Página inicial > Fenomenologia > Ernildo Stein (1973:283-297) – Introdução ao Método Fenomenológico (…)

Ernildo Stein (1973:283-297) – Introdução ao Método Fenomenológico Heideggeriano (4-6)

sábado 2 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

4. Uma vez situado o método fenomenológico no contexto das discussões atuais, passo à análise de certas particularidades e elementos distintivos seus. Não é fácil atingir um ponto de vista a partir do qual se possa refletir, fora da imanência da obra, sobre o problema do método, em Heidegger. O filósofo lhe dá uma importância muito grande, mas uma verdadeira exposição nunca apresentou. Há apenas a apresentação provisória do § 7 de Ser e Tempo  . Por isso, resta como único recurso a prometer um resultado apreciável, destacar certos momentos de sua análise da coisa mesma, em que, de um ou outro modo, se surpreendem modos de proceder que assinalam o método fenomenológico. Mas, fugindo da simples repetição da linguagem que o filósofo utiliza para examinar seu objeto, corre-se o risco de cair numa espécie de metalinguagem, descritiva da linguagem-objeto do filósofo, repetindo-se certamente com muito menos felicidade o que o autor disse, sem, no entanto, conseguir destacar algum aspecto relevante do método. Além disso, as observações metalinguísticas (ou metateoréticas) de Heidegger vão, de maneira tão íntima, fundidas com a análise da coisa, que o tentar separar implica em perder uma dimensão importante de ambas. Talvez o controle de certas implicações teoréticas e gnosiológicas de seu método possa servir de instância corretiva. Mas, o que o filósofo diz da fenomenologia é claro: “Fenomenologia significa primariamente um conceito de método. Caracteriza o como e não o quê. Quanto mais autêntico este conceito, . . . tanto mais originariamente está ele enraizado na discussão com as coisas mesmas” (ST, 27).

O que penso ser o fator determinante e individualizador do método fenomenológico é a descoberta que Heidegger fez de que existe um primado da tendência para o encobrimento. Esta convicção do filósofo assume um papel importante na autocompreensão de seu método. Ao invés de pensar, como Husserl   e outros filósofos, que diante de nós a realidade se estende à espera da rede de nossos recursos metodológicos que a aprisionem, Heidegger afirma que o homem e o essencial nas coisas tendem para o disfarce ou estão efetivamente encobertos. Por isso, volta-se para o como. No começo, o filósofo ainda fala do “ser dado” (Gegebensein); depois já trata do “encontro” (Begegnung); mais adiante alude à “descoberta” (Entdecktheit); paralelamente fala de “revelação” (Erschlossenheit); enfim passa a dominar o “desvelamento” (Unverborgenheit); às vezes este último vem estilizado no termo “clareira” (Lichtung). Todos estes termos estão afinal ligados à palavra phainesthai. Trata-se sempre de um empenho para abrir um âmbito em que aquilo que está velado se mostre por si mesmo. É o ser que se deve revelar sob o ente.

Mas, já que o ser somente se revela sob o ente, num retorno sobre o ser-aí, torna-se decisivo perseguir e pôr a nu os modos de dissimulação em que primeiramente e o mais das vezes, se situa o próprio ser-aí, na sua cotidianeidade. Heidegger descobre o ser-aí no movimento de fuga de si mesmo, numa tentativa de não se assumir na sua totalidade, como preocupação, que se articula em existência, facticidade e decaída ou ser-adiante-de-si, já-ser-em e junto-dos-entes. O ser-aí se vela para si mesmo, encobre suas possibilidades e assim barra a possibilidade de uma revelação de ser. A atitude do filósofo, para contornar a fuga do ser-aí de si mesmo, é partir da análise da cotidianeidade e descobrir nela o homem no movimento de fuga. Somente, uma vez realizada a analítica do ser-aí cotidiano, se descobre como o ser-aí pode assumir-se, pela decisão enérgica, na sua verdade, para descobrir que sempre está simultaneamente na não-verdade. Este interesse pela não—verdade é o sinal da fuga de si mesmo.

O existencial em que se concentra a possibilidade de sucesso do método fenomenológíco é o da compreensão. Desde sempre o homem é compreensão, compreende-se em seu ser e nele já antecipa uma implícita compreensão de ser em geral. O que importa é explicitar esta compreensão. É através dela que se atinge, não apenas o ser-aí numa instância decisiva, mas, ao mesmo tempo, “a transparência metódica do processo compreensivo-explicativo da interpretação do ser” (ST, 230). Porque reside no compreender a possibilidade da transparência metódica do método fenomenológíco?

