A fenomenologia denomina o sujeito-como-cogito, o conhecimento humano, “intencionalidade”. [1] Quando Husserl usou esse termo pela primeira vez, [2] referiu-se expressamente a Brentano . [3] O certo, porém, é que Husserl não tomou de Brentano senão a palavra, visto que lhe deu um significado inteiramente diverso do que o de Brentano . Na escolástica também ocorre a “intencionalidade”, empregada para designar as species impressae (imagens impressas), formas substitutas da realidade bruta. A escolástica concebia a realidade como separada do sujeito-como-cogito e esperava das imagens substitutas no sujeito que constituíssem a ponte entre este e a realidade. Se perguntarmos qual o modo de ser de tais imagens, a escolástica responderá que não têm um ser entitativo, mas só intencional. Isso quer dizer que todo o seu ser consiste em seu referir-se à realidade. Portanto, o sujeito-como-cogito separa-se primeiro da realidade, para só depois entrar em contacto com ela por meio das imagens impressas.
Quando Husserl emprega o termo “intencionalidade”, rompe com a ideia de um sujeito isolado do mundo e, portanto, “fechado”, descrevendo o sujeito-como-cogito, o próprio conhecimento, como direção-para e abertura-ao-mundo. O conhecimento, portanto, não é a “morada de imagens cognitivas” na interioridade do sujeito, mas presença imediata do sujeito como uma espécie de “luz” numa realidade presente. Como modo do ser-homem o conhecimento humano é uma maneira de existir, uma maneira de ser-envolvido-no-mundo, isto é, o sujeito mesmo. Logo, o sujeito não é “primeiro” e por si uma “coisa psíquica”, para “depois”, por meio de imagens cognitivas, entrar em relação com as coisas físicas. O conhecimento não é “algo entre duas coisas por si”, nem uma relação entre duas realidades diversas, mas o próprio sujeito envolvido no mundo [4].
A bem dizer, a teoria das imagens sucedâneas pressupõe precisamente o que não quer admitir. De fato, não quer reconhecer que o sujeito-como-cogito está imediatamente presente à realidade, e, entretanto, essas imagens cognitivas são chamadas imagens da realidade. Como isso é possível, desde que o sujeito não está imediatamente presente à realidade ? Suponhamos que moram no sujeito imagens reais da realidade. Nesse caso, deve haver uma razão para se admitir que elas são realmente imagens, i. é, formas que representam a realidade. Entretanto, isso só pode ser afirmado se o sujeito está imediatamente presente à realidade, para se reconhecer, com base nessa presença, o verdadeiro ser-imagem das imagens. E quem concebe esta sempre pressuposta presença-à-realidade como a “morada de imagens no sujeito”, adia ao infinito a possibilidade de conhecer o ser-imagem dessas imagens. Imagens cognitivas só podem denominar-se imagens com fundamento na presença imediata do sujeito a uma realidade presente. [5] Mas então deixam de ser necessárias.
Exclusão do “problema crítico”?
Em nosso primeiro capítulo já indicamos que o problema crítico, como formulado desde Descartes , não subsiste. Não tem sentido algum perguntar-se se existe realmente um mundo, porque essa questão só pode ser levantada a partir de uma filosofia constituída que não procura no conhecimento, tal como ocorre, os termos em que o problema crítico deve ser posto. O conhecimento humano só aparece como intencionalidade, o que implica que o conhecimento simplesmente não é o que é sem o mundo real. Portanto, a existência do mundo não deve e não pode ser provada, [6] visto que o sujeito-como-cogito é, em si mesmo, relação ao mundo real. [7] O “escândalo da filosofia” não consiste, como pensava ainda Kant , em ninguém até agora ter podido estabelecer claramente uma prova da existência do mundo, mas, como deixou claro Heidegger, no fato de que ainda se procure semelhante prova.
Mas, dir-se-á, não têm valor algum as razões que levaram Descartes a duvidar da existência real do mundo ? Não posso sonhar, e, sonhando, pensar que percebo um mundo real, não existente na realidade ? Não posso ter alucinações, temores e desejos, convencendo-me, contudo, de que todas as significações percebidas em alucinações, temores ou desejos são reais, quando de fato não o são ?
