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Richardson (2003:33-35) – pré-compreensão do ser

sexta-feira 27 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

Vamos começar com um fato inicial: mesmo antes de fazer a pergunta, o homem tem alguma compreensão do Ser. Não importa o quão escuro ou obscuro o próprio Ser possa ser para ele, ainda assim, em sua relação mais casual com outros entes, eles estão suficientemente abertos para ele de modo que possa experimentar que eles são, preocupar-se com o que são e como são, decidir sobre a verdade deles, etc. Ele compreende, de alguma forma, o que os torna o que são, ou seja, seu Ser. Mais uma vez, toda frase que ele pronuncia contém um “é”. Suas exclamações (v.g. “Fogo!”) supõem o “é”. Seus próprios estados de espírito lhe revelam que ele mesmo “é” de tal e tal maneira. Ele deve compreender, então, não importa quão obscuramente, o que “é” significa, caso contrário, tudo isso não teria sentido.

Essa compreensão radical do Ser, no entanto, mesmo que inegável, não é, por essa razão, apreendida por nenhum conceito claro. Ela é pré-conceitual e, em sua maior parte, indeterminada, portanto, inevitavelmente vaga. Se alguém sustenta que todo conhecimento é conceitual, então, embora os seres possam ser conhecidos, o Ser pelo qual eles são o que são (e que o homem compreende) permanece desconhecido. Finalmente, essa compreensão pré-conceitual do Ser é inquestionável, pois o Ser que assim se revela é tão óbvio que não chama atenção para si mesmo, não levanta questões, aparece como se não fosse. Vago, indefinido, inquestionável, a compreensão do Ser é, no entanto, um fato irredutível, que a investigação aceita para começar. [1]

De fato, é essa compreensão pré-conceitual do Ser, embora ela mesma seja inquestionável, que torna possível a pergunta sobre o Ser. Pois questionar é investigar, e toda investigação é polarizada por seu termo. Não se poderia perguntar, então, o que significa Ser, a menos que se compreendesse de alguma forma a resposta. A tarefa de buscar a questão do Ser, então, se reduz a isto: qual é a essência da compreensão do Ser enraizada tão profundamente no homem? [2]

É essa compreensão do Ser que, para Heidegger, caracteriza o homem de forma mais profunda. “… O homem é um ser que está imerso entre os entes de tal forma que os entes que ele não é, bem como o ser que ele mesmo é, já se tornaram constantemente manifestos para ele. …” — manifesto, isto é, em seu Ser. [3] Essa concepção do homem é importante. Acima de tudo, ela explica por que Heidegger prefere designar o questionador do Ser por um termo que sugere esse privilégio único que o distingue de todos os outros entes, ou seja, sua compreensão do Ser como tal: o “Ser-aí”. [4] De agora em diante, usaremos exclusivamente esse termo, reservando para mais tarde a questão explícita da relação precisa entre o Ser-aí e o homem.

Estamos agora em uma posição que nos permite entender algumas das características que Heidegger atribui ao Ser-aí em virtude da compreensão do Ser como tal, que caracteriza, ou melhor, constitui sua própria estrutura ontológica. A compreensão não é simplesmente um conhecimento teórico, mas uma maneira de ser de forma a compreender o Ser. Como uma compreensão radical do Ser, o próprio Ser do Ser-aí, ou seja, aquilo pelo qual ele é o que é, deve se preocupar com o Ser. Portanto, a relação com o Ser (a compreensão) constitui a própria estrutura ontológica do Ser. Além disso, essa compreensão do Ser abrange não apenas seu próprio Ser, mas também o Ser de todos os outros seres. Portanto, como um ser, ele não é apenas mais uma mera entidade entre muitas outras, mas desfruta de uma primazia entre as demais: "… a excelência ôntica do Ser-aí reside no fato de que ele é ontológico" [5]. Além disso, "… esse modo de ser do homem chamamos de existência. É somente com base em uma compreensão do Ser que a existência é possível" [6]. A existência para Heidegger, então, significa estar naquela relação com o Ser que chamamos de "compreensão". Somente isso! É a compreensão que constitui a possibilidade interior da existência, de modo que, por sua vez, a existência constitui a possibilidade interior (Wesen) do Ser. [7]


Ver online : William J. Richardson


RICHARDSON, William J. H. Heidegger. Through Phenomenology to Thought. New York: Fordham University Press, 2003


[1GA3:KM, pp. 204-205

[2SZ, pp. 5, 7; KM, p. 204. We have chosen to translate Verstehen by “comprehension” because: the normal meaning of “comprehension” corresponds to the normal meaning of verstehen, sc. “to understand.” Yet the etymology permits it to suggest the Heideggerean sense: —prehendere (“to grasp, seize”) suggests the seizure of Being, both in its anticipation (precedent structure) and in its coming-to-pass (construction); cum- (“with”), sc. with itself, suggests that the Being of this being is such that it seizes Being.

[3GA3:KM, p. 205

[4See SZ, p. 12. Thus we translate Dasein. Henri Birault (“Existence et vérité d’après Heidegger,” Revue de Métaphysique et de Morale LVI (1951), p. 38, note 1) suggests “presence” for good reasons, but we prefer to transliterate the German: because the English “There” more easily than the French la may suggest simple presence of a being (v.g. there is a book on my desk), hence need not (here does not) suggest merely place in space, or at least no more so than does the German Da (see SZ, p. 132); because it suggests the intimacy between Dasein and Sein more obviously than “presence”; because the very awkwardness of the term jars the reader into continued awareness that the problem is purely ontological, never anthropological; because “presence” and its cognates seem better reserved to translate as Anwesen.

[5SZ:12

[6GA3:KM:205

[7SZ, p. 42. Obviously this notion of existence has a completely different sense from the existentia of the tradition. For existentia, Heidegger uses Vorhandensein; we translate in accordance with his intention as “mere entity.” Just as obviously, Wesen here does not mean essentia in the ordinary sense. What it does mean becomes clearer as we proceed.