Heidegger chamou as Contribuições [GA65 ] de uma “tentativa e ensaio” (Versuch) de encenar o aceno de um outro começo, na “era da passagem da metafísica para o pensamento historial de ser (das seynsgeschichtliche Denken)” [1]. A primeira vista, as Contribuições apresentam-se como uma radicalização do tema da “superação da metafísica”, no qual em questão está uma “mudança de essência do homem” (Wesenswandel des Menschen) do “animal racional” para a “pre-sença” (Da-sein), a passagem do primeiro começo para um outro começo, a transição da estrutura onto-teo-lógica da metafísica para a verdade do ser e a questão do “último deus”. À primeira vista, as Contribuições visam a uma transformação da filosofia, pelo prisma da questão sobre a verdade do ser. “A primeira vista” estão em jogo a superação, a transformação, a mudança do pensamento e da linguagem da filosofia. O que nessa primeira vista parece claro torna-se no entanto obscuro, vertiginoso e abissal à medida que a leitura pensante vai se realizando. O texto das Contribuições desestabiliza de tal modo a linguagem e o pensamento da filosofia que a própria experiência de superação, transformação e mudança vê-se ela mesma desestabilizada.
Heidegger inicia essas páginas, mais “de uma luta” [2] do que de um livro, esclarecendo que o título Contribuições à filosofia é um título “público”. Trata-se de um título para se dizer em público, de modo a “dar a impressão de ser um livro que pretende ‘contribuir’ para o ‘progresso’ da filosofia” [3]. Para dar essa impressão, o tom do livro “deve soar pálido, comum, sem dizer nada”, falando no tom em que a lei do que é público se pronuncia. Colocando em aspas os termos “contribuição” e “progresso”, Heidegger deixa claro desde o início que essas páginas devem reverberar e ressoar no esvaziamento de sentido que marca a época que Heidegger descreveu como “era da técnica planetária”, da “maquinação” ou “operacionalização” de tudo e de todos e ainda como “antropomorfia incondicional” [4]. Mas qual a necessidade de dar um título “público” a essas páginas? Por que dar a impressão de se estar querendo “contribuir” para o “progresso” da filosofia? Não obstante o tremendo controle da ditadura hitlerista, não seria possível escrever essas páginas como um diário secreto, sem necessitar de um título “público”? O que há de secreto nessas páginas?
A esse título pálido, comum, que nada diz, corresponde um subtítulo “essencial”, Vom Ereignis, Do evento. Inaugurando o pensamento hoje tão em voga sobre o “evento”, Heidegger frisa que a questão essencial dessas páginas não é pensar e dizer “o” evento, mas “do”, “a partir de”, “desde” o evento, vom Ereignis. A palavra Ereignis é mais um dos termos intraduzíveis da filosofia, não obstante o seu uso corrente na língua alemã, significando “evento” ou “acontecimento”. Heidegger faz um uso particular dessa palavra ao separar muitas vezes o prefixo Er da raiz eigen, grafando-a Er-eignis, “e-vento”, tanto para acentuar o sentido de próprio e apropriar (eigen), como para remeter à origem do termo alemão eigen a äugen, um antigo verbo para dizer olhar. Ao afirmar como subtítulo “essencial” Do evento, Heidegger apresenta a difícil questão de como pensar e dizer desde um olhar que “olha” em sendo olhado pelo tempo e pelos tempos. Pergunta-se como pensar e dizer ao testemunhar uma transformação de essência no em se dando da transformação, que apreende o próprio sentido em sendo apropriado pelo sentido. Como pensar e dizer o transformar-se de dentro, na intimidade (Innigkeit) do em se transformando? Como pensar e dizer o gerúndio dos tempos no gerúndio singular dos homens? Evento, advento, acontecimento, acontecer-apropriador, em todas essas tentativas de dizer em português Ereignis como Eräugnis (olhar radical) está em jogo não um tempo, seja novo ou velho, mas o em se temporalizando dos tempos, o em se transformando da transformação, o em começando do começo, um “tempo-espaço” que não se deixa medir por nenhuma medida espacial ou temporal, por nenhuma geometria ou