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Mattéi (1989:153-157) – Geviert (Céu-Terra-Divinos-Mortais)

sábado 28 de setembro de 2024, por Cardoso de Castro

Estamos, então, em posição de pensar em tal “pátria”, retornando à “proximidade do Ser” enraizada no Da do Dasein? Podemos restabelecer a situação inicial do homem habitando o local apropriado do pensamento? Sem entrar nos detalhes do argumento aqui, vou relembrar certos pontos essenciais sobre “ser” e “mundo” que tentei estabelecer em um trabalho anterior sobre a figura heideggeriana   do “Quadripartite” (Geviert) [1]. De fato, os textos mais incomuns do que normalmente chamamos de “o segundo Heidegger”, entre 1949 e 1960 — A Coisa, A Virada, A Palavra, Construir, habitar, pensar, O Homem habita como poeta, Que se chama pensar?, Le déploiement de la parole, Terre et Ciel chez Hölderlin  , para citar os principais — sugerem, com tanta insistência quanto restrição, que uma figura “arcaica”, no sentido primário do termo, comanda as coisas do mundo e salvaguarda a simplicidade de seu ser. Essa é a “pátria” ou o mundo que o Heidegger chama de “Quadripartite”. Essa é a “pátria” ou “casa do ser”, onde todas as coisas acontecem, exigida pela Carta sobre o Humanismo; deu origem a muita perplexidade entre aqueles que não a reconciliam com o fragmento 119 de Heráclito  :

“ἦθος ἀνθρωπφ δαιμῶν”
 
“a morada do homem é a morada do divino”.

Ἠθος designa originalmente a “permanência”, a “morada”, o “lugar familiar” que a divindade vem assombrar, e não o “caráter” ou a “moral” do homem que mais tarde dará origem à “ética”. Heidegger não constitui ou objetiva esse lugar, onde o ente vem a ser, em uma estrutura conceitual; ele simplesmente deixa que isso aconteça de acordo com a tétrade tradicional herdada, por meio de Hölderlin  , de Pitágoras e Platão   [2]:

TERRA-CÉU / DIVINOS-MORTAIS,

em um entrelaçamento entrecruzado que Heidegger chama de Geviert — “quadro” ou “quadripartite” — onde as coisas vêm ao mundo. Lemos, sem mais comentários, no primeiro texto em que essa figura cósmica aparece, desenrolando seu anel em torno do centro invisível, “Milieu” (Mitte) ou “Destino” (Geschick):

Esse jogo que faz parecer, o jogo de espelhos da simplicidade da Terra e do Céu, dos Divinos e dos Mortais, chamamos de ’o mundo’ (die Welt).

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É a vocação do pensamento transformar o mundo que lhe é dado? À pergunta impaciente de Spiegel   sobre a possibilidade de modificar o curso dos eventos atuais, Heidegger responde simplesmente: A filosofia não será capaz de produzir um efeito imediato que mude o estado atual do mundo; ela só pode preparar uma “disponibilidade” para a vinda do “outro pensamento”, ou mesmo uma “conversão” dentro da tecnologia moderna. Esse salto para fora do reino da filosofia não consiste em desmantelar, desconstruir ou destruir a metafísica e seu projeto de racionalidade universal, como tantos leitores com pressa de acabar com a tradição entenderam: trata-se, graças ao “passo atrás” (Schritt zurück) da representação dominante incorporada na tecnologia planetária, de questionar a metafísica mais originalmente na direção do local onde seu projeto se originou. Não encontraremos a menor lacuna entre o segundo Heidegger e o primeiro: de Sein und Zeit   (1927) aos Seminários de Thor (1966, 1968, 1969), Heidegger persegue incansavelmente o mesmo caminho — “visando fundar, em um futuro distante, uma possibilidade de tradição” [3]. Além disso, a Lettre sur l’humanisme já sugere como o “outro pensamento” — o pensamento atento do Ser — poderia um dia nos permitir habitar aquele Geviert no qual consiste a pátria original do homem:

O pensamento trabalha para construir a casa do Ser, uma casa por meio da qual o Ser, enquanto aquilo que une, ordena que a essência do homem, a cada vez, de acordo com o destino, habite na casa do Ser. Essa morada é a essência do ser-no-mundo.[GA9  ]

Heidegger se refere imediatamente, na mesma passagem, ao parágrafo 12 de Sein und Zeit, onde, vinte anos antes, aparece a imagem da “casa” que o segundo Heidegger teria tomado emprestado tardiamente de Hölderlin  :

in provém de “innan-”, “habitar”, ter permanência; “an” significa: estou habituado a, familiarizado com, estou acostumado a… A palavra tem o significado de colo, ou seja, habito e diligo. Este ente ao qual pertence o ser-em… nesse sentido, nós o caracterizamos como o ente que eu mesmo sou a cada vez. A expressão “bin” (“sou”) está relacionada à palavra “bei” (“perto”); “ich bin” (eu sou) significa novamente: eu habito, eu estadio perto de — o mundo como me é familiar. Sein (ser) como o infinitivo de “ich bin” (eu sou), ou seja, entendido como existencial, significa: morar junto de…, estar familiarizado com…”.