É evidente que posso fazer tudo isso. Mas a distinção estabelecida pelo próprio Descartes entre perceber e sonhar significa que implicitamente ele já conhecia a diferença entre um mundo percebido e um mundo sonhado. Sabia tacitamente que, ao perceber, estava envolvido no mundo real, o que não se dava quando sonhava ou tinha alucinações. [8] Apesar disso Descartes punha “o mundo todo” entre parênteses, inclusive o mundo da percepção, que já afirmara real. Enquanto, porém, punha entre parênteses também o mundo da percepção, apagava a diferença entre perceber e sonhar, porque subsiste em virtude da diferença entre o mundo percebido e o sonhado. Descartes enchia o cogito de imagens imanentes, mas nelas o sujeito nunca pode “ver” se são imagens sonhadas ou reais. [9] Quem toma a sério a ideia da intencionalidade não pergunta mais se o mundo que ele “vê” existe realmente. O que pergunta é se realmente “vê” e não sonha. [10]
Realismo fenomenológico
A ideia de intencionalidade da fenomenologia exclui o idealismo. O sujeito-como-cogito está, enquanto intencionalidade, dirigido àquilo que não é o próprio sujeito. Numa volta reflexiva ao conhecimento como realmente ocorre, o filósofo sempre depara com a insuperável facticidade do dado corporal. A densidade do que é dado de fato nunca pode ser anulada, pois que o sujeito-como-cogito é, por si mesmo, um modo de ser-no-mundo. [11] O sujeito-como-cogito, por conseguinte, não é jamais mera atividade, mas sempre também “sensibilidade” para com uma realidade que não é o próprio sujeito. O homem cognoscente é simplesmente o guarda da realidade. [12]
O realismo, como concebido na tradição, torna-se igualmente impossível graças à ideia de intencionalidade. [13] O mundo, como a fenomenologia o pensa, é o mundo real. O correlato do sujeito-como-cogito, existente, é o que se mostra (das Sichzeigende), o manifesto (das Offenbare); é o “desoculto”, o “fenômeno”, em suma: o próprio Sendo que aparece a fenomenologia chama “sentido”. O sentido tem alguma coisa a “dizer” ao sujeito-como-cogito, dado que é desocultação. Mas é desocultação porque o próprio sujeito não é pura passividade: é também, apesar de sua passividade, atividade, desde que é o deixar-se (Seinlassen) do sentido. [14] O sentido é o desoculto. O sentido é o desoculto que se impõe ao sujeito no conhecimento. [15] É o real ! Mas o fato de que o real se impõe não dá a ninguém o direito de conceber o real como em-si, porque o em-si “é” aquilo que, por princípio e definitivamente, está oculto, nada tendo, portanto, a “dizer” ao sujeito. O “real”, conceituado pelo realismo comum, não é “fenômeno”: “foi fenômeno” e tornou-se “realizado”. Isso significa que o em-si do realismo corrente é bem, primeiramente, o resultado do deixar-ser do sujeito e se liga a ele. Mas, em segundo lugar, está separado desse deixar-ser e, sendo uma realidade completamente original, é “posto” fora da existência. [16] O sentido prende-se firmemente ao dizer-e que é o próprio sujeito-como-cogito, existente. [17] O realismo faz abstração desse dizer-e e, apesar de tudo, julga poder chamar o Sendo de Sendo.
Do que ficou dito pode deduzir-se que o dilema tradicional “idealismo-realismo” não constitui um verdadeiro dilema. Não há inconveniente, portanto, em se chamar a fenomenologia uma filosofia realista, por não se entender o termo “realista” no sentido objetivista em que o realismo tradicional, re-presentacionista, o tomava. Mas, para distinguir com precisão o sentido em que a palavra é usada na fenomenologia e a realidade bruta do realismo representacionista, já se emprega atualmente, em geral, os termos em-si-para-nós ou ser-para-nós, [18] com o que se exprime a própria independência-do-ser do sentido mundano perante o sujeito.
