Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

Página inicial > Fenomenologia > Nietzsche (GM:Capítulo 2) – responsabilidade

Nietzsche (GM:Capítulo 2) – responsabilidade

terça-feira 5 de maio de 2020

Paulo César de Souza

1. Criar um animal que pode fazer promessas — não é esta a tarefa paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema do homem?… O fato de que este problema esteja em grande parte resolvido deve parecer ainda mais notável para quem sabe apreciar plenamente a força que atua de modo contrário, a do esquecimento. Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”), [1] do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”. Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois nosso organismo é disposto hierarquicamente) — eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento. O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico — de nada consegue “dar conta”… Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos — nos casos em que se deve prometer: não sendo um simples não-mais-poder-livrar-se da impressão uma vez recebida, não a simples indigestão da palavra uma vez empenhada, da qual não conseguimos dar conta, mas sim um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade: de modo que entre o primitivo “quero”, “farei”, e a verdadeira descarga da vontade, seu ato, todo um mundo de novas e estranhas coisas, circunstâncias, mesmo atos de vontade, pode ser resolutamente interposto, sem que assim se rompa esta longa cadeia do querer. Mas quanta coisa isto não pressupõe! Para poder dispor de tal modo do futuro, o quanto não precisou o homem aprender a distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira causal, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar — para isso, quanto não precisou antes tornar-se ele próprio confiável, constante, necessário, também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como faz quem promete, responder por si como porvir!

2. Esta é a longa história da origem da responsabilidade. A tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas, já percebemos, traz consigo, como condição e preparação, a tarefa mais imediata de tornar o homem até certo ponto necessário, uniforme, igual entre iguais, constante, e portanto confiável. O imenso trabalho daquilo que denominei “moralidade do costume” (cf. Aurora, § 9, 14, 16) [2] — o autêntico trabalho do homem em si próprio, durante o período mais longo da sua existência, todo esse trabalho pré-histórico encontra nisto seu sentido, sua justificação, não obstante o que nele também haja de tirania, dureza, estupidez e idiotismo: com ajuda da moralidade do costume e da camisa de força social, o homem foi realmente tornado confiável. Mas coloquemo-nos no fim do imenso processo, ali onde a árvore finalmente sazona seus frutos, onde a sociedade e sua moralidade do costume finalmente trazem à luz aquilo para o qual eram apenas o meio: encontramos então, como o fruto mais maduro da sua árvore, o indivíduo soberano, igual apenas a si mesmo, novamente liberado da moralidade do costume, indivíduo autônomo supramoral (pois “autônomo” e “moral  ” se excluem), em suma, o homem da vontade própria, duradoura e independente, o que pode fazer promessas — e nele encontramos, vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência do que foi finalmente alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade, um sentimento de realização. Este liberto ao qual é permitido prometer, este senhor do livre-arbítrio, este soberano — como não saberia ele da superioridade que assim possui sobre todos os que não podem prometer e responder por si, quanta confiança, quanto temor, quanta reverência desperta — ele “merece” as três coisas — e como, com esse domínio sobre si, lhe é dado também o domínio sobre as circunstâncias, sobre a natureza e todas as criaturas menos seguras e mais pobres de vontade? O homem “livre”, o possuidor de uma duradoura e inquebrantável vontade, tem nesta posse a sua medida de valor: olhando para os outros a partir de si, ele honra ou despreza; e tão necessariamente quanto honra os seus iguais, os fortes e confiáveis (os que podem prometer) — ou seja, todo aquele que promete como um soberano, de modo raro, com peso e lentidão, e que é avaro com sua confiança, que distingue quando confia, que dá sua palavra como algo seguro, porque sabe que é forte o bastante para mantê-la contra o que for adverso, mesmo “contra o destino” —: do mesmo modo ele reservará seu pontapé para os débeis doidivanas que prometem quando não podiam fazê-lo, e o seu chicote para o mentiroso que quebra a palavra já no instante em que a pronuncia. O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino, desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante — como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este homem soberano o chama de sua consciência… [3]