Heidegger conclui sua análise com estas palavras: “Ser em… é, portanto, a expressão existencial formal do ser do Dasein, na medida em que tem a constituição essencial do ser-no-mundo”. [SZ  :54]

Em uma linguagem menos metafísica, mas não menos rigorosa, Heidegger evoca com a Quadriparti do Ser, desdobrada em suas quatro instâncias: Terra-Céu / Divino-Mortal, a morada na medida do mundo. Essa é a “pátria” em seu sentido essencial, que, sem ser reduzida ao patriotismo e ao nacionalismo, é, no entanto, uma verdadeira entidade política, pois permite que os mortais vivam e ajam juntos no mundo. Como podemos supor que o gesto fundador da cidade, que revela a verdade do ser, não seja à imagem do mundo, em outras palavras, que a articulação das esferas ôntica e ontológica não seja “ordenada” na vida comum dos homens?

A palestra “A Coisa” considera, portanto, quatro características fundamentais da “economia” (das Schonen) da habitação do Ser. Para os mortais, habitar significa “cuidar” da Quadripartição, ou seja, adotar uma atitude comedida em relação ao mundo ao seu redor, de modo a deixá-lo ser o que é. Por meio de sua ação conjunta, a Terra e o Céu, os Divinos e os Mortais protegem as coisas do mundo que são o que são na unidade indivisível dos quatro. A interpretação política dessa passagem sobre a habitação é ainda mais exigida pela abordagem de Heidegger, pois este considera a moradia em termos apenas de mortais que, sabendo que vão morrer, tentam estabelecer a imortalidade com a ajuda de suas instituições comuns. Pois se, para o poeta,

“O mármore vive mais do que a cidade”,

para o político,

a cidade sobrevive aos mortais.

Os mortais habitam, ou seja, permanecem fiéis à sua condição mortal, quando poupam a Terra: embora a trabalhem com suas ferramentas e a façam produzir seus alimentos, eles não a exploram e a deixam descansar em si mesma. Dessa forma, ela continua sendo o que é: a Terra.

Os mortais vivem quando poupam o Céu: embora confrontem o mundo com suas técnicas, não interrompem o ritmo medido dos movimentos do tempo. Eles não escravizam o Céu ou o Mundo [4] ao poder incontrolável da tecnologia, desde a manipulação genética até as explosões nucleares, e permitem que ele continue sendo o que é: o Céu.

Os mortais ainda vivem quando poupam os Divinos: ouvindo os sinais da divindade ou, se preferir, o estabelecimento do significado que dá ao discurso sua identidade, eles não se afastam deles para fazer ídolos em seu lugar. Eles permitem que continuem sendo o que são: os Divinos.

Por fim, os Mortais habitam quando tratam os mortais como Mortais: suas ações salvaguardam o limite final da alteridade da qual eles são, e não lhes roubam o destino. Elas permitem que eles continuem sendo o que são: os Mortais.

Essa abordagem conjunta do mundo — a liberação da Terra, o acolhimento do Céu, a expectativa dos Divinos, a ação dos Mortais — torna a morada comum da humanidade um aprendizado de proximidade, em outras palavras, de Ser. Isso pode parecer muito estranho às preocupações de nosso tempo. No entanto, Hannah Arendt   merece crédito por lhe dar uma dimensão prática, ligando a análise estritamente política das atividades humanas à ontologia fundamental das ações mortais.


Ver online : Jean-François Mattéi


MATTÉI, Jean-François. L’ordre du monde: Platon, Nietzsche, Heidegger. Paris: PUF, 1989


[1D. Janicaud-J.-F. Mattéi, La métaphysique à la limite

[2J.-F. Mattéi, L’Etranger et le Simulacre

[3Heidegger, Séminaires du Thor, Questions IV, trad. franç. J. Beaufret, F. Fédier, J. Lauxerois et Cl. Roels, Paris, Gallimard, 1976, p. 287.

[4Ces deux dénominations pythagoriciennes sont, comme on sait, identiques; cf. Platon, Timée, 28b, et Epinomis, 977b.