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Taminiaux (2002:14-17) – historicidade do Dasein

sábado 12 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

“A possibilidade de que a investigação histórica possa ser útil ou prejudicial à vida baseia-se no fato de que a própria vida é histórica (geschichtlich) na raiz de seu ser, e que, portanto, ela já se decidiu, na medida em que existe de fato por uma historicidade autêntica ou inautêntica”. Nietzsche   (na 2ª Intempestiva) reconheceu, e disse com tanta clareza quanto penetração, o ponto essencial sobre “A utilidade e as desvantagens da ciência histórica para a vida”. Nele, distingue três tipos de investigação histórica: monumental, antiquária e crítica, sem destacar expressamente a necessidade dessa trindade e a base de sua unidade. A triplicidade da investigação histórica é pré-desenhada na historicidade do Dasein, e isso, ao mesmo tempo, torna possível entender até que ponto a investigação histórica autêntica deve ser necessariamente a unidade concreta de fato dessas três possibilidades. A divisão citada por Nietzsche   não deve nada ao acaso, e o início de sua 2ª Intempestiva sugere que ele entendeu mais do que disse.” (396, S.u.Z.  )

Retirei essa citação do § 76, que coroa e recapitula o capítulo do S.u.Z.   dedicado ao problema da história sob o título “Temporalidade e historicidade” (cap. V). Essa citação sugere que a análise de Heidegger no capítulo V nada mais é do que o esclarecimento do que permanece implícito no ensaio de Nietzsche  . Vamos acompanhar um pouco essa análise.

Essa análise ocorre dentro de uma investigação que pretende ser fenomenológica e, portanto, tanto descritiva quanto transcendental, ou seja, preocupada em identificar as condições de possibilidade. Mas o fenômeno que ocupa essa fenomenologia é o ser. É o ser que está em questão. Seinsfrage é específico, pois diz respeito intimamente ao ser que somos. De fato, a compreensão do ser é constitutiva desse ser chamado Dasein, cujo modo de ser é o ser-no-mundo, e não a simples presença-diante, o Vorhandenheit, que é o modo de ser das entidades naturais. A análise fenomenológica das condições transcendentais de possibilidade do ser-no-mundo é o objetivo da análise existencial. As estruturas transcendentais que ela identifica — os existenciais — são reunidas e unificadas no fenômeno da preocupação. Preocupar-se é compreender a si mesmo como algo lançado em sua existência e como um projeto dela. À medida que nos aprofundamos no fenômeno da preocupação, fica claro que ser em direção à morte é o que o determina por si só. E como ser em direção à morte é ser fundamentalmente temporal, verifica-se que é a temporalidade entendida como a temporalização finita do Dasein com um projeto para si mesmo que é a condição de possibilidade da preocupação e, de modo mais geral, da compreensão do ser. É essa temporalização finita que é o único horizonte inteligível do sentido do ser.

O Problema da História em Heidegger (das Problem der Geschichte) faz parte dessa problemática existencial e ontológica. Em cada etapa, essa problemática faz uma distinção entre o autêntico e o inautêntico, o próprio e o impróprio. À primeira vista, e na maioria das vezes, o Dasein não está à altura do que é em seu próprio direito. Na vida cotidiana, a preocupação com a própria finitude se degrada em preocupação com tarefas e objetivos externos.

Esta distinção está presente nas páginas dedicadas ao problema da história. E é com o inautêntico que Heidegger inicia sua análise desse problema.

