Tomemos como exemplo a frase: “O homem lava o carro”. Nessa frase “o homem” é sujeito, “o carro” é objeto e “lava” é predicado. O sujeito “o homem” irradia o predicado “lava” em direção ao objeto “o carro”. A frase tem, portanto, a forma (Gestalt) de um tiro ao alvo. O sujeito (“o homem”) é o fuzil, o predicado (“lava”) é a bala, o objeto (“o carro”) é o alvo. Podemos ainda visualizar a situação comparando-a com uma projeção cinematográfica. O sujeito (“o homem”) é o projetor, o predicado (“lava”) é a imagem projetada, o objeto (“o carro”) é a tela de projeção. Creio ser de suma importância para a compreensão do intelecto a visualização da forma (Gestalt) da frase. Os psicólogos comparativos afirmam, ao tentar explicar o mundo efetivo das aranhas, que esse mundo se reduz a acontecimentos que se dão nos fios da teia. Acontecimentos que se dão nos intervalos entre os fios da teia não participam do mundo efetivo (“real = wirklich”) da aranha, mas são potencialidades, são o vir-a-ser da aranha. São o fundo inarticulado, caótico, “metafísico”, de uma aranha filosofante. A aranha-filósofo afirma, nega ou duvida dos acontecimentos metateicos, a aranha-poeta os intui, a aranha-criador se esforça por precipitar tudo sobre os fios da teia, para tudo compreender e devorar, e a aranha-místico se precipita para dentro dos intervalos da teia para, numa união mística, [46] fundir-se no tudo e libertar-se das limitações da teia. A aranha é um animal sumamente grato à psicologia comparativa, porque dispõe de uma teia visível. Os demais animais, inclusive o homem, devem contentar-se com teias invisíveis. A teia do homem consiste em frases. A forma (Gestalt) da teia humana é a frase. Visualizando a frase, estaremos visualizando a teia do mundo efetivo, real, wirklich para o homem, estaremos visualizando a estrutura da “realidade”.
Detenhamo-nos, mais um instante, na aranha. O que acontece nos fios da teia? Acontecem moscas, outras aranhas, e catástrofes que rasgam os fios. E no centro da teia, acontecimento inalcançável teicamente, a própria aranha secretora da teia e dona da teia, livre de deslocar-se ao longo dos fios para devorar moscas, copular com outras aranhas, combater outras aranhas e consertar estragos introduzidos na teia por catástrofes. Podemos, portanto, distinguir, basicamente, as seguintes modalidades ontológicas, as seguintes formas do Ser: mosca, outra aranha, catástrofe destruidora, e, com toda a sua problemática teica, a própria aranha. A aranha civilizada no sentido ocidental tenderá a menosprezar a diferença entre mosca e outra aranha, considerando a outra aranha como uma espécie de mosca, tenderá a explicar as catástrofes destruidoras da teia como sendo supermoscas que não podem ser suportadas pela teia (provisoriamente, já que a teia cresce e se fortifica e acabará suportando moscas de todo tamanho), e tenderá a considerar o mundo [47] metateico como um reservatório, um vir-a-ser de moscas. A aranha-materialista ensinará que a mosca é a tese e a própria aranha, a antítese do processo dialético que se desenvolve nos fios da teia, e será alcançada a última síntese quando a própria aranha tiver devorado todas as moscas.
A aranha hegeliana afirmará que a aranha pressupõe a mosca e que o processo dialético é uma progressiva aracnização do mundo moscal, portanto fenomenal, e que, assim, o devorar da mosca equivale à realização da mosca. A mosca devorada sendo a mosca realizada é a última síntese, a total realização, por aracnização, das moscas. A aranha heideggeriana considerará a mosca a ser devorada como a condição (Bedingung) da situação aranhal, e o cadáver da mosca já chupada como testemunho (Zeug) da passagem da aranha pelo mundo moscal. Esses três tipos de especulação ocidental, e outros semelhantes, são caracterizados por um aracnismo extremo, já que aceitam a teia como fundamento da realidade sem discutir a própria teia. O aracnismo é inevitável para as aranhas, mas a discussão da teia é aranhamente possível. Essa discussão torna viável uma visão mais apropriada não somente da mosca, mas da própria aranha.
Voltemos à teia humana, exemplificada na frase “o homem lava o carro”. Indiscutivelmente a situação é mais complicada do que na teia da aranha. Acontecem nela palavras (“moscas”) de tipos diversos, a saber: sujeito, predicado e objeto. Não [48] obstante, o paralelo pode ser mantido. O nosso mundo efetivo, real, wirklich, se esgota em palavras de um daqueles tipos diversos. O resto é o mundo caótico, inarticulado do vir-a-ser, que nos escapa pelas malhas da nossa teia, intuível talvez poética ou misticamente, mas realizável tão somente em palavras organizadas de acordo com as regras da nossa teia. Para ser real, tudo precisa assumir a forma de sujeito, ou objeto, ou predicado de uma frase. Aquilo que Wittgenstein chama de Sachverhalt, isto é, o comportamento das coisas entre si, e aquilo que Heidegger chama de Bewandnis, isto é, o acordo existente entre as coisas, não passa da relação entre sujeito, objeto e predicado. O nosso mundo das coisas reais, isto é, a teia das nossas frases, é organizado, é um cosmos, é um Sachverhalt e tem uma Bewandnis, porque são assim construídas as nossas frases. E evidente que cada língua particular, se for do tipo flexionai, tem uma construção de frases ligeiramente ou mais que ligeiramente diferente. Portanto a cada língua particular corresponde um Sachverhalt e uma Bewandnis diferentes, um cosmos diferente. O que estamos discutindo no curso destas considerações é, sensu stricto, o cosmos que corresponde à língua portuguesa. Dado o parentesco estrutural entre as línguas flexionais, pode ser aplicado, com certas reservas, a todos os cosmoi das línguas flexionais.
Tentando visualizar a forma da frase, estamos, com efeito, tentando visualizar o cosmos da nossa realidade, estamos investigando o Sachverhalt real e [49] procurando saber que Bewandnis tem. Se visualizamos a frase como um tiro ao alvo ou como uma projeção cinematográfica, estamos, com efeito, visualizando assim o nosso cosmos. Ao dizer que a frase consiste em sujeito, objeto e predicado organizados entre si em forma de um projeto comparável ao tiro ou à projeção, estamos dizendo, com efeito, que a nossa realidade consiste em sujeitos, objetos e processos assim organizados. A análise lógica da frase é uma análise ontológica da realidade.
Assim como se comportam as palavras dentro da frase “o homem lava o carro”, assim se comportam as coisas na realidade. Toda investigação ontológica deveria, portanto, partir da análise da frase. Como a aranha deveria considerar a sua teia antes de qualquer consideração de moscas, se quiser evitar um aracnismo ingênuo, assim devemos considerar, antes de mais nada, a estrutura da frase, se quisermos evitar a atitude ingênua chamada “humanismo” em nossos dias. Essa estrutura nos é dada pela língua dentro da qual pensamos tão irrevogavelmente quanto é dada a teia no caso da aranha. Querer fugir da estrutura da realidade em sujeito, objeto e predicado é querer precipitar-se, num suicídio metafísico, para dentro das malhas da nossa teia. Uma realidade consistente somente em sujeitos (loucura parmenideana), ou somente em objetos (loucura platônica), ou somente em predicados (loucura heracliteana), é exemplo dessa fuga suicida. Por incômoda que possa ser, devemos aceitar a tríplice [50] ontologia como um dado imposto pela língua. O resto é metafísica, portanto, silêncio.