5. Detenhamo-nos em Ser e Tempo  . Quando se examina a obra em seus detalhes, nos recursos técnicos da composição, nos diversos níveis de exposição, nas idas e vindas de suas análises, depara-se com uma espécie de astúcia que o filósofo aguça cada vez mais, para contornar metodicamente a tendência para o encobrimento que espreita no objeto do método fenomenológico: o ser e o ser-aí. É uma espécie de habilidade do analista que dispõe de tal maneira as antenas do seu método e as controla, que, o que de si se encobre, se mostre. Para isto é decisiva a hipótese da compreensão como existencial, que pode ser metodicamente explicitada em sua articulação. É através dela que o ser-aí sempre está aberto, antecipa um sentido que o orienta, ainda que só o faça sempre voltando—lhe as costas, em fuga de si mesmo, por não suportar a estrutura nadificante que acompanha a preocupação. Na compreensão como Heidegger a estiliza em ST, nos §§ 31 e 32 esboça-se a matriz do método fenomenológico. Pois, pela sua explicitação se descobre que a compreensão possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compõe de aquisição prévia, vista prévia e antecipação. Desta estrutura explicitada nasce a situação hermenêutica em que é possível apoiar—se para a efetivação do projeto que se tem em vista. Mas, aqui está o instante que é preciso deter para apanhar a reflexão do filósofo em seus implícitos pressupostos metodológicos. A análise realizada nos §§ 31 e 32 parece puramente voltada para a descoberta da estrutura do existencial “compreensão”. É tratado pela linguagem-objeto. O filósofo descreve algo. No § 63, entretanto, ocorre uma parada metodológica, imposta pela circularidade do método fenomenológico. Nela Heidegger realiza uma reflexão metateorética, que como metalinguagem se distancia do objeto ser-aí, para se deter na importância metodológica daquilo que foi exposto na analítica da compreensão nos §§ 31 e 32. Aqui, então, se revela toda a envergadura do círculo inevitável para quem utiliza o método fenomenológico como Heidegger o faz, partindo implicitamente da compreensão. O filósofo só pôde antecipar uma exposição provisória do método (§ 7) porque os dados para a compreensão mais profunda do método existiriam apenas após a explicitação do ser-aí cotidiano. O método, portanto, é compreendido quando já se analisou com ele aquilo para o qual é pensado. A circularidade está em que se pressuponha aquilo que deve ser atingido no caminho (método), antes de se trilhá-lo explicitamente. Toda a explicitação do ser-aí cotidiano repousa, portanto, num pressuposto. O caráter metódico da analítica existencial, não se evidencia ainda na exposição provisória do método fenomenológico; só na segunda seção de Ser e Tempo   a explicitação do método, revela sua situação e porte.

Resumamos rapidamente, o caminho do filósofo: ele quer expor o sentido da preocupação, que é a temporalidade. Mas este projeto de atingir a temporalidade como sentido ontológico do ser-aí é uma antecipação do sentido. No § 32, p. 153, Heidegger dissera: “o círculo da compreensão pertence à estrutura do sentido”. Então também a busca do sentido da preocupação deve mover-se no círculo hermenêutico. Dentro deste círculo se terá que atingir uma situação hermenêutica que .permita a interpretação do sentido da preocupação. Somente então suas “antecipações” estarão fundadas na conformidade com “as coisas mesmas” (ST, p. 153). A análise da compreensão, na analítica do ser-aí cotidiano, já supunha o método, mas com esta “clarificação da compreensão mesma se garantiu a transparência metódica do processo compreensivo—explicativo da interpretação do ser”, diz Heidegger à p. 230, ao encerrar a analítica da cotidianeidade. As razões da análise da compreensão na primeira seção de ST, contudo não são puramente temáticas, nelas se esconde um interesse metodológico, que é explicitamente referido no § 63.

