E no caso da πρᾶξις? Quando damos um passeio, o passeio não tem outro fim senão o próprio passeio [Um passeio cujo objetivo é ir a tal e tal lugar não é um passeio]. É ao dar um passeio que a πρᾶξις “dar um passeio” atinge a sua conclusão [O objetivo do passeio é alcançado quando dou um passeio]. O que o ποίημα é para o ποίησις (o que a mesa é para a carpintaria), o πρᾶγμα é para o πρᾶξις. O πρᾶγμα não é uma coisa, mas aquilo a que podemos chamar em francês [o francês começa a falar com uma sutileza maravilhosa]: aquilo de que trata esta πρᾶξις.
Um andar, por exemplo, não pode ser entendido como um ente, não é uma coisa, mas também não é nada: é aquilo de que trata o πρᾶξις “andar”; é o seu πρᾶγμα. Ή πραγματεία é o fato de “aguentar”, de enfrentar a dificuldade de fazer. É o fazer que os gregos chamam de πράττω: o colar na coisa. De que trata a teoria? O que é a πρᾶγμα da θεωρία? A visão clara do ser disto que é. Se estivermos a falar da θεωρία matemática, o πρᾶγμα é um θεώρημα (teorema). Teorizar o triângulo é ver que ele tem três lados, etc. Encarar algo que é desta ordem é a πρᾶγμα do θεωρία. Aristóteles diz que o θεωρία termina quando “se toca e se diz”: alcança-se e assim se diz [Aristóteles, Metafísica, Θ — 10, 1051 b 23, citado em Carta sobre o Humanismo, p. 80: an das Sein rühren (θιγεῖν)]. O que é que tem a ver com o viver? De que se trata viver? Qual é o πρᾶγμα, a verdadeira aposta do viver?
Agora Heidegger observa que quando algo é bem dado, tem de ser bem recebido: é preciso ter muito cuidado com a forma como se recebe o que é dado. É como a Fortuna, que está representada numa roda com um tufo de cabelo que temos de apanhar quando passa. Se não o apanharmos, nunca mais o veremos. “J’ai fait la magique [55] étude / Du bonheur, que nul n’élude“, diz Rimbaud (”Ô saisons, ô châteaux"). Um ser verdadeiramente humano faz tudo o que faz “com felicidade”. Esse é o ser humano feliz. Quando um ser humano é feliz, toda a sua maneira de ser nunca deixa de ser feliz. Tudo o que faz, fá-lo com felicidade — e é bonito de se ver (o importante aqui não é tanto o fato de ter sucesso). Tem muito a ver com o tempo — o tempo real: “não se pode saber se um homem foi feliz antes de morrer”, como diziam os gregos antigos. No final da sua vida, Epicuro foi afetado pela doença das pedras, ou seja, pedras nos rins. Dizia que a vida humana devia ser dedicada aos prazeres razoáveis; assim, torturado pela doença, lutou contra a dor recordando os prazeres razoáveis de que outrora desfrutara1. A felicidade epicurista é tão mínima que chega a ser assustadora! A mesma ideia de encontrar um mínimo pode ser encontrada em Descartes . Na segunda Meditação, há duas referências a um mínimo: minimum dubitationis e minimum quid [AT VII, p. 24]. Para Epicuro, trata-se de um mínimo de memórias, para mostrar que a vida não é só dor e que não é absurdo continuar a viver. A vida é assustadora, e temos de conseguir encontrar o mínimo de εὐδαιμονία que ela esconde.