É tempo, afinal, portanto, de interrogar mais precisamente esta posição de Heidegger.
Pois trata-se, a princípio, de uma posição: pura evocação, se assim se preferir, puro “apelo”; mas nada aparentemente que se assemelhe a um uso, isto é, a uma leitura. De fato, apenas evocado o filosofema heideggeriano o “homem no sendo” (Escritos, 527), se Lacan descarta toda e qualquer referência doutrinal àquilo a que chama pejorativamente de “heideggerianismo”, não é, contrariamente, ao que ele declara, ou nome de uma “reflexão” que deveria (ou que poderia) de imediato encetar-se, mas simplesmente colocar o nome de Heidegger, isto é, o próprio Heidegger, como aquele de quem é preciso “falar”, porque é ele que, de maneira exemplar, fala:
Quando falo de Heidegger ou, melhor, quando o traduzo, esforço-me por não subtrair, à palavra que ele profere, sua significância soberana. (E. 528)
Verdade é que tal declaração refere-se tão simplesmente à tradução dada por Lacan no primeiro número de la Psychanalise (1956) do texto de Heidegger intitulado Logos [1]. Pelo mais (e neste lugar), elas mesmas, esta publicação e esta tradução, não são indiferentes ou desprezíveis. Mas, acima de tudo, não é indiferente — isto é o que de menos se pode dizer — que seja exatamente esta significância que o texto procurará produzir em todo seu decorrer, e da qual, liberada de repente em sua “soberania”, se diga pertencer à “fala” heideggeriana . Estranho deslocamento do tema para um texto tutor. Dir-se-á ser, evidentemente, uma maneira de não ler esta fala, de evitar ou recursar-se a lê-la (mas, aliás, a fala pode ela ser lida). Poder-se-á igualmente dizer que existe [143] alguma leviandade (ou habilidade demais) em passar assim, de maneira fulgurante, de um plano ao outro e em resolver “milagrosamente” toda dificuldade da significância numa invocação, por mais pura que seja. Mas, se há, aqui, algo de um movimento desse tipo, trata-se, de qualquer forma, de um remate, de uma solução (onde pára e fixa-se toda a extensão diferida do texto), nada impede que seja, também — pela última vez, sem dúvida, e como se, paradoxalmente, se pudesse tocar-lhe o fundo — a necessária repetição deste abismamento que, como se viu, governa o texto todo de Lacan em sua estrutura e em seus mais marcados efeitos. Para este caso, o texto poderia bem apresentar-se, afinal de contas, como a maquinação de um longo encadeamento metonímico do qual Heidegger seria o último nome — e Logos a última palavra ou, caso se prefira, a palavra-mestre.
Esta é, aliás, a razão pela qual não se deve esquecer de que seja feita, aqui, referência ao texto Logos — e à sua tradução. Isto é, de fato — mesmo que implicitamente ou por alusão — aos conceitos de logos e de tradução. Pois a própria significância não é estranha a nenhum dos dois: talvez só seja pensável, mais exatamente, a partir desta relação enigmática que logos, como tal, sempre manteve com a ideia de tradução. É, sem dúvida, arriscado pretender, sem mais precauções, que a questão do logos (digamos, sem delongas, do ser e do sentido ou do ser como sentido) tenha sido sempre compreendida numa economia geral da troca, da equivalência, da adequação — numa espécie de sistema, menos simples, aliás, do que parece, do traduzível e do intraduzível, da transparência e do obstáculo. Pode-se, no entanto, pelo menos, relembrar, por ora, que é justamente esta questão da tradução que perpassa, e como uma das questões fundamentais de sua própria constituição, o conjunto do texto heideggeriano. Isto não pode deixar-se implicar, por sua vez, na tradução de Logos [144] por Lacan — ainda mais que Logos é, como se suspeita, um desses textos ocupados totalmente por um (pelo) problema de (da) tradução. Ora, sabe-se que é exatamente este problema (em sua ambivalência) que obriga Heidegger a pulverizar, por um lado, a tradução do termo mesmo (e, aliás, em nome da palavra de Heráclito que o porta e que efetivamente, de início, trata-se de traduzir) e, por outro lado e acima de tudo, a neutralizar tal pulverização ou este estilhaçar-se, deixando simplesmente não traduzido o termo. Consequentemente, quando “ele deixa à fala” de Heidegger “sua significância soberana”, Lacan preserva igualmente este suspenso da tradução; e, em traduzindo, é o intraduzível que ele traduz. Ou, pelo menos, é preciso supor, no final do percurso, que a tradução erige definitivamente (absolutamente?) como intraduzível o logos assim retomado do texto heidcggeriano. E é, aliás, para respeitar esta segunda ambivalência que falaremos, doravante, da (in)tradução de Heidegger.
Mas traduzir é, também, o trabalho que se tem de realizar sobre Freud . Aliás, como se pode recordar, isto começa por traduzir Traumdeutung por Significância do sonho (E. 510). É claro que, aqui, traduzir quer dizer, a princípio, como no que diz respeito ao texto de Heidegger, traduzir do alemão. Sabe-se, no entanto, que na inocência aparente (ou relativa) do gesto residia, de fato, toda a dificuldade do que pudemos chamar de a (in)articulação do texto, e que resulta um dever traduzir, dentro da conceitualidade lingüística (ela mesma já trabalhada por Freud ), o conjunto da conceitualidade freudiana levada em consideração. Ora, em sua circularidade mesma, esta prática da tradução reproduz efetivamente, mutatis mutandis, a prática heideggeriana da tradução — por exemplo, se é preciso insistir, o “traduzir do grego no grego” em ação em Logos (e alhures [2]) que precede, fundamenta [145] e, ao final de tudo, torna impossível, como acabamos de ver, a tradução do grego para o alemão. Pelo resto, na violência feita por Lacan ao texto freudiano, no arbitrário aparente ou na liberdade do tratamento ao qual o submete, não há exagero em reconhecer o jogo do próprio modelo heideggeriano. Na realidade, o que está em jogo ali é toda uma prática da leitura comandada pelo motivo do impensado. Como Heidegger tenta decifrar o impensado da filosofia, Lacan esforça-se por reparar em Saussure e Freud (em alguns outros também) o impensado comum que fundamenta a possibilidade de estabelecer relação entre eles. E isto, com tanto mais disposição, sem dúvida — aqui, também, o paradigma especular está atuante — em razão de não haver do impensado ao inconsciente (ou do inconsciente ao impensado?), se assim se pode dizê-lo, senão um passo [3].