem força nada, abandona-se a tudo que cada dia lhe apresenta, aceitando, assim, de certo modo, tudo. Este ir levando a VIDA [Leben], que “deixa tudo ser” como é, funda-se num esquecer [Vergessen] que se abandona ao estar-lançado [Geworfenheit], possuindo o sentido ekstático de um vigor de ter sido [Gewesenheit], impróprio [uneigentlich]. Deve-se distinguir com precisão a indiferença [Gleichgültigkeit], que pode acompanhar a sucessão desenfreada de tarefas, da equanimidade [Gleichmut]. Este humor [Stimmung] surge da decisão [Entschlossenheit]. Esta se concentra no instante [Augenblick] das possíveis situações do poder-ser [Seinkönnen] todo, que se abre no antecipar para a morte [Tod]. STMSCC: §68
É manifesto, porém, que cotidianidade [Alltäglichkeit] se refere ao modo de existência [Existenz] em que a presença [Dasein] se mantém “todos os dias”. Entretanto, “todos os dias” não significa a soma dos “dias” conferidos à presença [Dasein] em seu “tempo de VIDA [Leben]”. Embora não se deva compreender [Verstehen] “todos os dias” no sentido do calendário, essa espécie de determinação temporal [zeitlich] também opera no significado [Bedeutung] de “cotidiano [alltäglich]”. Primariamente, porém, a expressão cotidianidade [Alltäglichkeit] indica um determinado como da existência [Existenz] que domina a presença [Dasein] em seu “tempo de VIDA [Leben]”. No decorrer das análises precedentes, com frequência nos [460] valemos da expressão “numa aproximação e na maior parte das vezes”. “Numa primeira aproximação” significa o modo em que a presença [Dasein] “se torna manifesta” na convivência [Miteinandersein] do público [Öffentlichkeit], mesmo que, existenciariamente, ela tenha “no fundo” superado a cotidianidade [Alltäglichkeit]. “Na maior parte das vezes” significa o modo em que a presença [Dasein] nem sempre, mas “via de regra”, se mostra para todo mundo. STMSCC: §71
Embora não tenhamos visto até agora nenhuma possibilidade [Möglichkeit] de um ponto de partida mais radical para a analítica existencial, levanta-se [463] uma dúvida sobre o sentido ontológico da cotidianidade [Alltäglichkeit] na discussão precedente: Será que, no que diz respeito ao seu ser-todo em sentido próprio [eigentlich], toda a presença [Dasein] foi de fato levada à posição prévia [Vorhabe] da analítica existencial? O questionamento referente à totalidade da presença [Dasein] pode até possuir uma precisão ontológica genuína. A própria questão [Fragen] pode, inclusive, ter encontrado a sua resposta no ser-para-o-fim [Sein zum Ende]. A morte [Tod] é, no entanto, apenas o “fim” da presença [Dasein] e, em sentido formal, apenas um dos fins que abrangem a totalidade da presença [Dasein]. O outro “fim” é o “começo”, o “nascimento”. Só o ente “entre” [zwischen] nascimento e morte [Tod] torna presente o todo que se procura. Desta forma, ficou “unilateral” a orientação dada até aqui à analítica, apesar de tender para o ser-todo existente e de explicar, genuinamente, o ser-para-a-morte [Sein zum Tode] próprio [eigentlich] e impróprio [uneigentlich]. A presença [Dasein] só se fez tema existindo, por assim dizer, “para frente”, deixando, com isso, “para trás” de si todo o ter sido. Não apenas se desconsiderou o ser para o começo mas, sobretudo, a ex-tensão da presença [Dasein] entre nascimento e morte [Tod]. Na análise do ser-todo, passou-se por cima do “nexo [Zusammenhang] da VIDA [Leben]” em que a presença [Dasein], constantemente e de algum modo, se mantém. STMSCC: §72