O mundo como sistema de significados “próximos” e “longínquos”
Chamamos “sentido” o correlato da intencionalidade ou do sujeito-como-cogito, existente. Denominemos agora “percepção” o ato do sujeito-como-cogito. Se concebermos a percepção como intencionalidade e analisarmos com exatidão essa forma de intencionalidade, surpreender-nos-emos com coisas que na psicologia tradicional da percepção levaram às mais estranhas hipóteses. Contudo, não é tão fácil descrever bem essas coisas. Por isso, desculpamo-nos se, a princípio, empregamos uma terminologia que depois se verá imprópria.
Quando percebo uma casa, não hesito em dizer que avisto realmente uma casa, embora só enxergue certo perfil da casa. Vejo a fachada, um dos lados e uma parte do telhado, mas não propriamente o fundo, o outro lado e a parte restante do telhado. Poderia, sem dúvida, ver as partes não vistas da casa, desde que mudasse meu ponto de vista no espaço em relação à mesma, mas com isso deixaria de ver o perfil que via antes. Em princípio, eu poderia perceber um número infinito de aspectos (Abschattungen, como diz Husserl ), pois que posso ocupar infinitos pontos de vista em relação a ela. [19] Um objeto de percepção, portanto, exibe um horizonte interno. Uma infinita pluralidade de mutáveis atos parciais envolve-me numa infinita pluralidade de fugazes aspectos. Isso vale para qualquer objeto de percepção. [20] Em todo ato parcial e em todo perfil que atualmente aparece, entretanto, tenho consciência de que se trata sempre de perfis de uma e mesma coisa. [21]
Como, porém, se unem entre si os vários atos parciais do sujeito e os vários aspectos aparentes do objeto da percepção ? Seria um engano julgar que a percepção, tanto em seu lado subjetivo (noesis) como no objetivo (noema), tenha de consistir numa espécie de “adição”. [22] A percepção como totalidade não consta de atos parciais colados entre si. Porque todo perfil da casa percebida se refere intrinsecamente a outros perfis, [23] que aparecem se mudo de posição. Posso seguir as várias linhas de um perfil atual até um ponto em que não as vejo mais. Indicam, entretanto, a aparição de outro perfil, preso à minha futura percepção a partir de outro ponto de vista. Se se tivesse de “concluir” que de fato isso não se dá, ou que, no exemplo aduzido, o frontispício de uma casa não indica um fundo, é sinal de que de fato não percebi realmente uma coisa, ou, no nosso exemplo, uma fachada. Se percebo as costas de meu amigo e depois “verifico” que seu corpo não tem frente — não só a frente que eu esperava, mas toda e qualquer frente — não vi umas costas na realidade. Todo perfil atual indica, pois, intrinsecamente, um perfil que aparece em potência, e isso significa que, sem essa indicação, o perfil atual não é o que ele é. Também sem referência a possíveis percepções não existe realmente a percepção atual. Logo, o que chamamos percepção inclui não só atualidade, mas também potencialidade, e esses distintos momentos da percepção não são o que são quando não dizem respeito um ao outro. A potencialidade pertence à realidade do atual, e o atual pertence à realidade do potencial. [24] O objeto da percepção, portanto, é um sistema de significados mutáveis, “próximos” e “longínquos”, correlativos aos sempre mutáveis momentos da atualidade e da potencialidade da percepção. Esta mostra, tanto em seu lado noético como no noemático, um horizonte espacio-temporal, interno, só accessível a uma análise intencional. [25]
Já é tempo, porém, de corrigir nossa terminologia. Não devemos dizer que o percipiente vê “propriamente” só certo perfil de uma casa, mas não outro. Não se diga tampouco que certo perfil está presente e outro não. Quem assevera tal coisa parte da suposição de que é realidade exclusivamente o momento da atualidade da percepção, deixando de considerar que esse momento da atualidade não é o que é sem o momento da potencialidade. Também esquece que a presença presente de um perfil que atualmente aparece não é o que é sem a presença ausente de um perfil a aparecer potencialmente. O percipiente vê presenças presentes e ausentes, o que só é possível porque a própria percepção inclui essencialmente momentos de atualidade e potencialidade. [26]
O objeto da percepção apresenta não só um horizonte interno, mas também um externo. Não é só a totalidade do objeto de percepção que deve ser exclusivamente acentuada, mas também a unidade da totalidade com todo o campo de percepção. Cada objeto aparece como certa “figura” sobre um fundo, sobre um horizonte de significados. A maçã que percebo como unidade e totalidade numa infinita série de perfis, só aparece como maçã real sobre o horizonte da mesa, da fruteira, do guarda-comidas ou do livro em que está. Uma maçã que não está numa mesa, numa fruteira, numa caixa de quitandeiro, na mão de uma criança ou pendurada em um galho, não aparecendo, portanto, sobre um fundo, não é simplesmente uma maçã real, o objeto de uma percepção real, mas uma imagem da fantasia, produto de um sonho ou de uma alucinação. [27] A percepção mesma de uma maçã inclui essencialmente o campo de percepção, o fundo, o horizonte.
