Segundo Heidegger, no espaço metafísico aberto pela teoria platônica das Ideias, pode ser traçada uma linha contínua que leva pelo menos até Nietzsche . A tese heideggeriana fundamental, já presente em Ser e Tempo , ensina que, entre a ontologia clássica fundamental de proveniência grega e a ontologia moderna a partir de Descartes , verifica-se, tão-somente, a transposição das categorias do ente mundano (ousia) para a esfera do sujeito, operada dentro da mesma visão (noein) e da mesma expressão (legein) do ser (Sein) que se manifesta como presença no ente (Seiendes). Apoiando-se nessa tese, Heidegger pretende colocar toda a Metafísica ocidental sob o signo do “esquecimento do ser’, destino de um pensamento que tematiza o ser a partir do ente ou dos entes, e edifica uma ontologia dos entes finitos, coroada pela afirmação do Ens summum. As vicissitudes na conceptualização do Ens summum, que vão desde a platônica Ideia do Bem ao Espírito Absoluto de Hegel e à Vontade de Poder de Nietzsche não alteram, aparentemente, o modelo ontológico fundamental, regido pela pressuposição da presença (Anwesen) do Ser no ente, à qual corresponde a intuição dessa presença como ato supremo e propriamente metafísico da inteligência. Em suma, para Heidegger, ao se fixar obstinadamente na evidência do Ser que se mostra no ente, a Metafísica deixa necessariamente no esquecimento a questão original e mais profunda do sentido ou da verdade do Ser. Por conseguinte, a “inteligência espiritual”, do noûs platônico ao intellectus tomásico, permanece no âmbito desse esquecimento, no qual se aprofundam seus sucedâneos nas modernas filosofias do sujeito. Esse, segundo Heidegger, o destino do Ser na Metafísica, desenrolando sua história como história de sua errância e do ocultamento de seu sentido. Por outro lado, ao interpretar essa história, segundo a leitura que dela faz Nietzsche , como história do “niilismo”, Heidegger entende pôr em evidência o destino inscrito no longo caminho do esquecimento do Ser, e que se manifesta finalmente na proclamação da morte de Deus·, o deus da Metafísica que coroa a escala ascendente dos entes, e que a metafísica moderna define como causa sui. O radical e decisivo confronto com Nietzsche tem como alvo, para Heidegger, trazer à luz a consequência última da história da Metafísica como história do esquecimento do Ser e da presença sempre mais dominadora do ente, com a consequente perda total do sentido e o advento do niilismo; e, assim, abrir talvez o caminho para a reproposição, desde a sua raiz mais profunda, da questão do Ser e do sentido.
Um pensamento complexo e profundo como o de Martin Heidegger, e que se entrega decidida e permanentemente à busca de um “outro começo”, que seja um “passo atrás” (der Schritt zurück) com relação ao passo inicial da Metafísica, não pode, evidentemente, ser discutido em poucas linhas. Pretendemos tão-somente mostrar aqui como a intenção fundamental de Heidegger, que permanece constante a partir de sua direção inicial e apro-fundando-se cada vez mais em suas exigências ao longo de sua carreira de pensador, vem finalmente inserir-se no processo de dissolução da inteligência espiritual que acompanha o desenvolvimento da filosofia moderna.
Ao deixar inacabada sua primeira grande obra, Sein und Zeit , Heidegger reconhece a aporia a que o conduziu a tentativa de repropor a questão do Ser a partir da analítica existencial do Dasein. Com efeito, essa tentativa permanece, não obstante a explícita intenção do Autor, encerrada no âmbito da metafísica moderna da subjetividade. A partir de Sein und Zeit o caminho de Heidegger é assinalado, por uma parte, pelo imenso esforço em pensar a Metafísica como história ou destino do esquecimento e do ocultamento do Ser e em levar a cabo a “superação” (Überwindung) da Metafísica como passagem para o pensamento original do Ser; e, por outra parte, pelo encontro decisivo com Nietzsche , que permite desvendar no niilismo o segredo da Metafísica e de sua história. Ora, a tarefa de pensar a verdade do Ser remontando às origens da Metafísica e fixando em plena luz o desfecho niilista de sua história parece ter permanecido inconclusa no âmbito da Filosofia e, mesmo, ter-se mostrado inexequível como tarefa filosófica. Compreende-se, assim, a migração final de Heidegger para o domínio da poesia e seu acolher-se à palavra do mito. Desse modo, o “pensamento futuro”, que deveria pensar o Ser mais originariamente do que a Metafísica, acabou por renunciar à linguagem da filosofia. A transgressão dos limites da linguagem filosófica e a procura da linguagem poético-mítica prolongam o caminho que deveria conduzir ao pensamento do Ser e tentam penetrar na originariedade da diferença ontológica entre o Ser e o ente, na qual acontece o advir, a Ereignis do Ser na palavra humana. Se é verdade que Heidegger reabre, assim, o espaço do dizer original — o dizer do mito — fechado pela linha racionalista da Metafísica moderna, por outro lado, porém, seu pensamento assinala uma das formas de dissolução da inteligência espiritual na filosofia moderna. Com efeito, tendo ligado definitivamente o Ser a seu destino no tempo ou à história de seu ‘acontecer’ (Ereignis) na abertura do Dasein, o pensamento heideggeriano toma inútil ou sem objeto o Noûs ou a mens da tradição clássica, ou seja, a “inteligência espiritual” propriamente dita que é, no homem, a faculdade da ascensão transtemporal por meio da qual é atingida, no tempo e pela mediação do tempo, a eternidade do Ser absoluto.
A leitura heideggeriana da história da Metafísica ocidental termina, pois, com a proposta de uma “superação’ (Überwindung) da Metafísica, o que significou concretamente, para Heidegger, um abandono do espaço filosófico e uma migração para o espaço da poesia e do mito, assim como outras tentativas de “superação” da Metafísica acabaram por proclamar sua substituição pela ciência, a política, a religião ou a arte.