Em uma alusão mal disfarçada a Dilthey  , Heidegger começa destacando a deficiência ontológica da noção de Zusammenhang des Lebens (coesão da vida) pela qual comumente entendemos a extensão de uma existência entre o nascimento e a morte. Essa noção é deficiente, imprópria e inautêntica porque entende essa extensão como uma sequência de experiências no tempo, uma sequência tal que, a cada vez, apenas o agora, o presente, é real, cercado, por um lado, pelo passado que, não mais existindo, é irreal e, por outro, por um futuro que, ainda não existindo, também é irreal. Conceber a sequência de uma vida dessa forma é atribuir a ela o status de Vorhandenheit, ou seja, o status ontológico de entidades naturais que, de fato, estão sempre no presente e não têm nenhuma relação intrínseca com o passado ou com o futuro. Ora, o Dasein, como mostra a estrutura da preocupação, é tal que se relaciona intrinsecamente tanto com seu nascimento, como um ser lançado à existência, quanto com sua morte, como a finitude de seu projeto de existir. Em suma, a mobilidade de sua existência não é a mudança de uma coisa em um tempo que lhe é indiferente, é uma historicização constitutiva, uma Geschehen que só pode ter como fundamento a temporalidade finita do Dasein. O problema filosófico da história não é, portanto, o do método das ciências históricas, mas o dessa historicização, dessa Geschehen, ou da historicidade, da Geschichtlichkeit, como uma dimensão da constituição ontológica e existencial do Dasein.

O problema filosófico da história é articular fenomenologicamente essa historicidade ontológico-existencial e conquistar essa articulação contra interpretações vulgares e inautênticas da história do Dasein. Entretanto, essa conquista não pode ser uma rejeição pura e simples dessas interpretações vulgares e inautênticas, pois como a existência está em permanente tensão entre o próprio e o impróprio, a temporalização autêntica tem como contrapartida original o tempo dos relógios e calendários.

Mas quais são as características da compreensão vulgar da história? Mais precisamente, uma vez que o verdadeiro problema filosófico é o de Geschehen e Geschichtlichkeit, o que é comumente entendido por história no sentido de res gestae? A história, nesse sentido, é, antes de tudo, o passado, seja um passado que já passou ou um passado que continua a exercer seus efeitos. Mas também é uma sequência de eventos e efeitos que formam uma evolução, seja ascendente ou descendente. Aqui a primazia do passado desaparece, porque é o condicionamento do futuro que é levado em consideração. Mas a história, no sentido usual, também é uma região específica do ser, a região da cultura em oposição à região da natureza. Por fim, a palavra história evoca uma herança, uma tradição recebida. “O que liga esses quatro significados”, diz Heidegger, é que eles se referem ao homem como o “sujeito” dos eventos. Mas a noção de “sujeito” é indeterminada, assim como a noção de evento, da mesma forma que a relação entre esse sujeito e esses eventos permanece indeterminada. É essa indeterminação que Heidegger quer eliminar. E a superação dessa indeterminação só é possível se reconhecermos que o Dasein não se torna histórico por causa dos eventos, mas que, ao contrário, é porque ele é primordialmente histórico em seu ser que os eventos e as circunstâncias se tornam possíveis. Essa historicidade primordial do Dasein — isto é, do ser-no-mundo — pode ser vislumbrada indiretamente ao refletirmos sobre o que chamamos de “antiguidades”, todos os equipamentos e ferramentas que são exibidos em museus. O que torna uma ferramenta antiga um objeto histórico? Não é passado no sentido de ter desaparecido, porque é aí presentemente em uma vitrine. Não é passado no sentido de desgastado, frágil, etc., porque pode muito bem estar em perfeitas condições. Seu caráter histórico está no fato de que o mundo no qual ele se apresentava como utilizável e não como um objeto de contemplação desapareceu. Mas o mundo é existencial. Portanto, o caráter histórico das antiguidades “é fundado no passado do Dasein a cujo mundo elas pertenciam” (SZ  :380). O caráter histórico desses objetos é secundário em relação ao verdadeiro foco da historicidade, que é o Dasein.