Haverá algo mais “simples” do que caracterizar o “nexo [Zusammenhang] da VIDA [Leben]” entre nascimento e morte [Tod]? Pois ele consta de uma sequência de vivências “no tempo”. Quando se analisa mais profundamente esta caracterização do nexo [Zusammenhang] em causa e, sobretudo, os seus preconceitos ontológicos, o resultado é curioso. Nesta sequência de vivências, só é “propriamente” “real” a vivência simplesmente dada “em cada agora”. As vivências passadas e futuras já não são mais ou ainda não são “reais”. A presença [Dasein] atravessa o espaço [Raum] de tempo que lhe é concedido entre os dois limites de tal maneira que, apenas sendo “real” cada agora, ela, por assim dizer, salta por cima da sequência [464] dos agora de seu “tempo”. É por isso que se diz que a presença [Dasein] é “temporal [zeitlich]”. Nessa constante troca de vivências, o si-mesmo [Selbst] mantém-se numa certa mesmidade [Selbigkeit]. São divergentes as opiniões quanto à determinação dessa permanência e de sua possível relação [Beziehung] com a troca das vivências. Fica indeterminado o ser deste nexo [Zusammenhang] de vivências em sua troca e permanência. Nessa caracterização do nexo [Zusammenhang] da VIDA [Leben], quer se o tenha por verdadeiro ou não, parte-se, no fundo, da suposição de algo simplesmente dado “no tempo”, embora, evidentemente, não seja “uma coisa”. STMSCC: §72
A presença [Dasein] não existe como soma das realidades momentâneas de vivências que vêm e desaparecem uma após a outra. Esse um após outro também não chega a preencher aos poucos uma moldura. Pois como seria possível dar-se simplesmente uma moldura, de vez que só é “real” a vivência “atual” e que estão faltando os limites da moldura, quais sejam, nascimento e morte [Tod], entendidos como o que passou e o que está em advento da realidade? No fundo, a concepção vulgar do “nexo [Zusammenhang] da VIDA [Leben]” também não pensa numa moldura que, estando “fora” [Aussen] da presença [Dasein], a abrangesse, mas procura, com razão, esta moldura na própria presença [Dasein]. Toda tentativa de se caracterizar ontologicamente o ser “entre” [zwischen] nascimento e morte [Tod], tomando como ponto de partida ontológico implícito a determinação desse ente como algo simplesmente dado “no tempo”, está fadada ao fracasso. STMSCC: §72
Através das fases de suas realidades momentâneas, a presença [Dasein] não preenche um trajeto e nem um trecho “da VIDA [Leben]” já simplesmente dado. Ao contrário, ela se estende a si mesma de tal maneira que seu próprio [eigentlich] ser já se constitui como ex-tensão. No ser da presença [Dasein], já subsiste um “entre” [zwischen] que remete a nascimento e morte [Tod]. De forma nenhuma, a presença [Dasein] só “é” real num ponto do tempo, de maneira que, além disso, estaria “cercada” pela não realidade de seu nascimento e de sua morte [Tod]. Compreendido existencialmente, o nascimento não é e nunca pode ser um passado, no sentido do que [465] não é mais simplesmente dado. Da mesma maneira, a morte [Tod] não tem o modo de ser [Seinsart] de algo que ainda simplesmente não se deu mas que está pendente e em advento. De fato, a presença [Dasein] só existe nascente e é nascente que ela já morre, no sentido de ser-para-a-morte [Sein zum Tode]. Estes dois “fins” e o seu “entre” [zwischen] são apenas na medida em que a presença [Dasein] existe faticamente, e apenas são na única maneira possível, isto é, com base no ser da presença [Dasein] enquanto cura [Sorge]. Na unidade do estar-lançado [Geworfenheit] e do ser-para-a-morte [Sein zum Tode], em sua fuga [Flucht] e antecipação, é que nascimento e morte [Tod] formam um “nexo [Zusammenhang]” dotado do caráter de presença [Dasein]. Enquanto cura [Sorge], a presença [Dasein] é o “entre” [zwischen]. STMSCC: §72
Mas é na temporalidade [Zeitlichkeit] que a totalidade da constituição da cura [Sorge] encontra o fundamento possível de sua unidade. No horizonte da constituição temporal [zeitlich] da presença [Dasein], deve-se tomar como ponto de partida o esclarecimento ontológico do “nexo [Zusammenhang] da VIDA [Leben]”, ou seja, da ex-tensão, movimentação e permanência específicas da presença [Dasein]. A movimentação da existência [Existenz] não é o movimento de algo simplesmente dado. Ela se determina pela ex-tensão da presença [Dasein]. Chamamos de acontecer da presença [Dasein] a movimentação específica deste estender-se na extensão. A questão [Fragen] sobre o “nexo [Zusammenhang]” da presença [Dasein] é o problema ontológico de seu acontecer. Liberar a estrutura do acontecer e suas condições existenciais e temporais de possibilidade [Möglichkeit] significa conquistar uma compreensão ontológica da historicidade [Geschichtlichkeit]. STMSCC: §72
