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Fédier (2012:53-55) – felicidade [eudaimonia]

segunda-feira 25 de novembro de 2024, por Cardoso de Castro

E no caso da πρᾶξις? Quando damos um passeio, o passeio não tem outro fim senão o próprio passeio [Um passeio cujo objetivo é ir a tal e tal lugar não é um passeio]. É ao dar um passeio que a πρᾶξις “dar um passeio” atinge a sua conclusão [O objetivo do passeio é alcançado quando dou um passeio]. O que o ποίημα é para o ποίησις (o que a mesa é para a carpintaria), o πρᾶγμα é para o πρᾶξις. O πρᾶγμα não é uma coisa, mas aquilo a que podemos chamar em francês [o francês começa a falar com uma sutileza maravilhosa]: aquilo de que trata esta πρᾶξις.

Um andar, por exemplo, não pode ser entendido como um ente, não é uma coisa, mas também não é nada: é aquilo de que trata o πρᾶξις “andar”; é o seu πρᾶγμα. Ή πραγματεία é o fato de “aguentar”, de enfrentar a dificuldade de fazer. É o fazer que os gregos chamam de πράττω: o colar na coisa. De que trata a teoria? O que é a πρᾶγμα da θεωρία? A visão clara do ser disto que é. Se estivermos a falar da θεωρία matemática, o πρᾶγμα é um θεώρημα (teorema). Teorizar o triângulo é ver que ele tem três lados, etc. Encarar algo que é desta ordem é a πρᾶγμα do θεωρία. Aristóteles diz que o θεωρία termina quando “se toca e se diz”: alcança-se e assim se diz [Aristóteles, Metafísica, Θ — 10, 1051 b 23, citado em Carta sobre o Humanismo, p. 80: an das Sein rühren (θιγεῖν)]. O que é que tem a ver com o viver? De que se trata viver? Qual é o πρᾶγμα, a verdadeira aposta do viver?

  •  É o ἀκμή.
  •  Não, é quando estamos felizes. Aristóteles diz bem que a vida se realiza na felicidade: a felicidade é o fim da vida. A perfeição de viver é a felicidade: é-se então verdadeiramente um ser humano. Para Aristóteles, a felicidade significa ser um verdadeiro ser humano [Aristóteles, Ética a Nicómaco, I, 6, 1097 b 25]. Mas atenção, não se trata de felicidade no sentido ingênuo. A felicidade não é viver debaixo de coqueiros. A felicidade não é necessariamente uma coisa de beato, uma coisa de tolo, ou então temos de viver por procuração em uma foto-novela — o que é diferente de um conto de fadas. Os contos de fadas são uma forma de ensinar às crianças os aspectos assustadores da vida (Cézanne dizia: “a vida é assustadora”) sem as dobrar: nos contos de fadas, a vida torna-se cada vez mais assustadora e só se escapa por magia. Em O Reno, Hölderlin   escreve: “Porque a desgraça é pesada de suportar / Mas a felicidade é mais pesada”. De fato, a felicidade não é como uma recompensa que recebemos porque a merecemos, mas primeiro recebemos, e depois temos de nos esforçar realmente para suportar o que recebemos, para sermos felizes enfrentando a realidade. “Ajuda-te a ti próprio e o céu ajudar-te-á” — mas ajuda-te a ti próprio primeiro. Heidegger traduz a palavra εὐδαιμονία no refrão de Antígona (verso 1189): ‘uma existência bem domada e apaziguada (gebändigtes gefügtes Dasein)’” [Heidegger, GA40  , 82; Introdução à Metafísica, Paris, Gallimard, p. 116: “τίς γὰρ τίς ἀνὴρ πλέον / τᾶς εὐδαιμονίας φέρει…”]. Isto implica compreender o seguinte: εὐδαιμονία é o que se dá bem. εὐ significa, com efeito, “bem” como em “Eugenie” (a bem nascida) ou “euforia”. Na euforia, está-se bem: sou leve, tenho um coração leve, como se diz, o seu peso não me pesa, não me esmaga. Quanto a δαίμων, é o “demônio” [gênio], em grego: aquilo que dá. Algo bem dado, é isso que é a felicidade.

    Agora Heidegger observa que quando algo é bem dado, tem de ser bem recebido: é preciso ter muito cuidado com a forma como se recebe o que é dado. É como a Fortuna, que está representada numa roda com um tufo de cabelo que temos de apanhar quando passa. Se não o apanharmos, nunca mais o veremos. “J’ai fait la magique [55] étude / Du bonheur, que nul n’élude“, diz Rimbaud (”Ô saisons, ô châteaux"). Um ser verdadeiramente humano faz tudo o que faz “com felicidade”. Esse é o ser humano feliz. Quando um ser humano é feliz, toda a sua maneira de ser nunca deixa de ser feliz. Tudo o que faz, fá-lo com felicidade — e é bonito de se ver (o importante aqui não é tanto o fato de ter sucesso). Tem muito a ver com o tempo — o tempo real: “não se pode saber se um homem foi feliz antes de morrer”, como diziam os gregos antigos. No final da sua vida, Epicuro foi afetado pela doença das pedras, ou seja, pedras nos rins. Dizia que a vida humana devia ser dedicada aos prazeres razoáveis; assim, torturado pela doença, lutou contra a dor recordando os prazeres razoáveis de que outrora desfrutara1. A felicidade epicurista é tão mínima que chega a ser assustadora! A mesma ideia de encontrar um mínimo pode ser encontrada em Descartes  . Na segunda Meditação, há duas referências a um mínimo: minimum dubitationis e minimum quid [AT VII, p. 24]. Para Epicuro, trata-se de um mínimo de memórias, para mostrar que a vida não é só dor e que não é absurdo continuar a viver. A vida é assustadora, e temos de conseguir encontrar o mínimo de εὐδαιμονία que ela esconde.


  • Ver online : François Fédier


    FÉDIER, François. L’humanisme en question: Pour aborder la lecture de la “Lettre sur l’humanisme” de Martin Heidegger. Paris: Les Éditions du Cerf, 2012