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Agamben (2015:160-165) – Ereignis e Absoluto

sexta-feira 11 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Heidegger aproximou várias vezes o pensamento do Ereignis ao Absoluto hegeliano. Essa aproximação — indício, certamente, de uma vizinhança que para o próprio autor constituía um problema — tem sempre a forma de um distanciamento que tende a sublinhar as diferenças, mais do que os traços comuns. Já no curso de 1936 sobre Schelling  , Heidegger escreve que o Ereignis “não é idêntico ao Absoluto, e tampouco é sua antítese, no sentido em que a finitude se opõe ao infinito. Com o Ereignis, pelo contrário, o próprio ser é experimentado como tal, não é posto como um ente, e muito menos como o ente incondicionado por excelência…”. No seminário sobre a conferência Tempo e Ser (1962), proximidade e diferença se tornam ainda mais explícitos. “Partindo da conferência”, escreve Heidegger,

onde se mostra que o ser é apropriado (ereignet) no Ereignis, poder-se-ia ser tentado a comparar o Ereignis como o último e o mais alto ao Absoluto de Hegel  . Mas por trás dessa aparência de identidade dever-se-ia, por sua vez, perguntar: como é, em Hegel  , a relação do homem com o Absoluto? E: de que gênero é a relação do homem com o Ereignis? Aqui surgiría uma insuperável diferença. Na medida em que, para Hegel  , o homem é o lugar do advento do Absoluto a si mesmo, isso conduz à abolição (Aufhebung) da finitude do homem. Para Heidegger, pelo contrário, é precisamente a finitude — e não só a do homem, mas também a do próprio Ereignis — que deve se tornar visível (GA14  :Sache, 53). [1]

Também no Ereignis, como no Absoluto, está em questão o acesso a um próprio (eigen); e, também aqui, o ingresso do pensamento no próprio, no *se, na simplicidade do idios e do ethos, é, paradoxalmente, a coisa mais difícil de pensar. Também aqui, esse mais difícil de pensar se apresenta como “a chegada de um ter-sido [Ankunft des Gewesen]” (GA12  :Sprache, 154). Em Tempo e Ser, o Ereignis é definido como a apropriação recíproca, a copertença (das Zusammengehören) de tempo e ser (GA14  :Sache, 20), enquanto em Identidade e Diferença, o ser e o homem são conduzidos ao que lhes é próprio (GA11  :Ident., 26).

Em todo caso, nos excertos citados anteriormente, o elemento decisivo na caracterização do Ereignis em relação ao Absoluto hegeliano é, porém, a finitude. Já nas lições sobre a Fenomenologia do espírito, de 1930-31 [GA32  ], Heidegger identificava a essência do Absoluto como “in-finita absolvição [un-endliche Absolvenz]”, e o seminário sobre Tempo e Ser [GA14  ] confirma essa interpretação do hegelianismo no sentido de uma Aufhebung da finitude do homem. Nós vimos, todavia, que justamente em relação ao Absoluto é problemático se, e em que sentido, se pode falar em Hegel   de uma infinitude, sem introduzir, ao mesmo tempo, o tema do fim da História. Só um esclarecimento do que Heidegger entende aqui por “finitude” poderá permitir-nos, portanto, medir a distância — ou a proximidade — de Ereignis e Absoluto.

Ora, é o próprio Heidegger, no final do seminário sobre Tempo e Ser, quem precisa o sentido dessa finitude:

A finitude do Ereignis, do ser, do Geviert a que nos referimos ao longo do seminário, diferencia-se daquela [isto é, a finitude do ser de que Heidegger falava no livro sobre Kant  ], na medida em que ela já não é pensada a partir da relação com a infinitude, mas como finitude em si mesma: finitude, fim, limite, o Próprio-ser a salvo no Próprio. É nesta direção — isto é, a partir do próprio Ereignis, do conceito de propriedade — que é pensado o novo conceito de finitude (Sache, 58).
 
Decisiva, também aqui, é, pois, a ideia de um fim, de um cumprimento, de um morar, por fim, no próprio. O pensamento que pensa a finitude em si mesma, sem jamais se referir ao in-finito, é pensamento do finito como tal, isto é, do fim da história do ser:
 

Se o Ereignis não é uma nova cunhagem [Prägung] do ser, mas se, pelo contrário, o ser pertence ao Ereignis, onde ele (sempre, de alguma maneira) é retomado, então para o pensamento no Ereignis, isto é, para o pensamento que mora no Ereignis — na medida em que, através dele, o ser, que repousa no destino, já não é propriamente o que tem de ser pensado — a história do ser terminou [ist… zu Ende]. Então o pensamento está n’Aquilo e diante d’Aquilo (Jenem), que destinou as diversas figuras do ser epocal. Mas isso, o que destina como Ereignis, é ele próprio não histórico, ou melhor: sem destino [ungeschichtlich, besser geschicklos].

 
A metafísica é a história das cunhagens do ser, isto é, vista a partir do Ereignis, a história do subtrair-se do destinante em favor das destinações, dadas no destinar, de um a cada vez deixar-vir-à-presença o ente-presente. A metafísica é o esquecimento do ser, isto é, a história do ocultamento e da subtração do que dá o ser. A morada do pensamento no Ereignis é portanto sinônimo do fim dessa história do subtrair-se. O esquecimento do ser “suprime-se” [“hebt” sich “auf”] com o despertar-se no Ereignis.
 