No início do § 45, p. 232, a situação hermenêutica é introduzida como conceito válido para o método fenomenológico que Heidegger já aplicara em toda a primeira secção, pressupondo-o. A situação hermenêutica é ligada com a aquisição prévia, vista prévia e antecipação próprias da explicitação (interpretação). Estas três componentes da explicitação são chamadas de “pressupostos”. Destes “pressupostos” fala o filósofo, no fim do § 62, p. 310, como passagem para o parágrafo propriamente metodológico (§ 63) no corpo de Ser e Tempo  . “Mas não está na base da interpretação ontológica da existência do ser-aí até aqui realizada, uma determinada concepção ôntica de existência autêntica, um ideal fático do ser-aí? É realmente, assim. Esse fato não deve não apenas não ser negado e confessado obrigatoriamente; ele deve ser compreendido, a partir do objeto temático de investigação, em sua positiva necessidade. A filosofia não deverá jamais querer negar seus “pressupostos”, mas também não apenas confessá-los. Ela compreende os pressupostos e conduz, juntamente com eles, para um radical desdobramento, aquilo para que são pressupostos. Esta função tem. a consideração metódica agora exigida”, (p. 310)

No § 63 descreve, então, o filósofo, “a situação hermenêutica conquistada para a interpretação do sentido do ser da preocupação e o caráter metódico da analítica existencial em geral”. O que sempre suscita estranheza ao se reler este parágrafo tão surpreendente é o fato de que nele não se faz referência alguma ao § 7 em que o método fenomenológico é provisoriamente exposto. Os dois §§ têm, sem dúvida nenhuma, vínculos inegáveis. Mas, há uma diferença que me parece não ser casual e que dá outra dimensão ao § 63. Enquanto o § 7 é posto na introdução a Ser e Tempo  , o § 63 surge no corpo da exposição sistemática da analítica existencial. Foi o objeto mesmo da análise que impôs “à marcha da investigação uma parada” (p. 303)? Heidegger parece-me dar uma resposta fugidia, mas suficiente para apontar na direção da questão que nos interessa: no § 61, que introduz o capítulo sobre “o autêntico poder-ser-total do ser-aí e a temporalidade como o sentido ontológico da preocupação”, o filósofo fala do “esboço do passo metódico” (p. 301). “Método autêntico se funda na adequada visão antecipadora sobre a constituição fundamental do “objeto” a ser explorado, respectivamente, da área do objeto. Autêntica consideração metódica — que certamente deve ser distinguida da vazia discussão da técnica — dá, por isso, ao mesmo tempo esclarecimento sobre o modo de ser do ente tematizado” (p. 303). As referências do § 7 ao ser-aí (ente tematizado) são raras e exteriores. Tem-se a impressão de que aquele parágrafo serve muito antes como participação no debate sobre o que é fenomenologia. O verdadeiro caráter do método fenomenológico não pode ser explicitado fora do movimento e da dinâmica da própria análise do objeto. O ser-aí impõe, por causa de sua estrutura particular, que a consideração metódica se realize dentro da sistemática análise de seu ser e sentido. A introdução ao método fenomenológico é, portanto, somente possível, na medida em que de sua aplicação se obtiveram os primeiros resultados. Isto constitui sua ambiguidade e sua intrínseca circularidade. A “constituição fundamental do objeto” e o “modo de ser do ente tematizado” estão implicados na exposição do método. Mas, como a “constituição e o modo de ser” do ser-aí só resultam de uma análise existencial, deve primeiro ser suposto o método. Sua explicitação só terá lugar no momento em que tiver sido atingida a situação hermenêutica necessária.

Uma comparação poderá esclarecer a questão. Wittgenstein   diz na sentença número 6.54 de seu Tractatus: “Minhas proposições se elucidam do seguinte modo: quem me entende, por fim as reconhecerá como absurdas, quando graças a elas — por elas — tiver escalado para além delas. (É preciso por assim dizer jogar fora a escada depois de ter subido por ela.)” (Tradução de J. A. Giannotti). Tornadas claras as proposições obscuras com o auxílio das análises do Tractatus, joga-se fora a escada que conduziu para a clareza. A filosofia não trata propriamente de conteúdos. Ela importa como caminho, como método. Uma vez que o método prestou seu serviço torna-se inútil. Só se fala daquilo de que se pode falar claramente. “Deve-se calar sobre aquilo de que não se é capaz de falar”, é a última sentença do Tractatus.

A postura de Heidegger, em Ser e Tempo  , é absolutamente diferente. O filósofo prepara provisoriamente seu método para penetrar na analítica existencial. Uma vez realizada parte da análise, isto é, atingida a situação hermenêutica que permite determinar o sentido do ser do ser-aí, o filósofo para. Descobre que o método se determina a partir da coisa mesma. A escada para penetrar nas estruturas existenciais do ser-aí, é manejada pelo próprio ser-aí e não pode ser preparada fora para depois se penetrar no objeto. Não há propriamente escada que sirva para penetrar no seu “sistema”. A escada já está implicada naquilo para onde deveria conduzir. O objeto, o ser-aí, traz consigo a escada. Há uma relação circular. Somente subimos para dentro das estruturas do ser-aí, porque já nos movemos nelas. É apenas uma questão de explicitação. A análise do ser-aí está suspensa no ar. O ser-aí se levanta pelos cabelos. (A analogia com o Barão de Münchhausen não é ironia; quer apenas lembrar que a circularidade — absurdo e tautologia aparentes — faz parte da condição humana).

