Convido o leitor a considerar comigo o conceito que cerca a realidade, o conceito do qual a realidade é o núcleo realizado, o conceito português do poder. A potencialidade é realidade in statu nascendi, ou, para falarmos tecnicamente, a potencialidade acrescida da necessidade resulta em realidade. O verbo poder significa, portanto, quase exatamente aquilo que Heidegger tenta pensar ao dizer que o nada nadifica. Poder significa não-ser tendendo para ser. Poder, como demonstra claramente o substantivo, é um conceito dinâmico, que admite aumento e diminuição. Algo pode mais ou pode menos; tem poder maior ou menor; está mais próximo ou mais afastado da realidade. O substantivo poder é a substantivação do nada em seu progresso rumo à realização. O poder total, o poder perfeito é a realidade. O conceito é o de uma luta darwinista pelo poder, é a pressão do nada em direção do ser; as espécies nadificantes querem chegar ao poder, para realizarem-se. A realidade é a ponta de lança do poder: o que é, o é porque podia. Não pode é a proibição de realização; também, em sentido ético, significa quase não deve. Poder e dever são conceitos ligados entre si, e tenho certeza de que um estudo fenomenológico das duas palavras esclarecerá fundamentalmente o sistema ontológico que suporta a língua portuguesa. Revelará, conforme creio, uma tendência da língua em direção do fatalismo (dever = poder).
[152] A tradução da palavra poder para o inglês revela-se como sendo de uma ambiguidade insuperável.
Posso fazer é traduzido por I may do, I can do, I am able to do, I am allowed to do. Todas essas frases têm significado diferente, a saber. Talvez faça, sou capaz de fazer, sei fazer, tenho a permissão de fazer. Evidentemente, o conceito poder falta na língua inglesa. O conceito da potencialidade é empregado pela filosofia inglesa, mas em sua forma latina e erudita. Não se integra autenticamente no tecido da língua. O pensamento inglês gira em regiões diferentes quando procura o ser para distingui-lo do nada. Essas regiões são caracterizadas por conceitos como happen (acontecer por acaso), get (conseguir, chegar até, tornar-se, procriar — beget —, esquecer — forget —, superar, realizar) e will (querer, mas veja-se também o item sobre o tempo). A palavra ontológica central parece-me ser get; ela parece abranger tanto a região do possível como a do realizado, mas de uma maneira inconcebível ao intelecto português. Não sei se get tem ligação etimológica com Wesen; sendo g equivalente a w e t a s, talvez seja possível. Para condensar em uma única frase o que creio ser a tendência fundamental da língua inglesa, diria: To get at what will happen (alcançar aquilo que se quer realizar e por isto se realizará). Não há espaço vago em uma ontologia assim para conceitos como poder e ser. Aliás, o conceito ser é quase tão intraduzível quanto o conceito poder.
A tradução de poder para o alemão choca-se contra dificuldades de outra espécie. Duas [153] traduções oferecem-se insistentemente: können e mögen. As outras, como dürfen e vermögen, embora provavelmente tão importantes quanto as primeiras, não serão consideradas. Können significa poder, no sentido de saber (fazer) e mögen significa poder no sentido de querer (fazer). E claro que ambos os conceitos não conseguem traduzir o poder português, que não é necessariamente um poder fazer. Consideremos primeiro a palavra mögen.
Ela é da mesma família da palavra machen (fazer) e forma os conceitos möglich (possível) e Macht (poder-substantivo). Entretanto, ela significa querer, gostar, amar. É neste contexto do mögen que devemos localizar a ontologia nietzschiana, o Wille zur Macht (vontade do poder), o amor fati, todo esse conjunto de pensamentos que provocaram a filosofia da atualidade. Esse tipo de potencialidade do mögen é responsável, entre outras coisas, pelo conceito do subconsciente freudiano, é libido querendo realizar-se. A dinamização da erótica, de um lado, e a sexualização da potencialidade, do outro, enfim, a entronização da potência sexual como força motriz do intelecto é resultado de uma análise inconsciente do conceito mögen por Freud . A psicanálise não é uma análise da realidade intelectual, mas da possibilidade intelectual, isto é, uma análise do mögen.
Consideremos agora a palavra können. Seu substantivo é Kunst, traduzido por arte. A realidade que se realiza a partir dessa potencialidade é a obra. É nesse contexto que devemos colocar a frase nietzschiana: arte é melhor do que verdade.
[154] Com este pensamento, Nietzsche procura derrubar aquilo que ele chama de platonismo, que está identificando com verdade. Verdade, para Nietzsche , é a afirmação platônica de uma correspondência entre o mundo das aparências e o mundo das ideias. Para Nietzsche , o mundo das ideias é nada, e Platão, portanto, um niilista.
A realidade, em contraste, surge pela arte. Logo, arte é melhor do que verdade. Entretanto, o que o pensamento nietzschiano realmente pretende é, em minha opinião, substituir a potencialidade latina, que domina toda a filosofia ocidental desde a Idade Média (e a qual Nietzsche identifica com platonismo), pelo können alemão. O esforço de Nietzsche é, pois, no fundo, o esforço de traduzir poder para o alemão. Esse é um bom exemplo da produtividade da tradução, mesmo quando ela é inconsciente, como no caso de Nietzsche .