Desde que dirijo minha atenção à maçã e não à mão da criança, onde ela se acha, a maçã aparece como uma figura central, como um significado que, por assim dizer, ressalta de um fundo de significados. A mão, o braço, o corpo da criança, o assoalho sobre que esta se encontra, o quarto, a casa etc. são, entretanto, co-constitutivos da maçã real. Uma maçã que não tenha nenhum horizonte exterior não pode ser percebida e não é real.
Por conseguinte, a percepção é sempre percepção da coisa total, compreendida num campo mais amplo, o qual, por sua vez, é abrangido em um horizonte de significados mais distantes. [28] O conjunto desse complicado sistema de sempre mutáveis significados “próximos” e “longínquos”, ligados aos sempre mutáveis momentos de atualidade e potencialidade da percepção, eis o que se chama “mundo” na fenomenologia.
Crítica da psicologia tradicional da percepção
Uma vez vista a unidade original da estrutura figura-horizonte, dada na percepção, compreende-se sem dificuldade que a explicação psicológica da percepção pelos adeptos da psicologia de elementos não faz justiça a esse fenômeno como ocorre realmente. Tais psicólogos admitem que a percepção é construída de sensações elementares, [29] insulares e punctiformes, causadas por estímulos físico-químicos.
Esta explicação não abre perspectivas, visto que jamais se encontraram sensações elementares. Além disso, indicando-se uma constelação de estímulos, não se explica a percepção I assim como se produz na realidade, nem se exprime o que se passa realmente no ato de perceber. Uma cor, p. ex., nunca é apenas uma cor na percepção, mas sempre a cor de alguma coisa. [30] Há uma enorme diferença entre o vermelho lanoso de um tapete, o viscoso e grudento vermelho do sangue, o refrescante e radioso vermelho de um rosto sadio e sanguíneo e o sedutor vermelho de uns lábios pintados. Essa diferença não se explica de modo algum pelos estímulos físico-químicos. [31] É a totalidade do objeto que se apresenta na percepção, não aparecendo nela o objeto como um aglomerado de excitantes, mas como uma significação dada. Um amontoado de estímulos é outra coisa que a ira ou a dor que leio no rosto de meu semelhante: percebo a ira e a dor como significados de um rosto. [32] A redução de um sentido a certa constelação de estímulos implica que jamais posso perceber que uma paisagem ou um rosto sejam alegres, tristes, animados, melancólicos, monótonos ou insípidos. [33] Um rosto alegre e feliz não se define pelas propriedades físico-químicas de uma constelação de estímulos, e, contudo, tenho a ideia de ter visto um rosto alegre e feliz.
