Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Haar (1990:97-98) – metafísica é antropocêntrica e antropomórfica

sábado 13 de janeiro de 2024

Alves

Pois a História do homem dos gregos até nós é a história da auto-posição sempre mais firme e autônoma da essência humana. Para o sofista Protágoras  , o homem é, por certo, a «medida de todas as coisas», mas ele obedece à lei de uma sophia que lhe prescreve as estritas fronteiras do seu reino e do seu saber. O homem cartesiano, kantiano, delimita e assume a finitude de uma vontade do conhecimento, todavia infinita no seu princípio. O homem das ciências humanas, cedendo à vontade da vontade, explora o seu próprio chão, reparte-se em setores objetiváveis e mensuráveis, projeta-se o grande filme inacabado do seu ativismo ilimitado. A história do homem é a de uma emancipação absoluta. De que se libertou ele? Ele libertou-se de toda a relação a um Outro diferente dele, quer fosse Deus, a natureza ou o ser. Tornou-se a relação total, o puro meio, o único objecto, o único estudo do único sujeito: ele próprio. O homem alimenta-se e haure-se nesta imensa tautologia, com a qual ele se contenta todavia; pois que se ele não excluiu dele próprio a angústia e a morte, ele lisonjeia-se de as ter desembaraçado da sua carga arcaica, metafísica e de as ter reduzido a questões psicológicas ou medicinais, quer dizer, técnicas. As questões técnicas não são questões, mas problemas claros, solúveis ou pelo menos desprovidos de enigma.

Toda a metafísica, desde a alba dos tempos modernos, é quer antropocêntrica, quer dizer, coloca a essência do homem, o sujeito, como base e fundamento inabalável de todo o saber, quer antropomórfica, transfere para um Sujeito absoluto as propriedades e as faculdades do homem, e, especialmente, a vontade. Mas desde Platão  , que a metafísica é «humanista» porque a sua principal preocupação é a salvação da alma humana e porque a doutrina das duas substâncias que compõem o animal racional [95] já está firmemente estabelecida. Em todo o caso, o homem-substância, o homem-sujeito são considerados como entes subsistentes, vorhanden, postos aí como coisas da natureza, tendo de uma vez por todas a sua consistência própria, as suas qualidades específicas, as suas virtudes, a sua riqueza.

Ora o que a metafísica esquece, de modo crescente, é a pobreza do homem. O homem não é o que ele é. Platão   dizia que lhe era necessário recordar. Falta sempre qualquer coisa ao homem. Essa «qualquer coisa» não é nada do ente, mas o seu próprio ser — a relação com o ser que ele não pode possuir mas apenas desenvolver no movimento ex-tático da existência Ele só é o ente que é, porque perdeu o ser e, ao reencontrá-lo, o tornou a perder de novo. O homem é Dasein, um ente tal que o seu ser-no-mundo, tal como os modos de ser do ente diferente dele mesmo, estão «eternamente» em questão no seu próprio ser. «Em questão»: numa possibilidade de sentido, ou cujo sentido está em suspenso. Com a viragem da década de 30, Heidegger não abandona esta posição do SZ  , apenas mostra que a relação com o ser não se decide no ser próprio do Dasein, segundo a vontade deste, mas determina-se a partir do próprio ser, enquanto este último se descobre e se dá ele mesmo como «verdadeiro», quer dizer como des-velado, manifestamente saído da sua latência.

[HAAR  , Michel. Heidegger e a essência do homem. Tr. Ana Cristina Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 1997]

Original

Car l’Histoire de l’homme depuis les Grecs jusqu’à nous est l’Histoire de l’auto-position toujours plus ferme et autonome de l’essence humaine. Pour le sophiste Protagoras  , l’homme est certes «mesure de toutes choses», mais il obéit à la loi d’une sophia qui lui enjoint les strictes frontières de son règne et de son savoir. L’homme cartésien, kantien, délimite et assume la finité d’une volonté de connaissance, pourtant infinie en son principe. L’homme des sciences humaines, cédant à la volonté de volonté, exploite son propre fonds, se découpe en secteurs objectivables et mesurables, se projette le grand film inachevable de son activisme illimité. L’Histoire de l’homme est celle d’une émancipation absolue. De quoi ne s’est-il pas libéré ? Il s’est délivré de toute relation à un Autre que lui-même, à Dieu, à la nature, à l’être. Il est devenu la relation totale, le pur milieu, le seul objet, la seule étude de l’unique sujet : lui-même. L’homme se nourrit et s’épuise en cette immense tautologie, dont il se contente pourtant ; car s’il n’a pas exclu de lui-même l’angoisse et la mort, il se flatte de les avoir débarrassées de leur charge archaïque, métaphysique, et de les avoir réduites à des questions psychologiques ou médicales, c’est-à-dire techniques. Les questions techniques ne sont pas des questions, mais des problèmes clairs, solubles ou du moins dépourvus d’énigme.

Toute la métaphysique, depuis l’aube des Temps modernes, est soit anthropocentrique, c’est-à-dire posant l’essence de l’homme, le sujet, comme base et fondement inébranlable de tout savoir, soit anthropomorphique, transférant à un Sujet absolu les propriétés et les facultés de l’homme, et spécialement la volonté. Mais dès Platon  , la métaphysique est «humaniste» [1] parce que sa principale [98] préoccupation est le salut de l’âme humaine et parce que la doctrine des deux substances qui composent l’animal rationnel est déjà fermement établie. Dans tous les cas, l’homme-substance, l’homme-sujet sont considérés comme des étants-subsistants, vorhanden, donnés là-devant comme choses de la nature, ayant une fois pour toutes leur consistance propre, leurs qualités spécifiques, leurs vertus, leur richesse.

Or ce que la métaphysique oublie, de façon grandissante, c’est la pauvreté de l’homme. L’homme n’est pas ce qu’il est, et n’a pas ce qu’il a. Platon   disait qu’il lui faut s’en souvenir. Il manque toujours quelque chose à l’homme. Ce «quelque chose» n’est rien d’étant, mais son être même : cette relation à l’être qu’il ne peut pas posséder, mais seulement déployer dans le mouvement ek-statique de l’existence. Il n’est l’étant qu’il est qu’en ayant perdu l’être et en le retrouvant, pour le perdre à nouveau. L’homme est Dasein, un étant tel que son être-au-monde, tout comme les modes d’être de l’étant autre que lui-même, sont «éternellement» en question dans son propre être. «En question» : en possibilité de sens, ou dont le sens est en suspens. Le Tournant des années 1930 n’abandonne pas cette position de Sein und Zeit  . Seulement Heidegger montre que la relation à l’être ne se décide pas dans l’être propre du Dasein, au gré de celui-ci, mais se détermine à partir de l’être même, en tant que ce dernier se découvre et se donne lui-même comme «vrai», c’est-à-dire comme dé-celé, manifestement sorti de sa latence.

[HAAR  , Michel. Heidegger et l’essence de l’homme. Grenoble, Jérôme Millon, 1990]


Ver online : Michel Haar


[1Cf. Questions II, p. 160.