Original

1. Ein Tier   heranzüchten, das versprechen darf – ist das nicht   gerade jene paradoxe Aufgabe selbst  , welche sich die Natur   in Hinsicht   auf   den Menschen gestellt hat? ist es nicht das eigentliche Problem vom Menschen?… Daß   dies Problem bis zu einem hohen Grad gelöst ist, muß dem um so erstaunlicher erscheinen  , der die entgegenwirkende Kraft  , die der Vergeßlichkeit , vollauf zu würdigen weiß. Vergeßlichkeit ist keine bloße vis inertiae , wie die Oberflächlichen glauben, sie ist vielmehr ein aktives, im strengsten Sinne positives Hemmungsvermögen, dem es zuzuschreiben ist, daß was nur von uns erlebt, erfahren  , in uns hineingenommen wird, uns im Zustande der Verdauung (man dürfte ihn »Einverseelung« nennen) ebensowenig ins Bewußtsein   tritt, als der ganze   tausendfältige Prozeß, mit dem sich unsre leibliche Ernährung, die sogenannte »Einverleibung« abspielt. Die Türen und Fenster des Bewußtseins zeitweilig schließen; von dem Lärm und Kampf  , mit dem unsre Unterwelt von dienstbaren Organen für- und gegeneinander arbeitet, unbehelligt bleiben; ein wenig Stille, ein wenig tabula rasa des Bewußtseins, damit wieder Platz   wird für Neues, vor allem für die vornehmeren Funktionen und Funktionäre, für Regieren, Voraussehn, Vorausbestimmen (denn unser Organismus   ist oligarchisch eingerichtet) – das ist der Nutzen   der, wie gesagt, aktiven Vergeßlichkeit, einer Türwärterin gleichsam, einer Aufrechterhalterin der seelischen Ordnung, der Ruhe  , der Etikette: womit   sofort abzusehn ist, inwiefern es kein Glück  , keine Heiterkeit, keine Hoffnung  , keinen Stolz, keine Gegenwart   geben könnte ohne Vergeßlichkeit. Der Mensch  , in dem dieser Hemmungsapparat beschädigt wird und aussetzt, ist einem Dyspeptiker zu vergleichen (und nicht nur zu vergleichen) – er wird mit nichts »fertig«… Eben dieses notwendig vergeßliche Tier, an dem das Vergessen   eine Kraft, eine Form der starken Gesundheit   darstellt, hat sich nun ein Gegenvermögen angezüchtet, ein Gedächtnis  , mit Hilfe dessen für gewisse Fälle die Vergeßlichkeit ausgehängt wird – [799] für die Fälle nämlich, daß versprochen werden   soll: somit keineswegs bloß ein passivisches Nicht-wieder-los-werden-können des einmal eingeritzten Eindrucks, nicht bloß die Indigestion an einem einmal verpfändeten Wort  , mit dem man nicht wieder fertig wird, sondern ein aktives Nicht-wieder-los-werden- wollen   , ein Fort-und-fort-wollen des einmal Gewollten, ein eigentliches Gedächtnis des Willens : so daß zwischen   das ursprüngliche »ich   will«, »ich werde tun  « und die eigentliche Entladung des Willens, seinen Akt  , unbedenklich eine Welt   von neuen fremden Dingen, Umständen, selbst Willensakten dazwischengelegt werden darf, ohne daß diese lange Kette des Willens springt. Was setzt das aber alles voraus! Wie muß der Mensch, um dermaßen über die Zukunft   voraus zu verfügen  , erst gelernt haben  , das notwendige   vom zufälligen Geschehen   scheiden, kausal denken  , das Ferne   wie gegenwärtig sehn und vorwegnehmen, was Zweck ist, was Mittel   dazu   ist, mit Sicherheit   ansetzen, überhaupt rechnen  , berechnen können – wie muß dazu der Mensch selbst vorerst berechenbar, regelmäßig, notwendig geworden sein  , auch sich selbst für seine eigne Vorstellung  , um endlich dergestalt, wie es ein Versprechender tut, für sich als Zukunft gutsagen zu können!

