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Zarader (2000:224-225) – espírito [Geist]
quarta-feira 30 de outubro de 2024
[Derrida ] Mostra como Heidegger, após ter retrocedido do spiritus para o pneuma, acaba (no texto de 1953) por transpor os limites do próprio pneumático no sentido do fogo: nesse fogo do espírito, Derrida reconhece «o caminho da delimitação ou da partilha que teria de passar segundo Heidegger, por uma determinação grega ou cristã, ver onto-teológica, do pneuma ou do spiritus, e um pensamento do Geist que seria outro e mais originário. Retirado do idioma alemão, Geist levaria a pensar, mais cedo na chama» [1]. Derrida levanta então o problema do espírito, simultaneamente original/derivado e a deslocação ao longo da obra da essência dita original. Se primeiro ela se apresenta como retorno ao vocábulo grego aquém das interpretações derivadas (nomeadamente latina e cristã), torna-se depois transposição do grego para o alemão. Não por essa «dissimetria» [2] que vem interromper a «parelha» [3] grego-alemão esteja explicitamente sublinhada por Heidegger; mas é cumprida por ele. E a razão pela qual Derrida sente-se autorizado a soltar o plano, e a apresentá-lo como irredutível: «O alemão é então a única língua, afinal de contas, que pode nomear esta excelência máxima ou superlativa (geistigste) que, em suma, só partilha até certo ponto com o grego. Em última instância, é a única língua na qual o espírito acaba por se nomear a si próprio [4].»
Mas se Derrida insiste, após Heidegger na diferença que separa as duas aproximações do espírito, ele não omite sublinhar que esta diferença, por mais radical que seja (porque não se trata aqui de nada de menos do que a distância entre o ar e o fogo) seja reenviada por Heidegger — tal como já o vimos em todos os outros casos estudados — a um elo de derivação·. «Heidegger não rejeita simplesmente a determinação do espírito enquanto spiritus e pneuma (…); deriva-a sobretudo, afirma a dependência do sopro, do vento, da respiração, da inspiração, da expiração e do suspiro face à chama. É por a Geist ser chama, que há pneuma e spiritus. Mas o espírito não é primeiro, não é oríginariamente pneuma e spiritus [5].»
Assim, a chama «última resposta» [6] de Heidegger em 1953, à questão «O que é o espírito?» é a essência originária finalmente atingida — embora reconhecida como ainda não estando aberta na [224] inauguração grega do pneuma. «Origem antes da origem» [7], é a «inicialidade mais que primaveril, a que vê da ante-vigília» [8].
Assim, é o primeiro gesto cumprido por Derrida : o relembrar do percurso heideggeriano ou ainda — e isto é mais do que um recordar, e talvez muito mais ainda do que um percurso — o levantamento minucioso de um plano. Aquele que compõe por vezes discretamente, os movimentos complexos do texto heideggeriano relativamente à questão do espírito. Mas esse primeiro gesto é inseparável de um segundo: não se limitando a actualizar um plano deste tipo, Derrida faz aparecê-lo no seu carácter problemático.
[ZARADER , Marlène. A Dívida Impensada. Heidegger e a Herança Hebraica. Lisboa: Instituto Piaget, 2000]
Ver online : Marlène Zarader
[1] Ibid., p. 129. As formulações de Derrida comportam porém uma parte de ambiguidade. Heidegger acaba por se distanciar da determinação «ontológica» do pneuma ou do seu significado «grego»? A questão não é anódina. O que aqui se joga, é toda a diferença entre uma concepção (derivada) e um significado (abrigado na língua). Justapondo frequentemente as duas ordens de qualificação. Derrida parece não separar a questão de saber se Heidegger se destaca de um pensamento ou de um impensável. Na realidade, distingue: visto que reconhece na aproximação heideggeriana do espírito uma passagem além do próprio grego («a língua grega não tem palavra para dizer Geist» — p. 112), opta pela segunda solução. Mas formula-a às vezes em termos que poderiam evocar a primeira. E verdade que esta ambiguidade é também — e primeiro — a de Heidegger.
[2] Ibid., p. 112.
[3] Ibid., p. 113.
[4] Ibid. Mais longe, quando Derrida se esforça de juntar, de forma recapitulativa os diferentes traços característicos da essência do espírito, tal como é ultimamente pensada por Heidegger, enuncia como «segundo traço» (p. 157): «Neste movimento, o recurso à língua parece irredutível. Parece fazer depender a semântica do Geist de um “significado originário” (ursprüngliche Bedeutung) confiado ao idioma alemão gheis.»
[5] Ibid., p. 157., também, p. 163.
[6] Ibid., p. 131.
[7] Ibid.
[8] Ibid., p. 144.