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Borges-Duarte (2024) – o que é estar em casa?
quarta-feira 23 de outubro de 2024
A presente reflexão, em resposta ao convite de Elza Dutra, nasceu do cruzamento de um projecto, ainda inacabado, sobre o habitar, e da situação de reclusão provocada pela pandemia, que todos vivemos, há tão pouco tempo. Alimentou-se da meditação do último Heidegger e de alguns poetas, cuja leitura é como estar em casa. Mas procura pensar, num quadro existencial, o que é sentir-se ou não se sentir em casa, estar ou não estar numa situação de conforto, em que a familiaridade com o que nos rodeia e temos à vista ou à mão permite a sensação de segurança, que toma natural o viver, justamente porque passa desapercebido o risco que, contudo, é uma constante à espreita e um convite a estar alerta para a própria vulnerabilidade. No fio da navalha, o viver subsiste em perplexidade e em guarda. Mas na habitualidade do quotidiano, as certezas abafam a precariedade do sentido e criam a ilusão, engrandecida pelo nível civilizacional, de omnipotência. Só a estranheza repõe a condição humana, quer dizer: põe-na no seu sítio. No entanto, na experiência do dia a dia, esse sentimento de estranheza perturba a fluidez do viver e, por isso, é percebido por nós e pelos outros, que nos servem de espelho, como um estar à beira do doentio, obrigando ao disfarce, ao fingimento quotidiano, ante nós mesmos. Ou a aceitar o olhar social e a procurar que nos livrem da inóspita ansiedade. Na dialéctica da existência, cuidamos as vestes de que revestimos a nossa própria pele, para poder sentir-nos em casa, onde quer que estejamos. Mas, com isso, esquecemo-nos do que, na verdade, é estar em casa.
Alice Holzhey-Kunz (2021), num livro notável, chama “escuta aguçada para a verdade emocional” ao fenómeno que padecem aqueles que não são capazes desse esquecimento e, portanto, permanecem algidamente alerta para esse seu fingimento continuado, sem poder parar de sentir-se fora de lugar, desterrados do que o poeta Ruy Belo (1990: 298 e 299) chamava a “terra da alegria” e descrevia com poética precisão:
Não me demoro ou moro em sítio algum já nada significam as palavras neste deserto onde vigilo e estou desperto terrivelmente só dentro da noite.
Binswanger , sem codificar, analisou alguns comportamentos desse tipo como formas de vida “malograda” (missgelungen). Já o DSM2, no seu ímpeto normalizador, cada vez mais pormenorizado, cataloga o maior número possível de “perturbações mentais” em função da sua definição como modalidades patológicas diagnosticáveis e medicamente tratáveis. Eu vou-me limitar a dedicar alguma atenção à fenomenologia do sentir-se ou não se sentir em casa, como manifestação ôntico-ontológica da co-pertença ou relação aí-ser, usando a linguagem heideggeriana , sem me confinar a ela. Defenderei que não é meramente um sentimento, mas uma modalidade afectiva de compreender-se como o estar a ser humano, na afeição em que se joga o espaço-tempo do mundo. Um fenómeno total, portanto — não meramente mental, decerto, nem perturbado —, para o qual nem sempre aguentamos estar despertos, preterindo a acuidade da escuta ao adormecimento da atenção.
Como quase sempre, é na sua falta, na percepção — talvez ainda confusa — do nascente fracasso existencial, que se denuncia. Ou na recusa decidida — e potencialmente salvadora — de um estar, que não é tal. Por aí começarei o presente caminho. Mas é à sensação de cabimento ontológico, se não pleno, pelo menos alcançado e gozoso, que gostaria de chegar.
Ver online : O que é estar em casa? Fenomenologia da perplexidade da existência em risco.