Chamamos de historicidade [Geschichtlichkeit] própria da presença [Dasein] o que foi até aqui caracterizado como historicidade [Geschichtlichkeit], de acordo com o acontecer próprio [eigentlich] da decisão [Entschlossenheit] antecipadora. A partir dos fenômenos de transmissão e retomada [Wiederholung], enraizados no porvir [Zukunft], tornou-se claro por que o acontecer da história em sentido próprio [eigentlich] tem seu peso [Last] no vigor de ter sido [Gewesenheit]. Todavia permanece ainda mais enigmático o modo em que esse acontecer, entendido como destino [Schicksal], deve constituir todo o “nexo [Zusammenhang]” do nascimento até a morte [Tod] da presença [Dasein]. Que esclarecimento propicia o remeter à decisão [Entschlossenheit]? O decisivo não será sempre apenas uma “vivência” singular na sequência de todo o contexto da VIDA [Leben]? Será que o “nexo [Zusammenhang]” do acontecer em sentido próprio [eigentlich] consiste de uma sequência ininterrupta de decisões? Por que a questão [Fragen] sobre a constituição do “nexo [Zusammenhang] da VIDA [Leben]” até hoje não encontrou uma resposta satisfatória? Será que, na pressa de chegar a uma resposta, a investigação não deixou de examinar, preliminarmente, a legitimidade da questão [Fragen]? Do percurso seguido na analítica existencial ficou bastante claro que a ontologia da presença [Dasein] sempre cai vítima das seduções da compreensão vulgar de ser. Metodologicamente, esse perigo [Gefahr] só pode ser enfrentado procurando-se a origem da questão [Fragen] tão “evidente” da constituição do nexo [Zusammenhang] da presença [Dasein] e determinando-se o horizonte ontológico em que ela se move. STMSCC: §74
Se a historicidade [Geschichtlichkeit] pertence ao ser da presença [Dasein], então o existir impróprio [uneigentlich] também deve ser histórico. E se for a historicidade [Geschichtlichkeit] imprópria da presença [Dasein] que determina a direção de questionamento do “nexo [Zusammenhang] da VIDA [Leben]”, obstruindo o acesso à historicidade [Geschichtlichkeit] própria e a seu “nexo [Zusammenhang]” específico? Como quer que seja, deve-se expor plenamente o problema ontológico da história; nesse caso, então, não poderemos deixar de considerar a historicidade [Geschichtlichkeit] imprópria da presença [Dasein]. [479] STMSCC: §74
Com isso, demonstra-se a origem da questão [Fragen] sobre um “nexo [Zusammenhang]” da presença [Dasein], no sentido da unidade do encadeamento de vivências entre nascimento e morte [Tod]. A proveniência da questão [Fragen] também trai a sua inadequação para uma interpretação originariamente existencial da totalidade do acontecer da presença [Dasein]. Este horizonte “natural” [482] de questionamento predomina. E este predomínio explica por que justamente a historicidade [Geschichtlichkeit] própria da presença [Dasein], destino [Schicksal] e retomada [Wiederholung], parece não oferecer o solo fenomenal [phänomenal] para se colocar, como um problema ontologicamente fundamentado, aquilo que a questão [Fragen] do “nexo [Zusammenhang] da VIDA [Leben]”, no fundo, intenciona. STMSCC: §75
A possibilidade [Möglichkeit] de a historiografia em geral poder ser tanto uma “utilidade” como uma “desvantagem” “para a VIDA [Leben]” funda-se em que esta é, em sua raiz, histórica e, portanto, enquanto existindo faticamente, sempre já se decidiu por uma historicidade [Geschichtlichkeit] própria ou imprópria. Na Segunda Consideração Intempestiva (1874), Nietzsche reconheceu o essencial a respeito da “utilidade e desvantagem da historiografia para a VIDA [Leben]”, tendo-se pronunciado de maneira precisa e penetrante. Ele distingue três espécies de historiografia: a monumental, a antiquária e a crítica, sem, no entanto, demonstrar [Aufweisung], explicitamente, a necessidade dessa tríade e o fundamento de sua unidade. A tríade da historiografia está prelineada na historicidade [Geschichtlichkeit] da presença [Dasein]. É ela também que permite compreender [Verstehen] em que medida a historiografia própria deve ser a unidade concreta e fatual dessas três possibilidades [Möglichkeit]. A divisão feita por Nietzsche não é acidental. O início de sua “consideração [Rücksicht]” deixa entrever que ele compreendeu bem mais do que chegou a exprimir. STMSCC: §76