O ocultamento, porém, que pertence como limite à metafísica, deve tornar-se próprio ao Ereignis. Isso significa que a subtração, que caracterizava a metafísica na figura do esquecimento do ser, mostra-se agora como a dimensão do próprio ocultamento. Só que agora esse ocultamento não se oculta, pelo contrário, a atenção do pensamento se volta para ele.
 
Com o fato de o pensamento morar no Ereignis, ocorre pela primeira vez o modo do ocultamento próprio do Ereignis. O Ereignis é em si mesmo expropriação [Enteignis], em cuja palavra é retomada, segundo o Ereignis, a lethe greco-arcaica, no sentido do ocultamento.
 
A ausência de destino do Ereignis não significa, portanto, que lhe falte toda “e-moção” (Bewegtheit). Ela quer dizer, antes, que o mundo da e-moção mais próprio ao Ereignis, o voltar-se no subtrair-se, mostra-se ao pensamento como o que se deve pensar. Mas, assim, o que é dito é que, para o pensamento que mora no Ereignis, a história do ser como o que se deve pensar chegou ao fim (Sache, 44).

Só uma reflexão que se confrontou a fundo com a letra dessa passagem tornará possível uma compreensão do Ereignis — tal como só um pensamento que tenha realmente arriscado uma interpretação das últimas páginas da Ciência da lógica podería legitimamente reivindicar um confronto com o pensamento de Hegel  . Com efeito, o que pode ser um destino que já não se subtrai no que é destinado, um ocultamento que já não se oculta, antes se mostra ao pensamento como tal? E o que quer dizer que a subtração, que “caracterizava a metafísica na figura do esquecimento do ser”, mostra-se agora como a “dimensão do próprio ocultamento”? Que o Ereignis é Enteignis? Que significa pensar o ocultamento (a lethe) como tal? O que se mostra agora por aquilo que era, isto é, como o puro e absoluto esquecer-se do ser, senão o que aparecia na metafísica como esquecimento do ser (no sentido de um genitivo objetivo: o homem esquece o ser)? Não há, aqui, algo (o ser) que sucessivamente se esquece e se oculta (não há um nome que se subtrai destinando-se em instâncias de discurso); em vez disso, ocorre aqui só um movimento de ocultação, sem escondido nem esconderijo, sem velado nem véu: puro destinar-se sem destino, simples abandonar-se a si.

Isso apenas pode querer dizer que “a história do ser chegou ao fim”, que o Ereignis é o lugar da “despedida do ser e do tempo” (Sache, 58): o ser não destina mais nada, esgotou suas figuras (as figuras de seu esquecimento) e se mostra agora como o puro destinar sem destino nem figura. Mas, ao mesmo tempo, esse puro destinar sem destino surge como o Próprio do homem, em que ser e homem se alcançam um ao outro (“Menschen und Sein einander in ihrem Wesen erreichen” — Ident,. 26). Aquilo (Jenes), no qual e perante o qual está, por fim, o pensamento, como naquilo e diante daquilo que “destinou as diferentes figuras do ser epocal”, não é, pois, algo do qual se possa dizer que é, nem sequer na forma de um es gibt. Es gibt Sein, es gibt Zeit; mas o Es em si mesmo, em seu próprio, não denomina nenhuma entidade lexical, não indica nada de existente e de nomeável. O que o pensamento tem aqui a pensar não é mais a tradição ou a história — o destino — (por isso, aqui, a interpretação hermenêutica de Heidegger encontra seu limite), mas antes o próprio destinante: mas isso — o Próprio — é o puro abandonar-se a si do que não tem propriedade nem destino, pura as-sue-tude [as-sue-fazione] e hábito. Como escreve Heidegger no final do Curso de 1930-31 sobre a Fenomenologia do espírito, no ponto em que chega a formular de modo, para ele, mais radical, em uma pergunta, sua distância em relação a Hegel  : “Deve e pode verdadeiramente o homem, como passagem [Übergang], distanciar-se de si mesmo, para se abandonar como finito, ou não é antes sua essência precisamente o próprio abandono [Verlassenheit], no qual, somente, tudo o que pode ser possuído se torna para ele possuído?” (Hegels, 216).

O mais próprio, o ethos, o *se do homem — do vivente sem natureza nem identidade — é, portanto, o próprio daimon, o puro movimento sem destino que consiste em atribuir uma sorte e um destino, o absoluto transmitir-se sem transmissão. Mas esse abandono de si a si é precisamente o que destina o homem à tradição e à história, ficando nelas escondido, o infundado que vai ao fundo em todo fundamento, o sem nome que, como não dito e intransmissível, transmite-se em todo nome e em toda transmissão histórica.


Ver online : Philo-Sophia


AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Ensaios e conferências. Tr. Antônio Guerreiro. Belo Horizonte: Autêntica, 2015


[1As obras de Heidegger são citadas com as seguintes abreviaturas, seguidas do número de página: Sache (= Zur Sache des Denkens. Tubingen: Niemeyer, 1976); Ident. (=ldentität und Differenz. Pfullingen: Neske, 1957); Hegels (= Hegels Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main: Klostermann, 1980. v. 32 da Gesamtausgabe)·, Sprache (= Unterwegs zur Sprache. Pfullingen: Neske, 1959); SuZ (= Sein und Zeit. Tubingen: Niemeyer, 1972); Nietzsche (= Nietzsche. Pfullingen: Neske, 1961).