Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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McNeill (1999:33-34) – techne e episteme

quarta-feira 9 de outubro de 2024

A segunda forma de conhecimento que Aristóteles considera é a techne, aqui entendida no sentido restrito de know-how que diz respeito a fazer ou produzir. A techne tem como objeto algo que passa por mudanças. Seu objeto (o produto) passa por mudanças no sentido específico de que, antes do processo produtivo, ainda não existe em sua forma final. Nesse sentido, o objeto da techne é algo que pode ser diferente do que é. A techne, assim como a episteme, implica um tipo de teorização, mas especificamente preocupada em como trazer uma coisa à existência (NE, 1140 a13). No entanto, diferentemente da episteme, esse tipo de visão aparentemente contém em si a arche última de seu objeto. Heidegger se refere aqui ao relato de Aristóteles no Livro VII da Metafísica. Antes de produzir algo, é necessário um tipo de deliberação que implica que o artesão deve primeiro contemplar a aparência do produto em seu eidos. Na Metafísica, Aristóteles afirma que “aquilo que propriamente produz [to poioun], aquilo a partir do qual o movimento [kinesis] começa, é o eidos na alma” (M, 1032 b22). Mais precisamente, é a “visão” desse eidos, sua presença na alma, que é referida como noesis (M, 1032 b15f.). Isso significa, entretanto, que a arche não está na obra ou no artefato em si, como a arche daquelas coisas que existem “por natureza” (kata physin) (Ética a Nicômaco, 1140 a16). Além disso, o fim da atividade de fazer é diferente da atividade em si (EN, 1140 b4); a obra acabada está fora (gr. para) do processo produtivo (EN, 1094 a6). Como terminado e concluído, o artefato, portanto, não se enquadra mais no âmbito da techne, mas foi estabelecido e liberado para outros fins. Em outras palavras, o conhecimento ou theorein específico da techne, como preocupação com a poiesis, com o processo de fazer, não pode preservar totalmente dentro de si a arche completa de seu objeto. O objeto da techne, como algo feito, é diferente da techne e, como tal, já é vítima da contingência e do acaso (tyche) no próprio processo de fazer. O produto pode se tornar um fracasso, mesmo que o artesão tenha tido uma visão clara do que ele ou ela queria fazer (cf. EN, 1140 a19). A revelação na techne do ser de seu objeto é intrinsecamente deficiente.

Tanto a theorein encontrada na episteme quanto a encontrada na techne ficam, portanto, aquém de sua capacidade de revelar o ser de seus respectivos objetos. No caso da episteme, a deficiência se deve ao fato de que ela necessariamente se refere a objetos que estão além da observação imediata (exo ton theorein), procedendo por dedução com base em princípios universais (logoi) já apropriados. As verdades que ela revela estão, portanto, em princípio, abertas a serem consideradas como verdades meramente “lógicas”, sem que seja necessária qualquer visão imediata ou direta (epagoge) de seu objeto. Um exemplo primordial, como observa Aristóteles, é a capacidade dos jovens de aprender matemática, pois as verdades puramente formais e dedutivas da matemática não requerem nenhuma experiência direta por parte do indivíduo (EN, 1142 a15f.). E isso equivale a dizer que a teoria da episteme está distanciada de um acesso imediato e da presença das próprias coisas. “Os primeiros princípios dos quais as verdades científicas são derivadas”, como conclui Aristóteles, ‘não podem ser alcançados pela ciência’ (EN, 1140 b32). No caso da techne, a deficiência se deve à contingência que acompanha a tradução do eidos em existência material. Como resultado, o produto final pode não estar de acordo em seu ser (eidos) com o eidos visto antecipadamente. Em cada caso, portanto, há uma remoção espaço-temporal da presença imediata que limita (mas também possibilita) a capacidade de revelação da theorein envolvida.


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