Após a análise da morte, da consciência e da culpa (na segunda seção de ST), Heidegger atingiu a posição metódica, isto é, a situação hermenêutica, necessária para a explicitação do sentido do ser do ser-aí, que é propriamente a meta perseguida em toda a análise anterior. Agora o método alcançou a necessária profundidade e expressão, paralelamente à análise para que serviu. “O ser-aí está colocado originariamente dentro da aquisição prévia, isto é, sob o ponto de vista de seu autêntico poder-ser-total; a vista prévia condutora, a ideia da existência, conquistou sua determinidade, através da clarificação do seu mais autêntico poder-ser; com a estrutura ontológica do ser-aí, concretamente elaborada, tornou—se tão distinta sua particularidade ontológica, em face de todos os entes puramente subsistentes, que a antecipação sobre a existencialidade do ser-aí possuía uma articulação suficiente para conduzir com segurança a elaboração conceituai dos existenciais” (p. 311).

Este resumo do que foi, até então, atingido, mostra que a antecipação realizada pelo filósofo, ao iniciar a analítica da cotidianeidade, realmente conduziu a um ponto em que o método recebe, na verdade, sua transparência a partir de dentro da própria marcha da analítica. Por isso a exposição do método só podia ser provisória e exterior, provisória porque exterior. “O caminho até aí percorrido” (311), analisando o ser-aí, revelou também porque o método fenomenológico foi, de início, provisório. Heidegger expõe como teve que lutar com o primado da tendência para o encobrimento que reside no ser-aí. Era preciso romper a atitude da fuga e da recusa de se assumir que caracteriza seu ser cotidiano. “Metodicamente se exigiu” (313) para isto “violência”.

Só após tal “violência” (311 e 313), que repousava sobre uma hipótese, o método intimamente ligado ao ser-aí e à pré-compreensão de ser, teria conquistado seu estatuto fundamental. Só a descoberta da tendência para o encobrimento e a fuga própria ao ser-aí daria razão ao método, antes apenas esboçado.

A ambiguidade e complexidade do método fenomenológíco heideggeriano se fundam certamente na hegemonia da tendência para o encobrimento; mas, tal tendência é destacada porque somente assim se pode instaurar uma distância entre o fenômeno no sentido vulgar e o fenômeno no sentido fenomenológíco, entre os múltiplos entes e o ser. Pois, não se trata de alcançar o ser por um processo de abstração (não é possível, por que já acompanha e condiciona a abstração), mas a partir do ser-aí, das estruturas originárias que o constituem. E este está, primeiro e o mais das vezes, envolvido na articulação dos entes, ocupado com a sua familiaridade. Assim o método fenomenológíco heideggeriano, em contraste com todos os métodos que se propõem em filosofia, deve se adequar a um fenômeno que só se mostra sob o velamento. Distancia-se, dessa forma, tanto do método do positivismo lógico, que deliberadamente foge das análises de seus pressupostos, para optar por um sistema fechado de referências, em que predominam a univocidade e a clareza; como também do método dialético que, de antemão, aposta numa totalidade, a partir da qual suas proposições se iluminam e na qual se apoiam, mantendo, contudo, ao nível em que são enunciadas, uma contradição que apenas se resolve no todo.

A ambiguidade das proposições basilares do pensamento heideggeriano, não nasce de algum secreto amor ao crepuscular e nebuloso. Nem amplia o filósofo o conceito de verdade como desvelamento, até o indefinido, porque julgue supérflua a verdade que se legitima e define operacionalmente. Nem pretendem suas tiradas proféticas e afirmações enfáticas abafar as conquistas delimitadas e restritas de uma linguagem que lida com moeda miúda e só dá passos em regiões já iluminadas. A clareza com que viu a fixidez de um pensamento ontológico e, contudo, a convicção de que de algum modo a ontologia ainda era necessária, fê-lo enveredar pelo caminho da radicalização fenomenológica. O fato de seu método fenomenológico ser sustentado entre as duas alternativas metodológicas atuais, torna sua compreensão mais difícil, mas não o dispensa de sua contribuição necessária.