“Também” se esforçou por delimitar a fronteira entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, atribuindo à história dessas ciências e também à “psicologia” um papel privilegiado e inserindo tudo numa “filosofia da VIDA [Lebensphilosophie]”, de caráter relativista. Para uma consideração [Rücksicht] superficial, essa caracterização é “correta”. A ela, no entanto, se contrapõe a “substância”. Pois encobre mais do que desvela. STMSCC: §77
O trabalho de pesquisa de Dilthey pode ser dividido, esquematicamente, em três campos: estudos sobre a teoria das ciências do espírito e sua delimitação frente às ciências da natureza; pesquisas sobre a história das ciências do homem [Mensch], da sociedade e do estado; investigações sobre uma psicologia que deve expor “todo o fato homem [Mensch]”. Pesquisas sobre epistemologia, sobre a história da ciência e sobre a psicologia hermenêutica [Hermeneutik] perpassam e se misturam constantemente. Onde uma perspectiva de visão [Sicht] prepondera, as demais já constituem motivo e meios. O que se apresenta como dualidade, “tentativas” inseguras e acidentais, é a inquietação elementar com uma meta [Ziel]: trazer a “VIDA [Leben]” para uma compreensão filosófica e assegurar, para essa compreensão, um fundamento hermenêutico a partir da “VIDA [Leben] ela mesma”. Tudo está centrado na “psicologia”, que deve compreender [Verstehen] a “VIDA [Leben]” em seu nexo [Zusammenhang] de desenvolvimento e ação [Handeln] históricos como o modo em que o homem [Mensch] é, tomando-a ao mesmo tempo como objeto possível e como raiz das ciências do espírito. A hermenêutica [Hermeneutik] é a explicação que esse compreender [Verstehen] dá de si mesmo, e somente de forma derivada é que se apresenta como metodologia da historiografia. STMSCC: §77
“O autêntico filólogo tem um conceito de história como de um baú de antiguidades. Eles não chegam ao que não se pode apalpar – aonde só se chega através de uma transposição psíquica viva. No fundo, eles são cientistas da natureza, que se tornam ainda mais céticos quando lhes falta o experimento. Devemos afastar-nos inteiramente de todas essas tralhas como, por exemplo, de quantas vezes Platão esteve na Magna Grécia ou em Siracusa. Pois aí não há VIDA [Leben] alguma. Tais maneirismos exteriores, que só posso ver [Sehen] criticamente, tornam-se, por fim, um grande ponto de interrogação, reduzindo-se a uma vergonha quando comparados com as grandes realidades que são Homero, Platão e o Novo Testamento. Tudo o que é verdadeiramente real transforma-se em esquemas quando não vivenciado e apenas considerado como ‘coisa em si’” (p. 61). “Os cientistas se comportam face às forças do tempo à semelhança da sociedade francesa mais erudita e refinada frente ao movimento revolucionário. Tanto aqui como lá, trata-se apenas de formalismo, do culto da forma. Determinar relações é a última palavra da sabedoria. Essa orientação de pensamento possui naturalmente também – creio eu [Ich] – a sua história ainda não escrita. A falta de solidez do pensamento e da crença em tal pensamento – considerando-se epistemologicamente é uma atitude metafísica – é um produto histórico” (p. 39). “As vibrações levantadas pelo princípio excêntrico que, por mais de quatrocentos anos, fez nascer um novo tempo, me parecem ter-se tornado extremamente amplas e rasas, o conhecimento progrediu no sentido da superação dele próprio [eigentlich], o homem [Mensch] retraiu-se para tão longe de si mesmo que não é mais capaz de ser um vendo a si. O ‘homem [Mensch] moderno’, ou seja, o