Mas, também visto do lado do sujeito, há muitas dificuldades contra a explicação psicológica da percepção pelos elementaristas. O sujeito percipiente reduz-se a um aglomerado de impressões insulares, punctiformes. Os elementaristas dizem muito bem não ser possível mostrar para cada uma dessas impressões um estímulo como causa. Quando leio um livro ou entabulo uma conversação, não recebo uma impressão particularizada de cada letra escrita ou som falado; não obstante, leio e ouço palavras e frases. Da parte posterior da mesa e de sua parte inferior meu “aparelho receptor e registrador”, aparelho dos sentidos, não recebe as “mensagens” dos estímulos; contudo, tenho ideia de estar percebendo uma mesa. Ao perceber minha água-furtada, só recebo estímulos das paredes que estão diante de mim, e a meu lado, mas não da parede de trás nem do telhado; entretanto, sei que meu quarto tem quatro paredes e é uma água-furtada.
Tais dificuldades não levaram os elementaristas a abandonar sua teoria dos estímulos. Julgaram poder superá-las com a introdução de uma nova teoria: a hipótese dos complementos por meio da associação e reprodução, ou outras invenções semelhantes.
Para eles, fica claro o seguinte: a percepção pode não ser percepção da totalidade da realidade; a percepção da totalidade pode não ser primária; deve, porém, obrigatoriamente ser construída de elementos psíquicos. Com outras palavras, a psique deve ser composta como uma coisa da natureza, os conteúdos da consciência devem ser elementos e tratados como se costumam tratar os elementos nas ciências naturais. Eis a incondicional exigência para o caráter “científico” da psicologia. [34]
Entretanto, a teoria da associação e reprodução, exigida como complemento pela teoria dos estímulos, tem de pressupor o que quer explicar. A associação, consoante a terminologia de Claparède, [35] concebe-se como um “cordão” psíquico ligando as impressões punctiformes. Dada a interconexão das impressões, um estímulo exterior muito fragmentário basta para reproduzir o conjunto ou totalidade do percebido. Assim deve poder manter-se o primado das impressões isoladas sobre a percepção da totalidade.
Esta teoria, como dissemos, pressupõe o que pretende explicar. As impressões sempre se associam, de muitos modos, com outras impressões. Portanto, a reprodução de um conjunto pode fazer-se de várias maneiras. Mas como sucede que justamente este conjunto se reproduza ? Por um estímulo fragmentário poderiam formar-se diversas totalidades. Como “sabem” as impressões atuais que impressões suscitar para o complemento do conjunto ? Se é sem “razão” ou casualmente que estas e não aquelas impressões são evocadas da memória para complemento, a percepção não será explicada, porque, com o acaso, nada se explica. [36] Se, pelo contrário, há uma “razão” para reproduzir esta e não aquela totalidade, supõe-se certo “saber” da totalidade, donde se deduz que a explicação pela associação se torna supérflua, porque já está pressuposto o conhecimento da totalidade a esclarecer. [37]
Até mesmo a psicologia dos elementos precisa, pois, afirmar a prioridade do objeto percebido, visto que a teoria da associação e da reprodução pressupõem tal coisa. [38] Atendo-nos à sensação tal como ocorre, cumpre afirmar a prioridade do conjunto; se não o fizermos, afirmamos a mesma prioridade implicitamente, pelo fato de a pressupormos.
Isso nos traz de volta a nosso ponto de partida: é contraditório querer substituir a experiência comum pela das ciências naturais, [39] ou pretender pôr em lugar do mundo da experiência cotidiana um sistema de significados descoberto por alguma ciência. [40] A reflexão filosófica exige uma volta à experiência original e ao mundo original, despojados da superestrutura de teorias acrescentadas pelas ciências. Esta volta se chama “redução fenomenológica”.