2. Eben das ist die lange Geschichte   von der Herkunft der Verantwortlichkeit . Jene Aufgabe, ein Tier heranzuzüchten, das versprechen darf, schließt, wie wir bereits begriffen haben, als Bedingung und Vorbereitung die nähere Aufgabe in sich  , den Menschen zuerst bis zu einem gewissen Grade notwendig, einförmig, gleich   unter Gleichen, regelmäßig und folglich berechenbar zu machen . Die ungeheure   Arbeit   dessen, was von mir »Sittlichkeit der Sitte« genannt worden ist (vgl. »Morgenröte«: I 1019 ff.) – die eigentliche Arbeit des Menschen an sich selber in der längsten Zeitdauer des Menschengeschlechts, seine ganze vorhistorische Arbeit hat hierin ihren Sinn  , ihre große Rechtfertigung, wieviel ihr auch von Härte, Tyrannei, Stumpfsinn und Idiotismus innewohnt: der Mensch wurde mit Hilfe der Sittlichkeit der Sitte und der sozialen Zwangsjacke wirklich   berechenbar gemacht . Stellen   wir uns dagegen ans Ende   des ungeheuren Prozesses, dorthin, [800] wo der Baum endlich seine Früchte zeitigt, wo die Sozietät und ihre Sittlichkeit der Sitte endlich zutage bringt, wozu sie nur das Mittel war: so finden wir als reifste Frucht an ihrem Baum das souveräne Individuum , das nur sich selbst gleiche, das von der Sittlichkeit der Sitte wieder losgekommene, das autonome übersittliche Individuum (denn »autonom« und »sittlich« schließt sich aus), kurz den Menschen des eignen unabhängigen langen Willens, der versprechen darf – und in ihm ein stolzes, in allen Muskeln zuckendes Bewußtsein davon, was da endlich errungen und in ihm leibhaft geworden ist, ein eigentliches Macht- und Freiheits-Bewußtsein, ein Vollendungs-Gefühl   des Menschen überhaupt. Dieser Freigewordne, der wirklich versprechen darf , dieser Herr des freien   Willens, dieser Souverän – wie sollte er es nicht wissen  , welche Überlegenheit er damit vor allem voraushat, was nicht versprechen und für sich selbst gutsagen darf, wie viel Vertrauen, wie viel Furcht  , wie viel Ehrfurcht er erweckt – er »verdient « alles dreies – und wie ihm, mit dieser Herrschaft über sich, auch die Herrschaft über die Umstände  , über die Natur und alle willenskürzeren und unzuverlässigeren Kreaturen notwendig in die Hand gegeben   ist? Der »freie« Mensch, der Inhaber eines langen unzerbrechlichen Willens, hat in diesem Besitz auch sein Wertmaß : von sich aus nach den andern hinblickend, ehrt er oder verachtet er; und ebenso notwendig als er die ihm Gleichen, die Starken und Zuverlässigen (die welche versprechen dürfen ) ehrt, – also jedermann  , der wie ein Souverän verspricht, schwer  , selten, langsam, der mit seinem Vertrauen geizt, der auszeichnet , wenn er vertraut, der sein Wort gibt als etwas, auf das Verlaß ist, weil er sich stark genug weiß, es selbst gegen Unfälle, selbst »gegen das Schicksal« aufrechtzuhalten –: ebenso notwendig wird er seinen Fußtritt für die schmächtigen Windhunde bereithalten, welche versprechen, ohne es zu dürfen, und seine Zuchtrute für den Lügner, der sein Wort bricht, im Augenblick   schon, wo er es im Munde hat. Das stolze Wissen um das außerordentliche Privilegium der Verantwortlichkeit , das Bewußtsein dieser seltenen Freiheit, dieser Macht über sich und das Geschick   hat sich bei   ihm bis in seine unterste Tiefe   hinabgesenkt und ist zum Instinkt geworden, zum dominierenden Instinkt – wie wird er ihn heißen, diesen dominierenden Instinkt, gesetzt, daß er ein Wort dafür bei sich nötig   hat? Aber es ist kein Zweifel: dieser souveräne Mensch heißt ihn sein [801] Gewissen…

[Excerto de NIETZSCHE  , F.. A Genealogia da Moral. Tr. Paulo César de Souza. Belo Horizonte: Companhia das Letras, 1998]


Ver online : A GENEALOGIA DA MORAL


[1“Assimilação psíquica”: Nietzsche usa a palavra Einverseelung, criada a partir de Seele, “alma”. Os tradutores da edição americana também inovaram: “inpsychation”. Os demais oferecem asimilación anímica, incorporació anímica, appropriazione spirituale, absorption psychique e, como nós, assimilation psychique, psychic assimilation. Na mesma frase, “assimilação física” é a tradução para Einverleibung, esta uma palavra dicionarizada, que serviu de modelo para a criação da primeira. Leib significa “corpo”. Kaufmann e Hollingdale usam incorporation; o novo tradutor inglês, Douglas Smith, prefere também physical assimilation.

[2“Moralidade do costume”: Sittlichkeit der Sitte. Nas traduções consultadas, eticidad de la costumbre, moralitat dels costums, eticità dei costumi, moralité des moeurs, morality of mores, morality of custom. Ver, sobre a expressão, a nota de Rubens Rodrigues Torres Filho, no volume dedicado a Nietzsche da coleção “Os Pensadores” (Abril Cultural), por ele traduzido. A nota se encontra à página 159, onde também pode ser lido o § 9 de Aurora, “Conceito da eticidade do costume”.

[3Em alemão existem dois termos para “consciência”: Bewußtsein designa o estado de consciência, a percepção (significa, ao pé da letra, “estar consciente”); Gewissen designa a consciência moral, a faculdade de fazer distinções morais.