homem [Mensch] desde a Renascença, está pronto para ser enterrado” (p. 83). Em contrapartida: “Toda história verdadeiramente viva e não apenas a que descreve a VIDA [Leben] é crítica” (p. 19). “Mas conhecimento histórico é, em grande parte, conhecimento das fontes veladas” (p. 109). “Na história, o principal não é o espetáculo e o que dá na vista. Os nervos são invisíveis tal como o essencial. E da mesma forma que se diz: ‘Guardando silêncio, sereis fortes’, também é verdadeira a variante: Guardando [494] silêncio, havereis de perceber, isto é, de compreender [Verstehen]” (p. 26). “E, então, desfruto do diálogo do silêncio comigo mesmo e do trato com o espírito da história. Isso não se manifestou para Fausto em sua cela nem para Goethe em sua maestria. O diálogo não os teria espantado, por mais sério e penetrante que a manifestação pudesse ser. Num outro sentido e mais profundo, a manifestação é, na verdade [Wahrheit], mais fraterna e próxima do que os habitantes dos bosques e dos campos. O esforço assemelha-se à luta de Jacó; a vitória é certa para quem [Wer] luta. Ora, isso é o que, sobretudo, importa” (p. 133). STMSCC: §77
É pelo conhecimento do caráter ontológico da própria presença [Dasein] humana e não por uma epistemologia ligada ao objeto da consideração [Rücksicht] histórica que Yorck alcança a compreensão penetrante e clarividente do caráter fundamental da história enquanto “virtualidade”: “O ponto nevrálgico da historicidade [Geschichtlichkeit] reside em que a totalidade dos dados psicofísicos não é (é = ser simplesmente dado [Vorhandenheit] da natureza. Observação do autor), mas vive. E uma reflexão [Überlegung] sobre si mesmo, que não se dirige a um eu [Ich] abstrato mas à plenitude do meu si-mesmo [Selbst], é que haverá de me encontrar historicamente determinado tal como a física me reconhece cosmologicamente determinado. Tanto quanto natureza, eu [Ich] sou história…” (p. 71). E Yorck, que via com profundidade toda a inautenticidade da “determinação de relações” e toda a “falta de solidez” dos relativismos, não hesita em tirar as últimas consequências desta visão [Sicht] profunda da historicidade [Geschichtlichkeit] da presença [Dasein]. “Mas, por outro lado, para a historicidade [Geschichtlichkeit] interior da autoconsciência é, metodologicamente, inadequada uma sistemática separada da história. Assim como a psicologia não pode abstrair da física, também a filosofia – e justamente quando é crítica – não pode abstrair da historicidade [Geschichtlichkeit]… – A atitude consigo mesmo e a historicidade [Geschichtlichkeit] são como a respiração e a pressão do ar e por mais paradoxal que possa parecer – no aspecto metodológico, a não historização me parece um resto metafísico” (p. 69). “Em minha opinião, existe uma filosofia da história – não se assuste – porque filosofar é viver – quem [Wer] poderia escrevê-la! Decerto, não no sentido em que até agora se concebeu e buscou, contra o que o senhor irrefutavelmente se pronunciou. Falso, até impossível, embora não seja o único, tem sido o questionamento até hoje existente. Por isso já não há nenhum filosofar real que não seja histórico. A [495] separação entre filosofia sistemática e exposição histórica é, essencialmente, incorreta” (p. 251). “O poder tornar-se prática é, sem dúvida, o fundamento próprio [eigentlich] e justo de toda ciência. Mas a práxis matemática não é a única. A finalidade prática de nosso ponto de vista é a pedagógica, no sentido mais amplo e profundo do termo. Ela é a alma de toda verdadeira filosofia e a verdade [Wahrheit] de Platão e Aristóteles” (p. 42s). “O senhor sabe o que eu [Ich] acho a respeito da possibilidade [Möglichkeit] de uma ciência da ética. Apesar disso, sempre se pode fazer algo melhor. Para quem [Wer] são propriamente esses livros? Arquivos e arquivos! O único valor digno de nota é o élan de passar da física para a ética” (p. 73). “A filosofia é manifestação da VIDA [Leben] e não a expectoração de um pensamento, que não possui nem manifesta solidez por desviar a visão [Sicht] do solo da consciência. Nessa concepção, a tarefa será parcimoniosa em resultados mas complexa e trabalhosa em sua conquista. Liberdade dos preconceitos é a pressuposição [Voraussetzung], que já é muito difícil de se adquirir” (p. 250). STMSCC: §77
