Com a questão central analisada até agora surge em Heidegger uma posição contra um tipo de pensamento que, ao mesmo tempo em que é dependente de um sujeito, se relaciona com as coisas como se fossem de um mundo exterior, dispondo sobre elas e organizando-as [94] de maneira categorial como simplesmente existentes. É por isso que a analítica existencial de Heidegger visa à crítica rachadura entre mundo e sujeito entre res cogitans e res extensa como o havia postulado Descartes [1]. O filósofo critica todas as iniciativas do pensamento metafísico que pergunta pela realidade do mundo exterior sem primeiro clarificar o próprio fenômeno do mundo. [2]
Esta crítica volta-se radicalmente contra Kant também, filósofo que procurou estabelecer a causalidade como um fio que unisse todas as coisas e que seria tornada inteligível pela presença de um entendimento dotado de formas a priori e que possuía no eu penso o princípio unificador entre sensível e inteligível. Contra isso o filósofo estabelece a ideia de ser-no-mundo como estrutura prévia de sentido que une todas as coisas. Esta estrutura, porém, se desdobra em diversas formas a partir da compreensão do ser pelo homem.
Com o estabelecimento da compreensão do ser e, a partir daí, do sentido ontológico do ser-aí, o filósofo não estabelece apenas uma ontologia fundamental, mas implicitamente também expõe as bases para uma Antropologia não mais orientada na relação sujeito-objeto. O ser humano não é mais uma coisa que aparece no mundo entre as coisas, pois com ele surge o próprio, mundo e ele se torna ser-no-mundo. Dessa maneira a Antropologia não é mais definida mesmo filosoficamente como anima, animus ou mens ou então mais tarde como sujeito, como pessoa ou como espírito. Heidegger dirá na Carta sobre o humanismo que a essência do homem não consiste nem no fato de ele [95] ser um organismo animal nem no fato de isso ser compensado com uma alma imortal, pelas faculdades da razão ou pelo caráter de pessoa. O que torna manifesto o homem é, com esta tentativa, sempre com base no mesmo projeto metafísico, encoberto [3].
Numa outra passagem Heidegger critica a Antropologia como sendo um instrumento para a Psicologia, e Pedagogia, a Medicina e a Teologia e diz expressamente que “isso já não é mais uma moda, mas uma praga” [4]. O filósofo pode falar assim porque Ser e tempo é a obra em que se abandonou definitivamente a possibilidade de responder o que é o homem, para afirmar que só se pode questionar como é o homem. A resposta vem diretamente do fato que ele é ser-no-mundo e ser-aí. Com esta resposta o filósofo remete o ser humano para o lugar da compreensão do ser. Seu modo de ser consiste em compreender o ser, de tal modo que a pergunta pelo ser se torna a pergunta pelo modo como ele se dá: pelo ser-aí que compreende o ser.
Numa célebre passagem: “o que aconteceria se talvez não soubéssemos onde estamos e que nós somos? O que aconteceria se as respostas à pergunta por quem nós somos, apenas cada vez residiriam na mesma aplicação de uma resposta já dada, resposta que não corresponde àquilo que é talvez agora tocado na pergunta por quem nós somos, pois agora perguntamos não por nós enquanto seres humanos, suposto que esse nome é compreendido no significado tradicional. Segundo este o homem é uma espécie de animal vivo (animal, zoon) que existe entre muitos outros habitantes na terra e no universo. Nós conhecemos este [96] animal vivo pois, somos de sua espécie. Existe uma grande oferta de ciências que nos informam sobre esse animal vivo — chamado ser humano — e todas estas ciências são reunidas sob o nome de antropologia” [5].
O que importa é percebermos que o perguntar pelo ser, perguntar pelo ser e pelo tempo, perguntar pela essência do tempo (temporalidade) nos impele inexoravelmente para a pergunta pelo homem. Heidegger diz que o tempo só se torna tempo na medida em que o homem é. Mas será que já não houve um tempo em que não houve ser humano? Poderíamos dizer talvez que em cada tempo houve e haverá ser humano. “Não existe tempo quando o homem não foi, não porque o homem existe desde a eternidade e para sempre, mas porque tempo não é eternidade e porque o tempo só se temporaliza tornando-se tempo enquanto ser-aí humano e historiai.” [6] É por isso que em sua conferência de 1963 intitulada Tempo e ser Heidegger dirá que ser e tempo se dão como acontecimento — apropriação.
Quando Heidegger, portanto, pensa a Antropologia como analítica existencial ou como ontologia fundamental, na pergunta pelo sentido do ser (ser enquanto ser) e na questão do ser do ente, a diferença ontológica, ele cria com essa nova Antropologia um terceiro nível de ontologia, a ontologia do ente privilegiado que se chama ser-aí e ser-no-mundo. Com isso assistimos a uma mudança profunda na Filosofia ocidental. Heidegger designará, a partir daí, a tarefa da Filosofia como sendo a destruição das ontologias objetificantes como a de Aristóteles , de Decartes e de Kant . Esta destruição significará um adentramento [97] na Metafísica pela desconstrução de seus próprios conceitos e de todos os conceitos que as ciências provindas da Metafísica articulam como seu aparato conceitual. E que Heidegger encontrou um fio condutor que lhe permite realizar esta desconstrução: a temporalidade como sentido ontológico do ser-aí diferente do tempo como simples sucessão de agoras em que se dão os entes simplesmente existentes e que não são ao modo de ser do Dasein.
Essa mudança introduzida por Heidegger representa um vetor capaz de sustentar o processo de desconstrução dos conceitos da Metafísica e os conceitos das ciências humanas contaminadas pela sua origem metafísica. Entre elas se situa a Antropologia, a Psicologia e a Psicanálise. Dessa maneira temos a possibilidade de desconstruir todos os conceitos fundamentais do conhecimento que trata do ser humano. As consequências para a Antropologia são muito grandes e são também consideráveis as novas possibilidades para a revisão dos conceitos da Psicanálise pela desconstrução. Essa desconstrução atinge o edifício metapsicológico de Freud no qual o paradigma metafísico é tomado como moldura para a formação dos conceitos.
A partir do que foi dito, de que o ser humano é um como, toda a Psicanálise e Psicopatologia irá se ocupar com um modo de acontecer. O ser humano não é um efeito da natureza, mas é um fenômeno que surge pela compreensão do ser. Assim, o objeto da Psicanálise não é um ente no tempo linear explicável causalmente. Desaparece, então, o animal vivo, o animal com psiquismo ou o animal com espírito, visto que o ser humano é Dasein é ser-no-mundo. Por isso não podemos objetificá-lo como um objeto no espaço e no tempo. Nem podemos tratá-lo propriamente como um objeto denominado eu. A desconstrução possibilitada pela analítica existencial irá mostrar-nos que podemos apenas falar do modo de ser do ser-aí e não de sua substância.