A redução fenomenológica e o “mundo vivido”
A intenção de Husserl com a fenomenologia foi sempre a de encontrar uma base, um fundamento, para qualquer enunciado das ciências positivas. Esse desiderato implica a convicção de que as afirmações das ciências precisam de um fundamento, ou seja, que não o possuem em si mesmas. Tal coisa não quer dizer, para Husserl , que as ciências devem ser rejeitadas, mas que no cultivo delas se acham latentes e estão, em princípio, já respondidas muitíssimas questões, se bem que as ciências, em si, nem sequer as possam pôr. O físico como físico não pergunta a respeito da essência de seu conhecimento físico, não questiona qual o sujeito e o objeto específico da física, nem, tampouco, quais as condições de possibilidade de seu relacionamento. [41] Como físico, pode permitir-se não suscitar essas questões, mas, nesse caso, há um ponto de vista a partir do qual se pode e se deve dizer que a ocupação do físico é “ingênua”. [42] Evidentemente, isso também não significa que o físico não é crítico, mas que ainda é possível e necessário um modo totalmente diverso de ser crítico. O físico é crítico em relação à experiência científica, mas não indaga o que é propriamente a experiência científica e, muito menos, o que é a experiência em geral. [43]
A filosofia, portanto, deve mostrar o fundamento último dos juízos científicos. Trata-se da ciência do radical, [44] ou antes, que deve ser tal. Husserl , com efeito, está convicto de que a filosofia não o é de fato. [45] Cabe ao filósofo exprimir o que é essencialmente a experiência. Mas a filosofia incorreu num impasse, porque também ela adota uma ideia da experiência que não pode seguramente valer como base dos juízos científicos. Desde Descartes e Locke admite-se na filosofia a convicção de que a experiência deve ser representação e que o sistema de representações objetivas há de ser encontrado nas ciências naturais. A filosofia afundou no cientismo, de modo a não poder ser mais encarada como ciência do radical. O legítimo filosofar é algo totalmente diverso do pensamento da ciência positiva, [46] o que os filósofos deixaram de ver. Portanto, o brado de Husserl , “volta às próprias coisas”, não pretende dizer que as ciências não se ocupam com as próprias coisas, mas visa a filosofia. Esta se afastou de sua realidade. [47]
A procura da autêntica ou filosófica concepção a respeito do cogito, do pensamento e da experiência leva Husserl à sua ideia de intencionalidade, cujas implicações descrevemos em parte. Semelhantes implicações já nos puseram de certo modo na pista da resposta sobre o significado da “redução fenomenológica”. Antes, porém, de fixar seu sentido exato, demore-mo-nos um pouco numa concepção da redução fenomenológica ultrapassada na própria fenomenologia.
Enquanto Husserl definia como intencionalidade o sujeito-como-cogito, punha entre parênteses a existência de fato do sentido mundano, para o qual se orienta o sujeito. Eis a primeira acepção em que Husserl usou o termo “redução”: Einklammerung des Seins (colocação do ser entre parênteses). [48] Essa redução consistia em que Husserl retinha seu juízo sobre a existência real do sentido mundano. [49] O que o levou a essa suspensão do juízo ?
Conforme De Waelhens , a causa foi a teoria do conhecimento do século XIX, em luta com o problema crítico, ou seja, com a questão de saber se uma realidade exterior corresponde aos conteúdos, noções e conceitos do cogito retirado, isolado e fechado em si mesmo. [50]
Segundo o idealismo, o sentido é um conteúdo do cogito, não distinto dele em seu ser; de acordo com o realismo, o sentido é totalmente distinto do cogito e seu ser é perfeitamente estranho a ele. Husserl não quis se imiscuir na controvérsia entre realistas e idealistas, porque suspeitava que iria encalhar aí. Pensou poder escapar disso com sua fenomenologia, i. e, poder executar suas análises intencionais, mesmo sem optar por nenhuma das duas direções, sem se pronunciar a respeito do ser do sentido: eis o motivo de pô-lo entre parênteses. O próprio Husserl ainda não vira que, definindo o conhecimento como intencionalidade, tal como ele a entende, impossível se torna “pôr entre parênteses” o ser do sentido. Aquele que admite a intencionalidade, já decidiu sobre o ser do sentido. Até o filósofo não vira que a colocação do ser do sentido entre parênteses só é possível em se partindo da pressuposição de que o cogito é uma realidade isolada, repleta de conteúdos. Mas essa hipótese precisamente é rejeitada pela afirmação da intencionalidade. [51]
Só aos poucos Husserl se foi tornando consciente da inconsistência de suas concepções. A consequência é que nas suas obras posteriores aparecem sempre menos os parênteses do ser do sentido, para afinal desaparecerem completamente. Em Heidegger e Merleau-Ponty não se encontram mais vestígios deles.