A questão, então, é saber em que consiste fundamentalmente a historicidade do Dasein. Uma vez que o ser do Dasein é definido pela preocupação, e a preocupação é fundada na temporalidade própria de uma existência finita, a interpretação filosófica da historicidade é “meramente uma elaboração mais concreta da temporalidade” (SZ  :382). Mas a temporalidade é revelada em sua forma mais adequada ou autêntica como uma função da forma mais adequada ou autêntica de existência. A existência autêntica está na resolução pela qual o Dasein se assume totalmente na medida em que é lançado na existência e em débito com seu próprio poder-ser intrinsecamente mortal. Essa assunção resoluta ocorre sempre de forma factual, ou seja, em relação a uma situação. Esse pressuposto resoluto implica historização — uma Geschehen — melhor ainda, é a raiz da historização autêntica.

De fato, essa suposição, projetada em direção à própria mortalidade, está ligada a uma herança de possibilidades de ser recebida ou transmitida, da qual o Dasein, ao mesmo tempo em que é entregue, entrega-se livremente a si mesmo. Heidegger dá o nome de destino (Schicksal) a essa conjunção de passividade e atividade, de herança e escolha, que de fato ocorre, a cada vez, em relação a uma situação instantânea. Como é sempre com os outros que o Dasein existe de fato, esse destino, que é outro nome para a historicização original do Dasein, é também um Mitgeschehen ao qual Heidegger dá o nome de Geschick.

Toda essa análise é resumida nas seguintes proposições sublinhadas por Heidegger:

“Somente um ser que é essencialmente futural em seu ser, de tal forma que, livre para sua morte e rompendo com ela, pode se permitir ser lançado de volta ao seu Aí facticial, em outras palavras, somente um ser que, como futural, é ao mesmo tempo, tendo sido, pode, ao entregar a si mesmo a possibilidade herdada, assumir seu próprio ser-jogado e ser dotado de uma visão instantânea (augenblicklich) para “seu tempo”. Somente a temporalidade autêntica, que é ao mesmo tempo finita, torna possível algo como o destino, ou seja, a historicidade autêntica.”

Essa é a historicização autêntica.

Mas, como eu disse, todo o empreendimento de Sein und Zeit   é governado pela tensão entre o autêntico (ou próprio) e o inautêntico (ou impróprio). O Dasein como tal é o ser-no-mundo. Ele está autenticamente no mundo ao assumir resolutamente sua mortalidade, ao se preocupar com ela. Mas, na vida cotidiana, ele existe no registro da preocupação com os meios para atingir os objetivos ou com as entidades presentes que o confrontam. Consequentemente, a historicização do Dasein como ser-no-mundo é tanto a historicização do mundo como existencial quanto a historicização do intramundano. Quando falamos da historicização do Dasein, estamos necessariamente falando de um conjunto de fenômenos intramundanos (ferramentas, paisagens, monumentos, instituições, eventos etc.). A historicização inautêntica começa quando o Dasein entende sua própria historicização com base nesses fenômenos intramundanos que não podem deixar de preocupá-lo diariamente. Essa historicização tende a entender o Dasein como um produto de ocasiões, circunstâncias e eventos, em suma, com base no que acontece diariamente. Essa historicização, longe de entender o passado como uma possibilidade, entende-o, a partir do presente, como algo “obsoleto e não moderno”. De modo mais geral, entende a história como uma sucessão de fenômenos intramundanos que se substituem uns aos outros e que são remetidos a cada vez a essas experiências, que por sua vez dão lugar a outras experiências.

No final dessa análise, encontramos a crítica de Nietzsche   ao positivismo e, de modo mais geral, à sua variante historicista. Como Nietzsche  , Heidegger acredita que a historiografia só vale a pena se, em sua relação com o passado, ela ajudar “a retomada ou repetição (Wiederholung) de possibilidades autênticas de existência”.


Ver online : Jacques Taminiaux


TAMINIAUX, Jacques. "Phénoménologie et histoire", in Pascal Dupond et Laurent Cournarie, Phénoménologie: un siècle de philosophie. Paris: Ellipses, 2002