O segundo sentido da palavra [mundo], desta vez ontológico, refere-se aos domínios nos quais, ou aos esquemas ou estruturas de acordo com os quais, entidades de vários tipos podem ser consideradas como sendo. Husserl distingue, da mesma forma, várias “eidéticas regionais” ou “ontologias regionais” apropriadas a tipos de entidades essencialmente diferentes (Ideen 19-10). ’Mundo’, nesse sentido, diz Heidegger, “funciona como um termo ontológico e significa o ser das entidades citadas no número 1”, ou seja, no sentido ôntico anterior (SZ 64), de modo que, por exemplo, “ao falar sobre o ‘mundo’ do matemático, ‘mundo’ significa a região dos possíveis objetos da matemática” (SZ 64-5). Como exemplo desse entendimento de mundo, Heidegger se refere ao antigo conceito grego de kosmos, que ele interpreta como significando a ordem geral ou condição inteligível de todas as coisas, à medida que elas se unem em um todo coerente, de modo que kosmos “não significa nada como todas as entidades juntas; não significa de modo algum as próprias entidades; não é um nome para elas. Em vez disso, kosmos significa ’condição’ (Zustand), kosmos é o termo para o modo de ser, não para os entes em si” (GA26 :MAL 219) [1]. Assim também, como acabamos de ver, enquanto Heidegger se refere à totalidade dos entes ocorrentes como ‘o real’, ele reserva o termo ‘realidade’ (Realität) para o modo de ser do real: ‘Se concedermos a essa palavra seu significado tradicional [2], então ela significa ser no sentido da pura ocorrência de uma [mera] coisa (pura Dingvorhandenheit)’ (SZ 211). Consequentemente, embora a realidade como categoria ontológica dependa da compreensão do ser do Dasein, o real não depende. Mais uma vez, “o fato de a realidade estar fundamentada ontologicamente no ser do Dasein não pode significar que o real só poderia ser, como o que é em si mesmo, se e enquanto o Dasein existir” (SZ 211-12).
Essa concepção ontológica de mundo também não é diferente da noção de Carnap de sistemas teóricos ou estruturas linguísticas pressupostas por sentenças sobre entidades de algum tipo, abstratas ou concretas. As perguntas sobre entidades são internas ou externas às estruturas nas quais nos referimos a elas, de modo que uma afirmação de que existem entidades de um determinado tipo — objetos físicos, números, proposições, propriedades — será interna a um sistema e, portanto, analiticamente verdadeira, ou externa e, portanto, apenas uma questão prática da utilidade do próprio sistema. Carnap pretendia que essa abordagem acabasse de vez com as questões metafísicas gerais sobre entidades, uma vez que tais questões não pretendem ser nem internas e simplesmente analíticas, nem meras questões externas de política linguística. [3] No entanto, a própria ideia de que as línguas podem constituir sistemas ou estruturas é, em si, uma ideia metafísica, e Heidegger diria que um discurso como o de Carnap, referindo-se livremente a tais sistemas ou estruturas, é um discurso sobre mundos exatamente nesse sentido ontológico.
A noção ontológica de mundo tem ainda mais em comum com o relato de Thomas Kuhn sobre “paradigmas” práticos e teóricos na história da ciência. O uso que Kuhn faz do termo “paradigma” em The Structure of Scientific Revolutions é notoriamente ambíguo; de fato, como veremos, sua noção se aplica mais diretamente ao terceiro sentido de “mundo” de Heidegger. O que nos interessa aqui, entretanto, é sua ideia de que as estruturas ou normas de compreensão não são apenas parte integrante da prática da ciência, mas “também são constitutivas da natureza”. [4] Há um sentido, isto é, em que as mudanças fundamentais nos padrões normativos da prática científica não apenas efetuam transformações na própria ciência, mas também podem ser consideradas como “transformadoras do mundo”. [5] Para Kuhn, “as mudanças de paradigma fazem com que os cientistas vejam o mundo de forma diferente. Na medida em que seu único recurso para esse mundo é o que eles veem e fazem, podemos dizer que, após uma revolução, os cientistas estão respondendo a um mundo diferente”. O treinamento científico não é apenas o acúmulo de conhecimento, mas envolve ver as coisas de forma diferente e “somente depois de várias dessas transformações de visão é que o aluno se torna um habitante do mundo do cientista”. [6]
Mas essas transformações gestálticas dos mundos não equivalem necessariamente a alterações ou substituições de entidades. O sentido de “mundo” que Kuhn tem em mente nessas passagens, portanto, não é claramente o sentido ôntico, ou seja, a mera soma total de entidades. De fato, ele invoca a noção ôntica mais tarde, embora sem explicitar a distinção, quando escreve: “mudanças desse tipo nunca são totais. O que quer que ele possa ver, o cientista após uma revolução ainda está olhando para o mesmo mundo”. [7] O mundo ôntico, o mundo das entidades, permanece o mesmo, diria Heidegger; o mundo ontológico, o mundo entendido como a ordenação inteligível dessas entidades como os tipos de entidades que são, mudou.