Mas enquanto ocorrem sempre menos os parênteses em Husserl , acentua ele sempre mais a necessidade de uma redução fenomenológica. Isso significa que suas ideias a respeito da redução se modificaram. O filósofo permanece fiel à finalidade de sua fenomenologia: encontrar um fundamento para todo e qualquer enunciado científico. Pouco a pouco foi vendo que todos os enunciados das ciências pressupõem uma experiência muito mais fundamental que a científica, ou seja, que, sem a conhecer explicitamente, vivem dessa experiência muito mais fundamental e, exatamente por isso, sabem com precisão sobre o que falam. [52] Essa experiência muito mais fundamental é o sujeito-como-cogito, com suas numerosas atitudes (Einstellungen) diferentes, e o correlativo mundo vivido (Lebenswelt). [53]
Concebida como volta à nossa mais original experiência de nosso mais original mundo, a redução fenomenológica é essencial para a filosofia fenomenológica. Essa redução é realizada por quem se coloca dentro da existência e reconhece as implicações disso. Executando-a, vai-se de fato achar uma base para todo e qualquer enunciado científico. Assim, se se trata da percepção de uma árvore florida no prado, posso invocar em meu socorro várias ciências, mas só sei o que significam todos os resultados de todas as investigações científicas conhecendo o significado da percepção “comum” de uma árvore florida no prado. Não falassem as ciências afinal do mundo em que o sol se levanta e se deita, do mundo em que há diferença entre um morto e um assassino, do mundo em que existem moças bonitas e rapazes guapos, de um mundo em que, pelo simples fato de ir às férias, posso chegar a saber o que é o mar, um rio ou uma montanha, nesse caso nem os mais inteligentes cientistas saberiam sobre o que falam propriamente. [54] As ciências não têm nenhum fundamento em si mesmas. Não sabem sobre o que falam, a menos que admitam serem afinal simples momentos explicativos de uma experiência muito mais original que a científica e de um mundo mais original que o desvendado pelas ciências [55]. O mundo primariamente real e objetivo é aquele em que o físico está bem ou mal casado, no qual tem ou não tem amigos, sente calor ou frio, pouco importando o que diz o termômetro, e no qual, pouco antes do pôr do sol, compra ainda um livro de astronomia onde se lê que o sol não se põe, mas está parado. [56]
No mundo vivido há uma grande diferença entre o vermelho brando de um tapete, o vermelho viscoso do sangue coalhado, o sadio vermelho de um rosto jovem e viçoso e o vermelho sedutor de uns lábios pintados [57]. Se na ciência se fala dos “movimentos da laringe e ondas sonoras”, o cientista só saberá que com isso discorre sobre a fala, admitindo saber o que é falar, devido ao fato de já ter falado com alguém. Se na ciência se fala de “certos movimentos das fossas nasais e certas contrações dos cantos da boca, junto com um piscar de olhos”, só sabe o cientista que se trata de um sorriso pelo fato de já alguma vez ter experimentado o que significa alguém lhe haver sorrido.
A volta às próprias coisas é o retorno ao mundo vivido, e ela inclui que o sujeito-como-cogito, existente, com suas muitas atitudes, seja conhecido como a mais original experiência do mundo. [58] Eis em que consiste a redução fenomenológica. A experiência do mundo vivido foi e é caracterizada pelas ciências como “puramente” subjetiva e relativa. Na realidade, entretanto, é o fundamento último (letztbegruendende). É por essa experiência que os que se ocupam com as ciências positivas sabem sobre o que falam. Não se pode, pois, querer substituir os significados do mundo vivido pelo sistema de significados descobertos pelas ciências, pondo a experiência da ciência positiva em lugar da experiência mais original que sustenta a primeira. [59] O cientismo é uma filosofia da experiência que esquece sua própria origem, [60] e uma ciência sem filosofia não sabe sobre que fala. [61]