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Flusser (2021:181-185) – a conversa [Gerede]

domingo 13 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Vista superficialmente, a conversa parece idêntica à conversação. Também ela consiste de redes, aparentemente formadas por frases e intelectos. Entretanto, sob análise, verificaremos que a conversa é composta de detritos da conversação que penetram [182] imperceptivelmente, tal qual o detrito do plâncton no mar, em camadas inferiores. A expressão portuguesa conversa fiada exprime excelentemente essa situação. Heidegger, que, como já disse, se aproxima muito da formulação de uma ontologia da língua, chama essa camada de Gerede. A palavra alemã, porém, é inapropriada, e, em consequência, inapropriado é também o conceito heideggeriano. A camada da conversa tomou as frases da camada conversação fiado. Frases formuladas por intelectos participando da conversação são apanhadas por pseudointelectos participando da conversa, sem jamais serem inteiramente apreendidos e compreendidos. Digo pseudointelectos, porque nessa camada um verdadeiro intelecto não chega a realizar-se.

São fantoches, imitações de intelectos, intelectos embrionários, algo quase real, porém ainda abaixo do Equador da realidade. Do ponto de vista dos intelectos em conversação, esses pseudointelectos não estão juntos (Mitsein), mas estão diante da mão (vorhanden), e serão realizados somente dentro dos intelectos em conversação na medida em que forem apreendidos e compreendidos. Assim, vistos a partir da camada da conversação, as redes da conversa são produtos da decadência das redes da conversação. São os espectros quase reais da autêntica conversação, são conversações frustradas.

O clima, dentro dessa camada, é o clima fechado da angústia. Os intelectos (se é que já podem ser assim chamados) não absorvem as informações que sobre eles se precipitam, nada apreendendo [183] e compreendendo. Simplesmente refletem essas informações mecanicamente, como se fossem bolas de bilhar, e assim surge a conversa. As informações, tomadas fiado da conversação, são empurradas, não digeridas, de pseudointelecto para pseudointelectos, e são distorcidas e deturpadas nesse processo. Os pseudointelectos, fechados sobre si mesmos, são um joguete das informações que sobre eles se precipitam. Inteiramente circundados, cercados pelas informações não apreendidas e compreendidas, são estes pseudointelectos angustiados, completamente determinados pelas coisas, não têm liberdade. Por isso, não são reais no sentido autêntico da palavra. Os cérebros eletrônicos serão mais reais do que esses pseudointelectos.

Uma imagem infernal a que acabo de pintar daquilo que, afinal de contas, pode ser uma grande parte da humanidade. E a imagem que devemos aceitar, queiramos ou não, se formos dar crédito aos existencialistas. Embora estes talvez não o digam (e nem o saibam conscientemente), é essa sua imagem à luz de uma análise ontológica da língua. Nega a qualidade de realidade a uma grande parte da humanidade e degrada-a ao estágio de coisa, isto é, instrumento potencial dos intelectos realizados. Pode ser descoberto um erro neste argumento?

Creio que o erro se esconde novamente na simultânea superavaliação e pouca avaliação, em poucas palavras, na incompreensão da língua por [184] parte dos analisadores. A conversa é urna camada da língua que pode ser superposta a outra.

O intelecto, à medida que se realiza na conversação, está emergindo das camadas inferiores da língua. E à medida que é frustrado em sua tentativa de realizar-se conservando, decai para camadas inferiores. O intelecto realizado, não o esqueçamos, é o aspecto subjetivo da língua. É, tal qual a língua, um processo. Visualizemos esse processo da seguinte forma: os intelectos realizados em conversação projetam-se da camada da conversa ou tendem a decair nela.

À medida que são realizados, participam da conversação, isto é, apreendem, compreendem e articulam. Á medida que ainda não são realizados, ou à medida que não conseguem mais realizar-se, deixam de apreender e compreender, refletem surdamente frases, participam da conversa.

À medida, portanto, que são realizados, são livres, e à medida que ainda não são realizados, são determinados. O intelecto, sendo um processo, só é real na medida em que participa da conversação, e a conversa é somente o último estágio irreal, logo, fictício, na realização do intelecto. Em nosso gráfico, tudo o que fica abaixo do Equador da realidade é fictício nesse sentido, é língua inauténtica. O limbo da conversa é, pois, um mito.

Entretanto esse mito torna-se realidade quando apreendido e compreendido pelo intelecto em conversação. A análise da língua, portanto, tal qual é empreendida aqui, realiza o mito. Não como algo existente de certa forma fora do intelecto [185] realizado em conversação, e nisso reside o erro dos existencialistas, mas como um horizonte imediato e sempre ameaçador do próprio intelecto. A conversa fiada não é algo ontologicamcnte independente, alguma parte da humanidade em si desprezível e utilizável, mas é o ponto muito real, por ser parte do intelecto realizado, onde este pode diluir-se no nada. O ponto, para falarmos novamente como os existencialistas, onde o Eu pode decair e transformar-se em a-gente (das Man, impessoal).


Ver online : Vilém Flusser


FLUSSER, V. Língua e Realidade. São Paulo: É Realizações Editora, 2021