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Ciocan (2014:18-20) – problema da morte na arquitetura de Ser e Tempo

terça-feira 8 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Por fim, podemos fazer mais uma pergunta sobre o lugar do problema da morte na arquitetura de Ser e Tempo  : por que o problema da morte abre a segunda seção, ou seja, por que está situado na fronteira entre as duas seções? Por que não está na primeira seção, ao lado dos outros existenciais? Não faria mais sentido analisar a mortalidade do Dasein na esteira da compreensão, da afetividade ou do discurso, como características essenciais do ser do Dasein? Não deveríamos colocar a mortalidade do Dasein, de um lado, sua preocupação com o mundo ao redor, de outro, e, finalmente, seus vínculos com os outros, no mesmo nível? Essas perguntas aparentemente ingênuas nos forçam a tematizar precisamente a diferença — em intenção, orientação, nível, perspectiva — que separa a primeira seção de Ser e Tempo   da segunda. De fato, por que foram necessários dois níveis na análise do Dasein, e qual é a diferença entre eles? Qual é a especificidade de cada um e como eles são articulados?

Para simplificar, na primeira seção (§§ 9-44) — que é descrita como “preparatória” (vorbereitend) — estamos lidando com a exposição articulada das estruturas fundamentais da constituição do ser do Dasein. A perspectiva aqui é fenomenológica e estritamente descritiva. O ser-no-mundo (In-der-Welt-sein) é postulado como a constituição fundamental do Dasein, abrindo assim a abordagem da análise existencial. Essa constituição deve, então, ser detalhada, mapeada e explorada em seus momentos constitutivos: mundanidade (Weltlichkeit), ser-com (Mitsein), ser-si-mesmo (Selbstsein) e ser-em (In-Sein), cada dimensão sendo analisada em suas estruturas subordinadas. Por exemplo, sob a dimensão da mundanidade como um mundo ambiente (Umwelt), encontramos a ideia de ustensilidade (Zeughaftigkeit) como um modo de ser da ferramenta (Zeug), significado (Bedeutsamkeit), o complexo de referências (Verweisungzusammenhang) e a virada (Bewandtnis), o “para” (Um-zu), como o destino da funcionalidade da ferramenta, a ocupação (Besorgen) como um modo específico de o Dasein se relacionar com as ferramentas. Em seguida, sob a dimensão do ser-com (Mitsein), encontramos outras estruturas: a solicitude (Fürsorge) como a forma de o Dasein se relacionar com os outros, o ser-aí-com (Mitdasein), como a presença dos outros para o próprio Dasein, ou o ser-um-com-o-outro (Miteinandersein), como a relação efetiva entre o próprio Dasein e o Dasein do outro. Na dimensão do ser-si-mesmo (Selbstsein), encontramos a ideia do Ser (das Man) e a possibilidade do ser autêntico (eigentliches Selbst). Finalmente, sob a dimensão do ser-em (In-Sein), encontramos existenciais fundamentais de abertura, como a compreensão (Verstehen), o afeto (Befindlichkeit) ou a fala (Rede), cada um com suas estruturas subordinadas.

Podemos dizer que o ser-no-mundo, a totalidade originalmente unitária do ser do Dasein, é, antes de tudo, uma estrutura abstrata e indeterminada que, por meio do processo analítico, é determinada e concretizada, revelando toda a paisagem díspar de sua multiplicidade estrutural abundante. Então, como em um movimento hegeliano de pensamento, essa multiplicidade será sintetizada novamente, na perspectiva de uma totalidade originalmente concreta, em sua unidade primordial, determinada no parágrafo 41 como preocupação (Sorge). Parece, então, que com a totalidade unitária da preocupação, a análise “preparatória” foi concluída: o ser do Dasein é finalmente determinado originalmente, com todas as precauções metodológicas, e o resultado — ou “síntese”: preocupação — pode ser entendido como um fundamento fenomenologicamente seguro para levantar a questão do ser. A “surpresa” do parágrafo 45 consiste precisamente nisso: o jogo não terminou, o resultado obtido não é suficiente, a interpretação do Dasein ainda carece de originalidade. O que está faltando é precisamente uma totalidade “ainda mais concreta” do Dasein, que será elaborada por meio do fenômeno da morte. Em segundo lugar, o que ainda está faltando é a autenticidade do Dasein, que será elaborada por meio do tema da consciência. Esses dois fenômenos do Dasein, a morte e a consciência, que se abrem para a totalidade (Ganzheit) e a autenticidade (Eigentlichkeit) e que se concretizam como antecipação (Vorlaufen) e resolução (Entschlossenheit), são passos preliminares para a conquista do fenômeno último do Dasein, aquele que pode servir como um fundamento certo para a interrogação do ser. Assim, a morte e a consciência ainda parecem, de certa forma, fazer parte de uma “análise preparatória”, que prepara, na compreensão, o fenômeno último do Dasein, sua totalidade unitária e autêntica, o fundamento de toda reflexão ontológica válida. Pois, como já sabemos, a questão do ser depende essencialmente do esclarecimento original do ser, que é determinado pela compreensão do ser [1].

De fato, somente a unificação dessas duas linhas no fenômeno da resolução antecipada (vorlaufende Entschlossenheit) dará esse fenômeno último do Dasein, cuja unidade original será revelada como temporalidade (Zeitlichkeit). Deve-se notar que, embora permaneça fenomenológico nessa segunda seção da obra, o pensamento de Heidegger aqui inclui não apenas uma dimensão descritiva, mas também uma dimensão construtiva: a partir do que é dado, sendo como tal descritível (notadamente o Dasein inautêntico, em sua cotidianidade), Heidegger constrói, por um processo que podemos chamar de “dedução fenomenológica”, o que não é mais dado, notadamente a autenticidade do Dasein. Assim, como veremos mais detalhadamente, a análise do ser para a morte na cotidianidade se enquadra na fenomenologia descritiva, enquanto a análise do ser para a morte autêntica se enquadra na fenomenologia construtiva. Ao longo dessa exploração do ser do Dasein, vários tipos de determinações conceituais entrarão em ação, sendo a mais importante delas a existencial (Existenzial). Também encontramos outras determinações, como Seinsverfassung (constituição do ser), Seinscharakter (caráter do ser), Seinsstruktur (estrutura do ser), Seinsmodus (modo de ser), Seinsart (aparência do ser; com a variação “aparência fundamental”: Grundart), Seinsweise (maneira de ser) ou Strukturmoment (momento estrutural). Podemos então perguntar qual é a relação entre esses termos, que têm um valor metodológico e temático indiscutível no contexto do projeto heideggeriano. Essas noções são estritamente semelhantes e são usadas indiscriminadamente, como sinônimos? Seus significados são específicos ou não? Heidegger os utiliza em um sentido determinado ou eles intervêm aleatoriamente? Qual é, então, a relação conceitual entre essas determinações que surgem a todo momento em Ser e Tempo  ?


Ver online : Cristian Ciocan


CIOCAN, Cristian. Heidegger et le problème de la mort: existentialité, authenticité, temporalité. Dordrecht: Springer, 2014


[1SZ, 7: “Em que ser o significado do ser deve ser decifrado, em que ser o desvelamento do ser deve ter seu início? Esse ponto de partida é arbitrário ou um determinado ser tem a primazia na elaboração da questão do ser? O que é esse ser exemplar e em que sentido ele tem a primazia? […] A elaboração da questão do ser significa, portanto: tornar transparente um ser — aquele que questiona — em seu ser"