6. Numa análise quase linear da estrutura e do movimento da interrogação heideggeriana, pode-se isolar as instâncias fundamentais que determinam esta ambiguidade que vimos ligada a seu objeto. Não foram preocupações formais e procura de critérios de clareza que impeliram o filósofo para a investigação. São antes poderosas intuições, que teimosamente perseguidas, dão-lhe o material para seu método e suas análises ontológicas.

Antes do aparecimento de Ser e Tempo  , análises de Aristóteles   lhe revelaram, como impacto decisivo, o conteúdo e a carga ambivalente da palavra alétheia. Não que o filósofo tirasse deste semantema, por um passe de mágica, toda a temática. Mas a interpretação polarizadora de alétheia, como velamento que é negado, como desvelamento sempre referido a velamento, deu-lhe, como confessa, o impulso decisivo para a radicalização da fenomenologia no sentido husserliano, elaborando seu método fenomenológico. Este joga implicitamente com os dois pólos da alétheia: aquilo que é preciso ser desvelado está primeiramente e o mais das vezes velado. A fenomenologia recebe sua ambiguidade da alétheia. Enquanto utilizada para a analítica da faticidade e da existência, a fenomenologia se torna hermenêutica, passa a se movimentar num círculo hermenêutico. Esta circularidade, que não é apenas característica da compreensão, mas, através dela, do próprio ser-aí, também apresenta uma ambiguidade que acompanha toda a obra de Heidegger. Pelo método fenomenológico se desvendou esta circularidade, que passa, por sua vez, a possibilitar uma verdadeira penetração na fenomenologia. A estrutura circular da interrogação heideggeriana leva-o ao que chamará de viravolta (Kehre). Na estrutura circular do ser-aí se revela que a análise do ser-aí pressupõe uma compreensão do ser; mas uma compreensão do ser supõe, quando quer ser explícita, uma analítica do ser-aí. A Kehre é um movimento pelo qual o filósofo, uma vez realizada a mediação pela analítica, se volta para o ser e a partir dele analisa o homem. A estrutura circular do ser-aí, de início reduzida ao âmbito da analítica, se converte em movimento — na história de um pensamento — pelo qual este se volta para o ser. Círculo hermenêutico e Kehre não se sucedem na obra do filósofo, mas se entrelaçam, destacando-se um ou outro, conforme se queira enfatizar o problema do ser-aí, ou o problema do ser. Se após o movimento da Kehre, o filósofo retorna como que à sua primigênia inspiração, que reside na alétheia, não se pode falar de arbitrariedade. É ainda o impulso originário da alétheia, como velamento e desvelamento, que comanda a reflexão do último Heidegger.

Assim, alétheia, fenomenologia, círculo hermenêutico, viravolta, podem ser designados: o momento de eclosão, o método, a estrutura e o movimento da interrogação heideggeriana. [1] Com isto apenas se assinala a dimensão formal da questão para a qual se quis chamar a atenção pelas observações que atrás foram feitas. Mas, os quatro elementos formam uma unidade pela qual se pode apanhar o pensamento do filósofo como um todo disseminado nas múltiplas análises fragmentárias. Neste todo, o método fenomenológico não pode ser destacado como um instrumento à parte. Se ele conduz o todo, também dele recebe o que o individualiza como método.

E que dizer da atualidade do método fenomenológico? Atual é o resultado: a obra do filósofo. Não se pense que a fenomenologia possa ser destacada da coisa e aplicada com eficiência em qualquer área da realidade. O projeto de Heidegger e seu método são inseparáveis. Estão aí como bloco errático que desafia a superficialidade com que se fazem coisas necessárias em filosofia, nos dias que correm. Muito aprendemos da obra heideggeriana; e muito está nela, ainda por ser decifrado. Estranhamente, entretanto, o caminho de Heidegger é solitário. Os que quiseram seguir suas pegadas, tornaram-se epígonos, apenas epígonos. Não há um pensador que tenha atingido porte original repetindo-o, quer retomando seu objeto, quer aplicando seu método. Heidegger é um dos grandes pensadores que podem alimentar-nos, mas que nos desafiam a seguir o próprio caminho. Talvez seja destino das grandes filosofias, serem muito marcadas por seu tempo, serem “de ontem” e com isto guardarem sua atualidade; difícil atualidade, porque exigem sua ultrapassagem e para ela preparam caminho.


Ver online : Ernildo Stein


HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução e notas de Ernildo Stein. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973


[1Ver o trabalho de livre docência do Tradutor: Compreensão e Finitude — Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana, Ética Impressora, Porto Alegre, 1967