cronologia e nem mesmo pelas categorias de uma história universal. Em jogo aqui está o que Heidegger chamou de um “outro começo”, um começo que dá começo a uma experiência inteiramente outra de começo, a uma transformação da experiência de transformação, a uma metamorfose do próprio sentido de metamorfose. “Evento” ou “acontecer-apropriador”, Ereignis, nomeia o inominável de um transformando-se na “intimidade” (Innigkeit), de dentro do em-se-transformando dos tempos. Toda a lógica e a gramática da auto-transformação se transformam aqui, pois o que Heidegger busca pensar e dizer é a transformação do sentido da experiência fundadora do Ocidente, nomeada no pronome “auto”, “si-mesmo”. Em jogo está pensar e dizer um transformar que não é variação, seja contínua ou descontínua de si mesmo, mas um transformar da própria ideia de si-mesmo que desde a sua primeira pronúncia grega tem imposto a toda ideia e experiência de transformação uma lógica de diferença e repetição de “si-mesmo”, potenciada na Modernidade numa lógica da subjetividade e reflexividade. A obscuridade dessas páginas reflete a obscuridade desse estranho “outro começo” que não se deixa pensar e dizer a partir da experiência fundadora do “primeiro começo” da filosofia no Ocidente, a experiência do uno em si mesmo diverso, do to hen diaferon heauto, de onde provém uma longa tradição de compreensão do que seja transformação, mutação, mudança, superação, devir, metamorfose. A questão “essencial” que o título “público” faz soar de maneira pálida, comum, e sem nada dizer é como pensar e dizer do evento, desde o em se transformando em que o princípio milenar de uma transformação vê-se ele mesmo transformado a ponto de inaugurar não apenas um outro tempo e uma outra era, mas uma experiência outra de tempo e de era, uma experiência outra de ser e de tempo. A questão essencial de como pensar e dizer desde o “evento” assim entendido é, portanto, a questão essencial de como pensar e dizer o impensável e o inominável desse “outro” que não pode ser pensado ou dito numa referência ao passado, mas que só pode ser pensado e dito desde a impossibilidade dessa referência e, assim, numa referência negativa.
Heidegger expõe aqui as páginas dolorosas de uma era, de um momento “epocal”, no sentido grego de epoche, ou seja, de suspensão e cesura históricas, quando se experimenta em todos os âmbitos da existência a coincidência de um fim que não acaba de acabar e o começo que começa antes de começar. Busca pensar o impensável e inominável de uma transição ela mesma em transição e o modo histórico-epocal de sua evidência. Esse momento de cesura histórica em que se opera a coincidência de um fim sem fim e de um começo sem começo define para Heidegger o evento, o acontecer-apropriador, ele mesmo impensável e inominável, pois, enquanto o em-acontecendo, evento é o que se dá retraindo-se a qualquer sentido de dado, é o sentido que se dá na retração de um sentido próprio e na própria retração de todo sentido. É na experiência vertiginosa e abissal do próprio tempo como coincidência de um fim sem fim e de um começo sem começo — e que o define como o terror do totalitarismo do sem saída e do sem saída do totalitarismo — que Heidegger escuta, mais do que vê, os acenos de um outro começo, de um sentido transformado de transformação, de uma metamorfose do sentido de metamorfose. Aqui, os contrários soam como o mesmo e o mesmo soa como o seu contrário. A mesma palavra diz o seu outro, o mesmo pensamento pensa o seu outro. Se o totalitarismo do nazismo e o nazismo do totalitarismo só podem instaurar-se no extermínio e esvaziamento de todo sentido e, assim, de toda diferenciação e diferença de sentido, é no exercício da escuta do outro no mesmo e do mesmo do outro que um “outro” começo pode ser ouvido de dentro do esvaziamento de sentido. Para tanto é preciso aprender a escutar como a linguagem do pensamento do outro começo e o pensamento da linguagem do outro começo se protegem e escondem do esvaziamento de sentido no próprio esvaziamento de sentido.