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Fenomenologia da Liberdade

Figal (2005:66-68) – ser-aí (Dasein)

§ 2. Ser como ser-aí

segunda-feira 29 de maio de 2017, por Cardoso de Castro

Extrato da trad. de Marco Antonio Casanova  , 2005, p. 66-68.

Se essa interpretação for elucidativa, a mudança heideggeriana   do "ser como encontrar-se presente" para o "ser-aí" teria a mesma motivação que as explicitações ontológicas do Sofista platônico. Exatamente como em relação a Platão, o que interessava a Heidegger era tornar compreensível como o não-ente pode ser. Certamente, não se pretende afirmar com isso que a resposta de Heidegger a essa pergunta seria idêntica à de Platão. Enquanto Platão pensa o não-ente como o diverso do determinado e o determina como algo que é, na medida em que é uma imagem essente (eikon ontos/ O sofista. 240b) do ente em sentido expressivo (ontos on/ O sofista. 240b), portanto, um logos, Heidegger quer desenvolver o não-ente como a experiência do indeterminado e do passível de descoberta mesmo. Por intermédio desse passo, tanto a pergunta sobre a verdade quanto o termo "ser" passam a receber um novo valor conjuntural. No que concerne à pergunta sobre a verdade, a interpretação da verdade enunciativa só serve em última instância, em Heidegger, para expor o fenômeno do descobrir no contexto do que é passível de descoberta, e, então, para mostrar que o contexto do que é passível de descoberta é ele mesmo propriamente a "verdade". Por isso, a relação entre verdade e não-verdade também não pode mais ser pensada a partir da orientação pelos enunciados. Ao contrário, ela precisa dizer respeito à possibilidade de nos "fecharmos" ou de nos "abrirmos" para o contexto do que é passível de descoberta. Como ainda se mostrará de maneira mais clara, a pergunta sobre a verdade não é, no fundo, outra coisa senão a pergunta sobre a liberdade. Em contraposição a isso, a verdade enunciativa se deixa determinar da maneira indicada "pragmaticamente": um enunciado é "verdadeiro" quando é compatível com um comportamento interpretativo mais amplo. Para evitar a confusão entre a verdade no sentido expressivo e a verdade enunciativa, Heidegger fez mais tarde uma diferença em Da essência da verdade entre "verdade" e "correção", sem que o termo "correção" designe certamente apenas a verdade enunciativa. Verdade enunciativa é muito mais apenas um caso especial da "correção". Com efeito, não se pode reduzir a concepção de verdade em Platão a uma concepção de verdade enunciativa, pois mesmo nas explicitações de O sofista o que está em jogo é trazer à tona a questionabilidade de uma orientação irrefletida pela linguagem. Apesar de todas as diferenças, a "verdade" em Platão, assim como em Aristóteles, é, sem dúvida alguma, pensada como a presença de algo determinado para o conhecimento, enquanto Heidegger, como se mostrará, identifica "verdade" com o que está para além do determinado. No que se refere à significação do termo "ser", as coisas se comportam de maneira similar. Em Platão também, "ser" é um termo para a presença de algo determinado, ainda que essa presença não seja compreendida no sentido do que se encontra presente para um enunciado. "Algo determinado" em sentido eminente são em Platão justamente as ideias, e dessas não se pode dizer que são primariamente correlatos de enunciados. Em contrapartida, "ser" é em Heidegger o indeterminado que, na medida em que é experimentado juntamente com o determinado, se chama "ser-aí". A "análise do ser-aí" é a análise dessa experiência e de suas pressuposições sob diversos aspectos.