Yorck se empenhou em apreender categorialmente o histórico por oposição ao ôntico [ontisch] (ocular) e, assim, elevar a “VIDA [Leben]” a uma compreensão científica adequada. Isso fica claro a partir da referência [Verweisung] ao tipo de dificuldade com que tais investigações se deparam: o modo estético-mecanicista de pensar “encontra mais facilmente as palavras, mediante o esclarecimento disseminado da proveniência ocular das palavras, do que uma análise que remonta aquém da intuição… O que, ao contrário, penetra até o fundo da VIDA [Leben] furta-se a uma exposição exotérica e, por isso, a terminologia não é compreendida pelo senso comum, sendo, inevitavelmente, simbólica. É da especificidade do pensamento filosófico que decorre a especificidade de sua expressão verbal” (p. 70s). “Mas o senhor conhece minha predileção pelo paradoxo. Eu a justifico observando que o paradoxo é uma marca da verdade [Wahrheit] e que a communis opinio certamente nunca está na verdade [Wahrheit], pois é o sedimento elementar da generalização de uma meia-compreensão que se relaciona com a verdade [Wahrheit], tal como o rastro de enxofre que o raio deixa atrás de si. A verdade [Wahrheit] nunca é um elemento. A tarefa pedagógica do Estado seria desfazer a opinião pública elementar e possibilitar, tanto quanto possível, a formação da individualidade no ver [Sehen] e no perceber. Ao invés do que se chama de consciência moral pública – essa alienação radical [496] – voltamos a consciências singulares, que fortaleceriam a consciência moral” (p. 249s). STMSCC: §77
O interesse de compreender [Verstehen] a historicidade [Geschichtlichkeit] se coloca diante da tarefa de elaborar a “diferença genérica entre o ôntico [ontisch] e o histórico”. com isso, consolida-se a meta [Ziel] fundamental da “filosofia da VIDA [Lebensphilosophie]”. O questionamento necessita, porém, de uma radicalização de princípio. Do contrário, como se poderia apreender filosoficamente e conceber “categorialmente” a diferença entre a historicidade [Geschichtlichkeit] e o ôntico [ontisch], senão colocando-se o “ôntico [ontisch]” e o “histórico” numa unidade mais originária que dá perspectivas de comparação e possibilidade [Möglichkeit] de diferenciação? Mas isso só é possível caso se perceba que: 1) a questão [Fragen] da historicidade [Geschichtlichkeit] é uma questão [Fragen] ontológica sobre a constituição do ser dos entes históricos; 2) a questão [Fragen] do ôntico [ontisch] é a questão [Fragen] ontológica sobre a constituição do ser dos entes não dotados do caráter de presença [Dasein], isto é, do ser simplesmente dado [Vorhandenheit], no sentido mais amplo; 3) o ôntico [ontisch] é apenas uma região [Gegend] dos entes. A ideia do ser abrange o “ôntico [ontisch]” e o “histórico”. É ela que se deve deixar “diferenciar genericamente”. STMSCC: §77
Onde, porém, se funda esse nivelamento [Einebnung] do tempo do mundo e encobrimento da temporalidade [Zeitlichkeit]? No próprio [eigentlich] ser da presença [Dasein] que, à guisa de preparação, interpretamos como cura [Sorge]. Lançada e decadente, a presença [Dasein] está, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes [zunächst und zumeist], perdida nas ocupações. Nessa perdição anuncia-se, contudo, a fuga [Flucht] encobridora da presença [Dasein] de sua existência [Existenz] própria, já caracterizada como decisão [Entschlossenheit] antecipadora. Na fuga [Flucht] das ocupações reside a fuga [Flucht] da morte [Tod], ou seja, o desviar o olhar do fim do ser-no-mundo [In-der-Welt-sein]. Esse desviar o olhar de… é, em si mesmo, um modo de ser [Seinsart] para o fim que, ekstaticamente, é porvir [Zukunft]. Enquanto um desviar o olhar da finitude, a temporalidade [Ze