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Dastur (2015:94-96) – Binswanger e Husserl

quarta-feira 7 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

A co-apresentação de si mesmo ou do alter ego   se funda, então, na estrutura temporal   fundamental que conjuga retenção e protenção. Consequentemente, é ela que é preciso inicialmente elucidar. Ainda que Binswanger   se baseie, sobretudo, na obra de Szilazi, Introduction à la phénoménologie de Edmund Husserl   (Introdução à fenomenologia de Edmund Husserl), um livro de 1959, um livro [94] que trata desse assunto, ele aponta para as Leçons sur la phénoménologie de la conscience intime du temps (Lições sobre a fenomenologia da consciência íntima do tempo) de 1905, curso editado em 1928 por Heidegger que vê aí “uma acentuação do caráter intencional da consciência”, expressão retomada em parte pelo próprio Binswanger que fala a respeito do mesmo curso de “esclarecimento da intencionalidade em seus fundamentos”. O que é tratado nesse curso, na verdade, é a constituição dos “objetos temporais” (Zeitobjeckte), que, em oposição ao objeto espacial, são intrinsecamente determinados pelo tempo, como é o caso da melodia, e isso exige que eles se situem no tempo puramente imanente e que se ponha entre parênteses o tempo objetivo da natureza, do qual é impossível partir para elucidar a essência do tempo. Trata-se, então, para Husserl, de reiterar o gesto filosófico mais fundamental, aquele da redução de todo o transcendente, de todos os fatos, para fazer aparecer o puro fenômeno do tempo: “a coisa real, o mundo real, não são um Datum fenomenológico, menos ainda é um Datum fenomenológico o tempo do mundo, o tempo coisal, o tempo da natureza no sentido das ciências da natureza, nem, consequentemente, o da psicologia enquanto ciência da natureza que tem por objeto o psíquico”. O que é um Datum fenomenológico é unicamente a vivência (Erlebnis  ) na qual aparece o temporal: “são Data fenomenológicos as apreensões de tempo, as vivências nas quais aparece o temporal no sentido objetivo (…). De modo nenhum, porém, isso é o tempo objetivo. A análise fenomenológica não permite encontrar nenhum resquício sequer de tempo objetivo”. De acordo com esses textos, Binswanger também marca claramente o estatuto transcendental   e não psicológico da investigação [95] fenomenológica: “A ciência que trabalha com esse método não é uma ‘psicologia da experiência íntima”, não é uma psicologia vivida (psíquica) (Erlebnispsychologie) e não é uma fenomenologia do tempo vivido ou do espaço vivido, mas apenas a fenomenologia transcendental”.

É sobre a base de tal epokhè   do tempo objetivo que pode aparecer a estrutura temporal fundamental que Husserl representa em seu famoso diagrama do tempo. Porque, para isso, é necessário empreender uma análise mais “profunda” que aquela da “psicologia descritiva” cara a Brentano  , a qual compreende a consciência do tempo a partir da “associação” do passado e do presente por intermédio da imaginação, ao passo que, para Husserl, trata-se de fazer aparecer a retenção contínua do passado no presente, retenção essa que Husserl chama de “lembrança primária” por oposição à lembrança secundária que é a rememoração, a qual supõe um passado evocado no presente e não simplesmente retino nele, como é o caso na percepção “estendida” descrita por Husserl no §8 de suas Lições: “Eliminamos agora toda apreensão e toda tese transcendental, e pegamos o som como puro dado hilético. Ele começa e cessa, e toda unidade de sua duração, a unidade de todo o processo no qual ele começa e termina, ‘cai’ após seu fim no passado sempre mais distante. Nessa recaída, eu ainda o ‘retenho’, eu o tenho numa ‘retenção’, e tanto que ela se mantém, e ele tem sua temporalidade própria, ele é o mesmo, sua duração é a mesma. Essa é a razão pela qual Binswanger fala, a propósito da retenção e da protenção, de momentos que “se intrincam constantemente entre si”, retomando o exemplo favorito de Szilazi, aquele da frase que, para ser pronunciada, exige o concurso da protenção e da retenção, a protenção sendo a recíproca da retenção com relação ao futuro: “Para usar um exemplo favorito de Szilasi: enquanto falo, então [96] na presentação, já tenho protenções, caso contrário não poderia jamais terminar a frase; do mesmo modo, ponho no ‘enquanto’ da presentação igualmente a retenção, caso contrário não saberia a respeito de que eu falo”. Mas a dificuldade da análise de Husserl é precisamente que ela se situa num nível abstrato, aquele do “puro dado hilético” ou da sensação, pois é apenas nesse nível que pode aparecer essa “intencionalidade longitudinal” que é a retenção, que une as vivências entre si, ao passo que a intencionalidade transversal é, ao contrário, dirigida em direção ao objeto. É preciso, na verdade, abandonar o percebido que se dá sempre em sua identidade já conquistada para fazer aparecer a temporalidade da percepção: é preciso de algum modo olhar “por trás” das vivências, nos bastidores da consciência, ainda que a vivência, o percebido, e seu sentido permaneçam constantemente pressupostos, mas que, assim, seriam de algum modo “neutralizados” nessa epokhè mais “profunda”.


Ver online : Françoise Dastur


CABESTAN, Philippe; DASTUR, Françoise. Daseinsanálise: fenomenologia e psicanálise. Rio de Janeiro: Via Verita, 2015