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Ciocan (2014:4-5) – morte, angústia e propriedade

terça-feira 8 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

A morte desempenha seu papel decisivo precisamente nessa tensão entre obscuridade e transparência, entre impróprio e próprio [uneigentlich und eigentlich], entre a perda já efetiva de si-mesmo e uma eventual recaptura. Nesse conflito existencial, nessa dinâmica ontológica, Heidegger mostra que o momento de mortalidade da existência é revelado como inescapável. A relação com a morte constitui efetivamente o contra-movimento factual que leva o Dasein a modular sua existência na direção da autenticidade. A morte dá ao Dasein essa força contra-gravitacional que o capacita a se afastar da absorção mundana e retornar a si mesmo como si mesmo.

Como pivô existencial da existência do Dasein como tal, a morte tem o poder secreto de derrubar o modo de ser inautêntico em favor de um modo de ser autêntico. Mas até mesmo a morte já está sempre envolvida no cotidiano, em um regime falsificador de compreensão e interpretação. O ser para a morte já está sempre coberto e mascarado na e pela existência decaída. Assim, o ser para a morte como tal traz a marca da dualidade entre os modos inautêntico e autêntico do ser genérico do Dasein. De fato, é somente na medida em que o ser para a morte se modaliza na direção da autenticidade que a existência do Dasein em sua totalidade pode se tornar autêntica. Da mesma forma, o Dasein não pode se permitir ser absorvido pela cotidianidade, ele não pode decair senão na medida em que já se revestiu de seu mais próprio ser-para-a-morte. A condição de possibilidade para a autenticidade genérica do Dasein é, portanto, a autenticação de seu ser-para-a-morte, enquanto o obscurecimento do ser-para-a-morte é a condição da inautenticidade da existência em geral. Para o Dasein, a apropriação de si é, portanto, um surgimento do esquecimento de si, uma forma de despertar para si mesmo, um processo existencial repentino que se torna dinâmico pela relação com a própria morte.

No centro dessa reapropriação, dessa reconversão a si mesmo, está o fenômeno da angústia que, em seu surgimento imprevisto, abre o fato nu da existência do Dasein, o puro Daß de seu ser. Esse “fato perturbador que eu sou” é revelado, em angústia, em relação à morte, que consequentemente intensifica a vida como tal. A presença do ser para a própria morte em sua total abertura não lança uma sombra mórbida ou escura sobre a existência do Dasein, mas intensifica radicalmente o ser-si, na medida em que instiga a aguda descoberta da existência em modo próprio. Assim, a súbita revelação “que eu sou” (uma revelação que começa com a apropriação do ser para a morte) não é uma contemplação teórica de uma presença subsistente, mas uma descoberta concreta de uma ordem afetiva. É primeiramente por meio da angústia que o Dasein descobre seu ser para a morte, seu ser já lançado na possibilidade da morte. Em outras palavras, o Dasein descobre a si mesmo como mortal não por meio de uma percepção cognitiva, mas por meio de um “encontrar a si mesmo” (sich befinden) da Befindlichkeit. Por sua vez, o entendimento interpretado existencialmente não é redutível à contemplação teórica ou à percepção de presenças subsistentes, mas — como a estrutura existencial do Dasein — está na raiz de todo comportamento mais ou menos “noético”, é seu fundamento ontológico oculto. Enquanto o afeto da angústia revela o ser para a morte em seu “já aí”, compreendê-la abre a dimensão da possibilidade inerente a ela. Pois é somente com base na compreensão como existencial que o Dasein pode se comportar em relação à possibilidade da morte como possibilidade. A co-originariedade do afeto e da compreensão é decisiva para a modalização do ser para a morte e da existência genérica do Dasein. Em outras palavras, é somente na medida em que a angústia surge no Dasein que ele pode descobrir seu ser-mortal, que pode então se comportar autenticamente — na compreensão — em relação à possibilidade da morte como possibilidade. Por outro lado, se o Dasein compreende falsamente a possibilidade da morte e a reduz a uma realidade futura, ou seja, “ainda não presente”, mas situada “no futuro”, então essa compreensão (e o discurso que a acompanha) determina simultaneamente seu afeto: a angústia, que originalmente se encontra nas profundezas do Dasein, é consequentemente impedida de surgir, porque quaisquer índices dela são mal interpretados como sinais de medo e removidos com o objetivo de alcançar a “calma soberana”.

O esclarecimento da modalização (autêntica ou inautêntica) das dimensões constitutivas essenciais do ser para a morte (afeto, compreensão, fala) prepara, na verdade, uma iluminação mais radical: trata-se do fundamento último do ser do Dasein, notadamente a temporalidade. O fenômeno da morte é de importância decisiva para trazer à luz a temporalidade como o fundamento existencial original da existencialidade do Dasein. Heidegger mostra que o fenômeno fundamental da temporalidade é o futuro. Entretanto, o futuro original só se torna acessível no ser pela morte autêntica. Consequentemente, o fenômeno da morte atravessa a obra de Heidegger de uma ponta à outra e desempenha um papel estratégico na articulação do projeto da ontologia fundamental.

Nessas condições, é mais fácil entender por que Heidegger insiste na positividade do ser para a morte, apesar de seus críticos que o veem como um “filósofo niilista”. De fato, a morte é um tema que, talvez por sua natureza dramática, teve um grande eco (assim como o tema da angústia) desde o primeiro estágio da recepção de Ser e Tempo  , particularmente nos círculos existencialistas, que de alguma forma negligenciaram a dimensão propriamente ontológica desse tema. Ao mesmo tempo, trata-se de um problema que, se tratado com o rigor que merece, poderia abrir o núcleo mais profundo da análise do Dasein e do projeto ontológico heideggeriano em sua totalidade.


Ver online : Cristian Ciocan


CIOCAN, Cristian. Heidegger et le problème de la mort: existentialité, authenticité, temporalité. Dordrecht: Springer, 2014