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Lima Vaz (1991:262-265) – Metafísica

segunda-feira 14 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Segundo Heidegger, no espaço metafísico aberto pela teoria platônica das Ideias, pode ser traçada uma linha contínua que leva pelo menos até Nietzsche  . A tese heideggeriana   fundamental, já presente em Ser e Tempo  , ensina que, entre a ontologia clássica fundamental de proveniência grega e a ontologia moderna a partir de Descartes  , verifica-se, tão-somente, a transposição das categorias do ente mundano (ousia) para a esfera do sujeito, operada dentro da mesma visão (noein) e da mesma expressão (legein) do ser (Sein) que se manifesta como presença no ente (Seiendes). Apoiando-se nessa tese, Heidegger pretende colocar toda a Metafísica ocidental sob o signo do “esquecimento do ser’, destino de um pensamento que tematiza o ser a partir do ente ou dos entes, e edifica uma ontologia dos entes finitos, coroada pela afirmação do Ens summum. As vicissitudes na conceptualização do Ens summum, que vão desde a platônica Ideia do Bem ao Espírito Absoluto de Hegel   e à Vontade de Poder de Nietzsche   não alteram, aparentemente, o modelo ontológico fundamental, regido pela pressuposição da presença (Anwesen) do Ser no ente, à qual corresponde a intuição dessa presença como ato supremo e propriamente metafísico da inteligência. Em suma, para Heidegger, ao se fixar obstinadamente na evidência do Ser que se mostra no ente, a Metafísica deixa necessariamente no esquecimento a questão original e mais profunda do sentido ou da verdade do Ser. Por conseguinte, a “inteligência espiritual”, do noûs platônico ao intellectus tomásico, permanece no âmbito desse esquecimento, no qual se aprofundam seus sucedâneos nas modernas filosofias do sujeito. Esse, segundo Heidegger, o destino do Ser na Metafísica, desenrolando sua história como história de sua errância e do ocultamento de seu sentido. Por outro lado, ao interpretar essa história, segundo a leitura que dela faz Nietzsche  , como história do “niilismo”, Heidegger entende pôr em evidência o destino inscrito no longo caminho do esquecimento do Ser, e que se manifesta finalmente na proclamação da morte de Deus·, o deus da Metafísica que coroa a escala ascendente dos entes, e que a metafísica moderna define como causa sui. O radical e decisivo confronto com Nietzsche   tem como alvo, para Heidegger, trazer à luz a consequência última da história da Metafísica como história do esquecimento do Ser e da presença sempre mais dominadora do ente, com a consequente perda total do sentido e o advento do niilismo; e, assim, abrir talvez o caminho para a reproposição, desde a sua raiz mais profunda, da questão do Ser e do sentido.

Um pensamento complexo e profundo como o de Martin Heidegger, e que se entrega decidida e permanentemente à busca de um “outro começo”, que seja um “passo atrás” (der Schritt zurück) com relação ao passo inicial da Metafísica, não pode, evidentemente, ser discutido em poucas linhas. Pretendemos tão-somente mostrar aqui como a intenção fundamental de Heidegger, que permanece constante a partir de sua direção inicial e apro-fundando-se cada vez mais em suas exigências ao longo de sua carreira de pensador, vem finalmente inserir-se no processo de dissolução da inteligência espiritual que acompanha o desenvolvimento da filosofia moderna.

Ao deixar inacabada sua primeira grande obra, Sein und Zeit  , Heidegger reconhece a aporia a que o conduziu a tentativa de repropor a questão do Ser a partir da analítica existencial do Dasein. Com efeito, essa tentativa permanece, não obstante a explícita intenção do Autor, encerrada no âmbito da metafísica moderna da subjetividade. A partir de Sein und Zeit   o caminho de Heidegger é assinalado, por uma parte, pelo imenso esforço em pensar a Metafísica como história ou destino do esquecimento e do ocultamento do Ser e em levar a cabo a “superação” (Überwindung) da Metafísica como passagem para o pensamento original do Ser; e, por outra parte, pelo encontro decisivo com Nietzsche  , que permite desvendar no niilismo o segredo da Metafísica e de sua história. Ora, a tarefa de pensar a verdade do Ser remontando às origens da Metafísica e fixando em plena luz o desfecho niilista de sua história parece ter permanecido inconclusa no âmbito da Filosofia e, mesmo, ter-se mostrado inexequível como tarefa filosófica. Compreende-se, assim, a migração final de Heidegger para o domínio da poesia e seu acolher-se à palavra do mito. Desse modo, o “pensamento futuro”, que deveria pensar o Ser mais originariamente do que a Metafísica, acabou por renunciar à linguagem da filosofia. A transgressão dos limites da linguagem filosófica e a procura da linguagem poético-mítica prolongam o caminho que deveria conduzir ao pensamento do Ser e tentam penetrar na originariedade da diferença ontológica entre o Ser e o ente, na qual acontece o advir, a Ereignis do Ser na palavra humana. Se é verdade que Heidegger reabre, assim, o espaço do dizer original — o dizer do mito — fechado pela linha racionalista da Metafísica moderna, por outro lado, porém, seu pensamento assinala uma das formas de dissolução da inteligência espiritual na filosofia moderna. Com efeito, tendo ligado definitivamente o Ser a seu destino no tempo ou à história de seu ‘acontecer’ (Ereignis) na abertura do Dasein, o pensamento heideggeriano toma inútil ou sem objeto o Noûs ou a mens da tradição clássica, ou seja, a “inteligência espiritual” propriamente dita que é, no homem, a faculdade da ascensão transtemporal por meio da qual é atingida, no tempo e pela mediação do tempo, a eternidade do Ser absoluto.

A leitura heideggeriana   da história da Metafísica ocidental termina, pois, com a proposta de uma “superação’ (Überwindung) da Metafísica, o que significou concretamente, para Heidegger, um abandono do espaço filosófico e uma migração para o espaço da poesia e do mito, assim como outras tentativas de “superação” da Metafísica acabaram por proclamar sua substituição pela ciência, a política, a religião ou a arte.


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LIMA VAZ, H. C. de. Antropologia filosófica. São Paulo: Loyola, 1991