Com a interpretação do conceito heideggeriano de fenomenologia já foi mostrado logo no começo como pode ser descrita uma tal experiência do indeterminado: se a experiência do indeterminado é "fenômeno" e fenômenos são compreendidos como aquilo que não se mostra de início e na maioria das vezes, então a experiência do indeterminado só pode ser liberada mediante uma desconstrução do determinado. Só assim pode se tornar também inteligível o fato de o determinado ser uma aparição do indeterminado. De acordo com isso, o determinado e o indeterminado precisam ser desenvolvidos em sua essência e isso significa uma vez mais: é preciso que se mostre como o indeterminado é experimentado em sua diferença ante o determinado. Fica claro que se trata, para Heidegger, de uma tal diferença em meio à análise do "ser-aí" quando ele introduz o termo. Em ST, isso está formulado da seguinte maneira: "o ser-aí é marcado ontologicamente pelo fato de que, para esse ente, em seu ser, o que está em jogo é esse ser mesmo": "Mas à constituição ontológica do ser-aí pertence então a característica de em seu ser ele estabelecer uma relação de ser com esse ser. E isso diz uma vez mais: o ser-aí se compreende de alguma maneira e com alguma dose de explicitação em seu ser. É próprio desse ente que seu ser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser. Compreensão de ser é ela mesma uma determinação do ser do ser-aí" (ST, 12). O que chama a atenção nessas sentenças é inicialmente a denominação heideggeriana   do "ser-aí" como um ente. Com isso, ele desperta a impressão de que seu termo só designa a "nós mesmos" de uma maneira artificial e de que já se saberia, se se tivesse clareza quanto a isso, de que trata o discurso. Essa impressão é intensificada ainda mais quando Heidegger diz que o "ser-aí" tem em relação ao seu ser "uma compreensão de ser". Só muito dificilmente se consegue evitar pensar aqui essa relação de maneira análoga a uma ligação objetiva, e, com isso, se perde completamente de vista o que está efetivamente em questão. É certo que o termo "ser-aí" designa, em Heidegger, "nossa maneira de ser" e também é certo que somos entes que se deixam determinar e se autodeterminam segundo um ou outro aspecto. Não se pode, contudo, como já foi dito à guisa de introdução, confundir o "ser-aí" com determinadas pessoas agindo e ler a análise heideggeriana   do ser-aí como uma descrição universalizante de tais pessoas. Em vez de falar de "compreensão de ser", também seria mais apropriado por isso compreender o termo "ser-aí" como designação para aquele modo de ser que é caracterizado pela realização da diferença entre determinação e indeterminação. Nesse caso, "ser-aí" é uma estrutura, junto à qual é preciso pensar concomitantemente o comportar-se nessa estrutura. Porque isso é assim, Heidegger também pode denominar as determinações ontológicas do "ser-aí" "existenciais" e diferenciá-las das "determinações dos entes que não são marcados pelo caráter de ser-aí", denominadas "categorias" (ST, 44). Só se abre uma fenda ontológica com essa diferenciação, porém, se se confundem "pessoa" e "ser-aí". É indiscutível que pessoas podem ser especificadas e caracterizadas em enunciados; o "ser-aí", em contrapartida, só se deixa conceber em meio a determinações ontológicas que tornam distintamente compreensível um comportamento, que também pode ser naturalmente descrito como comportamento de pessoas, como um comportamento em uma estrutura. Esse comportamento é, então, determinado pela sua problematicidade como comportamento nessa estrutura, pois a estrutura não é apenas estrutura do comportamento. A "relação ontológica" de que fala Heidegger não é, por conseguinte, para ser interpretada como "ligação a algo", mas não tem em vista, por fim, senão a experiência do comportamento em sua limitação. Certamente, somente as interpretações que virão em seguida poderão deixar claro o que isso significa. Não obstante, já podemos ver em que medida é impossível compreender o "ser-aí" no sentido de um processo, pressuposto que a tese citada é pertinente. Realizações são sempre modos de comportamento, e não se pode falar de uma limitação do comportamento se todos forem interpretados a partir do recurso a um "comportamento originário". "Ser-aí" designa uma coisa diversa da ação transcendental originária de um sujeito. Contra essa asserção se poderia agora buscar validar a interpretação desenvolvida das suposições ontológicas fundamentais de Heidegger. Uma vez que todos os conceitos ontológicos fundamentais são conquistados a partir da orientação pela descoberta, todos os entes também são reconduzidos, como se poderia objetar, à capacidade de constituição de um sujeito denominado "ser-aí". Contra isso fala, sem dúvida alguma, o fato de não se conseguir absolutamente tornar inteligível o comportamento no ser-aí sem levar em conta as coisas. Dito de outra forma, contra uma interpretação filosófico-subjetiva da análise do ser-aí heideggeriana   já fala por si só a tese de acordo com a qual o "ser-aí" precisa ser caracterizado como "ser-no-mundo".


Ver online : Günter Figal